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CAPÍTULO 2: PROBLEMATIZAÇÃO E RECONHECIMENTO DE TEORIAS

2.3 A importância do coletivo docente colaborativo como espaço de interação

Temos como objetivo construir indícios sobre a relevância da interação docente na constituição do sujeito em um processo de IA, ancorados na perspectiva da abordagem histórico-cultural, com base nas proposições de Vigotski. Com aporte neste pressuposto será defendida a relevância de contextos colaborativos de formação de professores, na perspectiva da IA crítica, em que interagem diferentes sujeitos que se constituem de forma partilhada.

Uma das teses fundamentais de Vigotski (2007; 2008) é a defesa de que a origem dos processos psicológicos superiores ocorre na e pela interação social. Portanto, é pelas vivências sociais que o indivíduo constitui-se humano. Por meio deste processo desenvolve atributos que são específicos dos seres humanos, ou seja, características biológicas não dependem da convivência entre seres humanos para se desenvolverem.

Dessa forma, destacamos a relevância das experiências interacionistas na constituição da personalidade e dos conhecimentos do sujeito (VIGOTSKI, 2007). Apropriamo-nos desses pressupostos para discutir acerca da importância dos contextos de formação de professores que se organizam pela parceria colaborativa, com o objetivo de construir argumentos para a defesa da necessidade da interação docente na e para a constituição do professor.

Os contextos colaborativos implicam em uma perspectiva democrática de interação docente. Pressupõe e exige a igualdade de direito de participação nas interações, para que assuma o caráter de grupo colaborativo. O diálogo e reflexão compartilhada no coletivo docente são fundamentos dessa proposta formativa. Güllich (2013, p. 164) defende a reflexão formativa como consequência da discussão e do diálogo no coletivo. Kierepka e Güllich (2014) propõem que o diálogo no coletivo docente pode se tornar formativo.

Esta proposta de formação docente em grupos colaborativos se insere na racionalidade crítica, que, da mesma forma que a racionalidade prática, também defende a reflexão do professor. Porém, na racionalidade crítica é enfatizada a necessidade da análise do contexto sócio-histórico em que a prática é desenvolvida, para além da análise dos problemas da prática no âmbito da sala de aula. A reflexão crítica é “dialética, uma vez que a realidade [...] é refletida por meio do pensamento reflexivo volitivo que desvela as condições que produzem o conhecimento teórico e a alienação, bem como cria as condições para ressignificar a prática e transformá-la” (IBIAPINA, 2008, p. 68), o que implica em uma racionalidade dialética (CARR e KEMMIS, 1986 apud DINIZ-PEREIRA, 2014, p. 39). A formação na perspectiva da emancipação propõe a constituição de comunidades reflexivas nas escolas, sendo desenvolvido de forma colaborativa.

Conforme já assinalado, Vigotski propõe que a origem dos processos psicológicos superiores ocorre a partir do social. Portanto, é na interação social e cultural que o indivíduo constitui-se humano, sendo a constituição das funções psicológicas superiores um processo mediado. À medida que a sociedade se constitui historicamente, é considerado também um sujeito histórico, portanto histórico-social- cultural. A origem social das funções superiores é a ideia inovadora e revolucionadora proposta por Vigotski na psicologia (SIRGADO, 2000, p. 52). Cabe destacar que “as funções biológicas não desaparecem com a emergência das culturais mas adquirem uma nova forma de existência: elas são incorporadas na história humana” (SIRGADO, 2000, p. 51 [grifos do autor]).

Dessa forma, para a caraterização da constituição dos processos psicológicos Vigotski (2007) defendeu duas linhas de desenvolvimento do sujeito: a linha de desenvolvimento natural do sujeito e a linha de desenvolvimento cultural. A primeira corresponderia aos processos psicológicos elementares, que não dependem da socialização para o seu desenvolvimento. Ela se refere às funções compartilhadas com

outras espécies animais, não sendo, dessa forma, processos psicológicos especificamente humanos.

Nesse sentido, a linha de desenvolvimento natural é caracterizada como correspondente à maturação do organismo. De acordo com Vigotski (2007, p. 4 [grifos do autor]) a “maturação per se é um fator secundário no desenvolvimento das formas típicas e mais complexas do comportamento humano [...] [que] caracteriza-se por transformações complexas, qualitativas, de uma forma de comportamento em outra”. O desenvolvimento das funções psíquicas elementares corresponde aos processos biológicos de desenvolvimento humano. Formam a base para a constituição dos processos psicológicos superiores, embora não se considere a linha de desenvolvimento cultural como uma continuidade da natural. É outro processo singular, por isso foi proposto por Vigotski duas linhas desenvolvimento independentes que se imbricam no desenvolvimento do psiquismo. “O social intervirá como um fator inerente à constituição dos processos psicológicos superiores, isto é, não intervirá como um fator coadjuvante” (BAQUERO, 1998, p. 28).

Portanto, no desenvolvimento humano é fundamentalmente importante a linha de desenvolvimento cultural, que constitui os processos psicológicos superiores. Estes se desenvolvem a partir da internalização das interações sociais vivenciadas pelo indivíduo. Castanho e Costa (1999, p. 109) afirmam que Vigotski, bem como Luria e Leontiev, defendem o sócio-interacionismo, “consolidando-se a noção de que o indivíduo aprende na interação com os parceiros. Todo conhecimento é conhecimento partilhado”.

Nesse sentido, o sujeito professor em contexto formativo não pode ser considerado um indivíduo passivo, como ocorre na perspectiva da racionalidade técnica, em que o professor é assumido como um técnico que deve acatar e desenvolver receitas produzidas por terceiros (MORTIMER; PEREIRA, 1999).

Considerar o professor um ser interativo (CASTANHO; COSTA, 1999 apud VIGOTSKI) implica reconhecer que o aprendizado da função docente ocorre pela interação com outros sujeitos. “A interação social construída entre o grupo de professores, bem como entre os diversos elementos do ambiente culturalmente estruturado, fornece a matéria-prima para o desenvolvimento profissional docente” (IBIAPINA; FROTA, 2008, p. 136), ou seja, a formação de professores precisa valorizar a interação docente. A relação de colaboração pressupõe uma modalidade de interação docente que julgamos de suma importância para a constituição de habilidades

e conhecimentos pelo professor, como a capacidade de analisar, criticar e refletir sobre as suas teorias e ações pedagógicas e experiências compartilhadas no coletivo. À medida que o sujeito se constitui pela interação social, a discussão, o diálogo e as reflexões conjuntas que permeiam o contexto colaborativo são fatores importantes para a formação docente. As reflexões podem ser enriquecidas pelo compartilhamento de conhecimentos com outros sujeitos. Rosa defende que “somente no âmbito interpessoal é que a espiral autorreflexiva se desenvolverá” (ROSA, 2004, p. 58). A formação docente, dessa forma, ocorre pela comunicação com outros sujeitos.

Reconhecer o professor como sujeito capaz de colaborar no desenvolvimento da reflexão no grupo implica assumi-lo como sujeito no processo formativo, o que implica conceder autonomia ao professor. Carr e Kemmis (1988, p. 58, tradução nossa), sugerem que para uma “autonomia profissional mais extensa e umas responsabilidades mais dilatadas, é preciso que sejam os próprios docentes quem constroem a teoria educativa, por meio de uma reflexão crítica sobre seus próprios conhecimentos práticos”.

Assumir-se capaz de colaborar com a reflexão no grupo pressupõe também a disposição à aceitação de ideias dos outros colaboradores. Implica reconhecer que as interações vivenciadas no coletivo são motores da análise e reflexão sobre a própria prática, assim coadjuvantes para a formulação de novas intervenções pedagógicas e, constituição e reconstrução de conhecimentos sobre docência. Nesse sentido, os grupos colaborativos mantém relevância pelas interações sociais baseadas na discussão, no diálogo e na reflexão coletiva.

Na perspectiva colaborativa de formação docente todos os sujeitos são considerados professores em formação e colaboradores na produção do conhecimento, que se dá a partir da análise e reflexão sobre as práticas compartilhadas no coletivo com aporte em referenciais teóricos e ideias partilhadas pelos sujeitos. Assumir que o grupo colaborativo produz conhecimentos que podem ser compartilhados no coletivo ou com o público externo por meio de publicações científicas implica considerar que as interações docentes são momentos de formação.

Os conhecimentos compartilhados nas interações docentes podem ser internalizados pelos sujeitos, na acepção de Vigotski. No processo de internalização o indivíduo faz uso de instrumentos, que podem ser físicos, que são os objetos materiais, e/ou instrumentos abstratos ou simbólicos, que são os signos. Estes são os instrumentos

mediadores na constituição dos processos psicológicos superiores, segundo Vigostki, que introduz na psicologia a noção de mediação semiótica.

Dessa forma, a constituição dos conhecimentos ocorre em um processo mediado pela palavra. O significado de uma palavra, ou conceito, é o mediador para a constituição de sentido por um indivíduo acerca da palavra ou conceito. Segundo Vigotski (2008, p. 7) “a transmissão racional e intencional de experiência e pensamento a outros requer um sistema mediador, cujo protótipo é a fala humana, oriunda da necessidade de intercâmbio durante o trabalho”. Todo desenvolvimento é caracterizado por se resultar de contextos sociais, portanto existente no plano interpsicológico, que ao ser internalizado passa a fazer parte do funcionamento psicológico do sujeito.

Cabe destacar que a internalização das funções interpsicológicas para o plano individual não pressupõe a cópia. Ocorre a partir de um processo de desenvolvimento que envolve a reconstrução e a transformação em funções intrapsicológicas como decorrente da incorporação em um novo sistema. O sujeito se coloca num movimento em que “um processo interpessoal é transformado num processo intrapessoal [...] Isso se aplica igualmente para a atenção voluntária, para memória lógica e para formação de conceitos” (VIGOTSKI, 2007, p. 58 [grifos do autor]).

A internalização de conhecimentos ocorre em um processo de reconstrução. A aprendizagem implica um esforço do sujeito na produção de seus conhecimentos. Nesse sentido, a apropriação dos conhecimentos pedagógicos pelo professor não pode ocorrer pela transferência de teorias e práticas pedagógicas formuladas por outros sujeitos. É necessário um esforço pessoal de reconstrução dos conhecimentos para que estes sejam internalizados. Portanto, a formação do professor também ocorre pelo compartilhamento de experiências e conhecimentos pelos sujeitos. “Os processos de desenvolvimento consistem na apropriação de objetos, saberes, normas e instrumentos culturais em contextos de atividade conjunta socialmente definidos” (BAQUERO, 1998, p. 76 [grifos do autor]).

A internalização de saberes, partilhados no coletivo, justifica a importância das interações vivenciadas no coletivo docente. O formador colabora com o grupo de forma dialogada, assim como todos os professores assumidos como colaboradores e, dessa forma, com capacidade de contribuir com o diálogo no coletivo. “O papel de facilitador em um grupo geralmente colaborativo, em princípio, pode ser assumido por qualquer membro desse grupo” (CARR; KEMMIS, 1988, p. 215, tradução nossa).

O grupo torna-se gradativamente colaborativo, ao passo que os sujeitos assumem atitudes de colaboração, na análise de práticas, diálogo e reflexão. O grupo torna-se verdadeiramente colaborativo à medida que os sujeitos se desprendem da dependência em relação ao especialista para a reflexão. O coletivo docente que se constitui autorreflexivo torna-se capaz de investigar e refletir sobre suas práticas sem depender da interferência de um agente externo.

A capacidade de integrar-se ao mundo pela habilidade de refletir e tomar decisões são características humanas. Dessa forma, a reflexão, a crítica, a formulação de posicionamentos e o diálogo são habilidades desenvolvidas a partir da interação social, ou seja, são internalizadas a partir de experiências culturais para o plano intrapsicológico.

A aprendizagem pelo professor da capacidade reflexão ocorre em coletivos docentes em que o professor formador conduz o diálogo no grupo, que se situa na IA prática. A apropriação de teorias e o desenvolvimento de novas intervenções pedagógicas dependem da ajuda do professor formador, que já possui internalizado as ideias que irá compartilhar. Propomos que em contextos em que a reflexão já tenha sido incorporada como parte do desenvolvimento real dos sujeitos, o grupo é capaz de auto- refletir, ou seja, pode-se considerar que está capacitado a aprender a aprender e pesquisar suas práticas, sem a condução do professor formador, que se torna um colaborador como qualquer outro participante, que pode assumir a condição de colaborador (CARR; KEMMIS, 1988, tradução nossa). Esse é o objetivo de contextos colaborativos, dentro da perspectiva da IA crítica, em que qualquer sujeito pode contribuir para o desenvolvimento de aprendizagens pelo coletivo, não sendo pré- determinado um sujeito com desenvolvimento superior para a constituição de aprendizagens pelo grupo.

Essa forma de interação é importante, pois possibilita que cada um dos sujeitos contribuam para a reflexão no e do coletivo, com a consequente apropriação que pode ocorrer pelos demais das ideias compartilhadas, tornando-se parte do desenvolvimento de outros sujeitos.

Portanto, enfatizamos a importância das interações vivenciadas pelos docentes em um contexto colaborativo de formação de professores, que, além do diálogo docente-docente, se inclui o diálogo com os referenciais. Alarcão (2010, p. 49) destaca três formas de diálogo: “um diálogo consigo próprio, um diálogo com os outros,

incluindo os que antes de nós construíram conhecimentos que são referência, e o diálogo com a própria situação”.

O diálogo em contexto formativo é fundamental na constituição do sujeito, à medida que o sujeito compreende e se apropria da teoria em processos interativos.

No reconhecimento de problemas da prática é necessário uma análise crítica, reflexiva e problematizadora acerca da realidade da sala de aula para que esta possa ser problematizada, o que pode ser impulsionado pelo confronto de ideias no coletivo docente. No próximo item desenvolvemos uma reflexão sobre indícios presentes no Regimento Referência das Escolas de Ensino Médio Politécnico da Rede Estadual e na Proposta Pedagógica para o Ensino Médio Politécnico sobre a necessidade da problematização pelo professor.