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A importância da manutenção da vocação científica na universidade do século

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CAPÍTULO IV: “2007” E A DERRADEIRA INVASÃO DO “TEMPLO SAGRADO DA INTELLIGHENZIA”

1. A importância da manutenção da vocação científica na universidade do século

O item que ora se inicia tem por objetivo respaldar a defesa, que vem sendo feita em todos os períodos retratados pela tese, de uma universidade voltada mais para o trabalho científico e menos para a formação meramente profissional. Os avanços no campo da ciência e do conhecimento, típicos da pós-modernidade, aumentam sobremaneira a importância político-ideológica das instituições de pesquisa e o poder dos cientistas, que, ao contrário dos momentos anteriores, passariam a agir mais politicamente, assumindo até mesmo a direção dos governos.

Para o leitor que acabou de sair do capítulo III, instigado pela ligação temática que os seus parágrafos finais estabeleceriam com o capítulo IV, este item pode representar, à primeira vista, uma digressão na cronologia que almejamos trilhar na sequência dos capítulos da tese. Mas não o é. Quando sustentamos, no âmbito específico de nosso objeto de estudo, que a UFRRJ deveria rever a sua opção por uma expansão massificada, não desejamos que nossa argumentação caia no lugar comum de se tornar meramente panfletária. Há algumas linhas atrás, falava-se exatamente da necessidade de o trabalho intelectual se embasar na racionalidade da ciência e não na subjetividade da política. Daí a justificativa da importância deste item inicial.

Para referendar a relevância da manutenção (e, se possível, até mesmo ampliação) da vocação científica na universidade do século XXI, mobilizamos estudos de Bruno Latour, um dos mais influentes sociólogos da atualidade. De início, convém, no entanto, ressaltar a existência de alguns entraves que dificultaram, em certa medida, a compreensão da leitura da modernidade feita por Latour. O próprio sociólogo francês, em alguns momentos de autocrítica, atribui a si próprio a causa de o entendimento pleno de suas ideias representar um desafio aos que o leem:

Perguntas demais, bem o sei, para um ensaio que não tem outra desculpa que não sua brevidade. Nietzsche dizia, sobre os grandes problemas, que eram como banhos frios: é preciso entrar rápido e sair da mesma forma (LATOUR, 2009, p. 17). [...] e defronta-se com este mesmo problema que estou abordando desajeitadamente [...] (LATOUR, 2009, p. 56).

Depois de todas as horrorosas dificuldades desse livro [...] (LATOUR, 2002, p. 272).

Não obstante a maior complexidade e densidade estilística do autor mobilizado, encontramos, a partir da leitura de seus textos, grande coerência e inteligibilidade na

apropriação de suas análises em nosso suporte argumentativo de suprema valorização da atividade científica do contexto do “2007”.

Tal atividade intensificou-se, no cenário mundial, bem antes da data substantivada neste capítulo. Latour (2009) destaca o Iluminismo como o marco da liberação de uma “hipoteca religiosa”, que deu ao homem a capacidade de criticar o obscurantismo dos antigos poderes ao começar a desvendar, por meio da ciência, os fenômenos naturais. O autor vislumbra, no século XIX, o que denomina “Iluminismo seguinte”, que foi além do anterior, ao permitir criticar não apenas os preconceitos do obscurantismo usual, como também os novos preconceitos das ciências naturais movidos, então, pela ideologia. Com o advento desses dois “Iluminismos”, inaugurava-se a modernidade: “Ninguém é moderno se não ansiou por esta aurora e não vibrou com suas promessas” (p. 41).

Desde então, a aceleração das descobertas no campo científico concede a elas uma posição intermediária entre objeto e sujeito, o que faz Latour nomeá-las “quase-objetos” ou “não-humanos”. Seus textos de 1994, 1999 e 2002 82 são permeados pelas palavras-chave:

“proliferação dos quase-objetos” e “irrupção dos não-humanos”. A ciência vai crescendo tanto de importância no cenário contemporâneo que assume a relevância, outrora religiosa, de marco temporal. Verificou-se, com essas leituras, que o “antes e depois de Cristo” vem sendo substituído pelo “antes e depois do computador”, ou pelo “antes e depois da penicilina, da robótica, da nanotecnologia etc.”.

A disseminação da ciência em setores diversos das sociedades, sobretudo as ocidentais, vai, aos poucos, aproximando polos semânticos opostos: fetiche e fato. O primeiro remeteria a crenças absurdas, enquanto o segundo, à realidade exterior. A ciência se revelaria essencialmente na racionalidade dos fatos. Sendo assim, o fetiche seria anti-científico, por sua irracionalidade, fraqueza dos crentes e ingênuos. Latour (2002) rompe com essa oposição ao considerar o trabalho científico, ao mesmo tempo, fetichista e anti-fetichista. O fato em si, fabricado no laboratório, passa por um efeito mágico de inversão e deixa de ser 100% racional e objetivo para adquirir um sentido político, social e/ou cultural, “fetichizando-se”.

Sendo assim, em um mundo atualmente movido pela ciência, Latour (2002) observa ser impossível a um pesquisador fazer “apenas” ciência. O fetiche das descobertas científicas advém desta impossibilidade. Em seguida, exemplifica:

É possível que um cientista se tome por um cromossomo e que movimente toda uma indústria, toda uma ciência, como se este duplo abalo só perturbasse fatos homogêneos. Quando o cromossomo 11 da indústria de cerveja surgir no mundo [...] este será tomado de assalto e os outros deverão subitamente ocupar-se das consequências – éticas, políticas, econômicas – desta ação (p. 62).

Em outras palavras, tomando por base a citação acima, observa-se que, do fundo de um laboratório, pode-se revolucionar o mundo. Essa constatação atribui à atividade científica um imensurável poder. Nas cortes de justiça, por exemplo, as experiências em laboratório (não-humanas) passam a ter mais autoridade que os depoimentos confirmados por testemunhas honrosas (humanas). Os testes de DNA para investigar crimes e paternidades que o digam. Segundo Latour (2009), a ciência (essa não-humana privada de alma mas à qual é atribuído um sentido) chega a ser mais confiável que o comum dos mortais: “De acordo com a constituição, em caso de dúvida, mais vale apelar aos não-humanos para refutar os humanos” (p. 29).

82Estão sendo considerados, nessas datas, os anos em que os textos foram escritos, e não as datas das últimas edições desses textos, que seriam: 2009, 2004 e 2002, respectivamente.

Por analogia, esse poder conquistado pela ciência na contemporaneidade transfere-se para o cientista, testemunha confiável e treinada, representante escrupulosa dos fenômenos criados pelas máquinas artificiais dos laboratórios. O trabalho dele consiste justamente em inventar, por meio de instrumentos e do artifício do laboratório, a transferência do ponto de

vista, tão indispensável à vida pública. A natureza torna-se reconhecível por intermédio dos

sábios (cientistas), que agem como terceiros em todas as relações com a sociedade. O cientista será, então, o mediador entre o conhecimento gerado no laboratório e a assimilação do mesmo pelas massas. O seu poder é descomunal: “A metade da vida pública encontra-se nos laboratórios; é lá que se deve procurá-la” (LATOUR, 2004, p. 132).

Na modernidade recente, impregnada por avanços tecnológicos de toda ordem, as disciplinas científicas vão se tornando cada vez mais visíveis, presentes e agitadas, saindo dos limites do laboratório e multiplicando-se nos recintos, nas arenas, nas instituições e nos fóruns:

Se o leitor estiver ainda em dúvida, que olhe os jornais e revistas, e verá, por toda a parte, sinais desta profunda mudança: longe de suspender a discussão pelos fatos, cada notícia científica joga mais lenha na fogueira das paixões públicas (LATOUR, 2004, p. 126).

Latour (2009) verifica que, nesse contexto de aceleração tecnológica ilimitada, os “quase-objetos” (monstros da primeira, segunda e terceira revolução industrial) passam a circular, cada vez mais normalmente, enquanto sujeitos, objetos e discurso. O problema é que a proliferação, em excesso, desses “quase-objetos” faz com que os seus sistemas “leitores” fiquem sobrecarregados, provocando curtos-circuitos entre a natureza, de um lado, e as massas humanas, de outro.

Deflagra-se um momento de crise provocado pelo funcionamento da ciência em redes. É o caso, por exemplo, dos príons, proteínas aparentemente responsáveis pela doença chamada “mal da vaca louca”:

Os laboratórios trabalham, os fazendeiros questionam, os consumidores se inquietam, os veterinários apontam sinalizações, os epidemiologistas analisam suas estatísticas, os jornalistas investigam, as vacas se agitam, os carneiros tornam-se trêmulos (LATOUR, 2004, pp. 193-194).

Diante do que Latour chama de generalização do laboratório, quem deve julgar os elos dessa rede? Ou seja, na atualidade, os assuntos se apresentam de forma misturada na sociedade atual: tramas de ciência se misturam à política, economia, direito, religião, ficção etc. A incapacidade de construir ordenadamente esse “caldo intelectual” alimenta a citada crise: “O navio está sem rumo: à esquerda o conhecimento das coisas, à direita, o interesse, o poder e a política dos homens” (LATOUR, 2009, p. 8).

Apesar de suas propriedades miraculosas, a proliferação da ciência nas redes da modernidade apresenta um lado negativo, denominado por Latour (2009) como “diabolização”, que consistiria em ser moderno para pior, acreditando está-lo sendo para melhor. Parte-se do pressuposto de que ser moderno significa considerar o passado uma mistura bárbara e o futuro uma distinção civilizatória. No entanto, esse processo não se dá de forma perfeita, pois ainda permanecem ilhas de barbárie em locais onde a eficácia técnica e o arbitrário social já se encontram por demais misturados. Modernizar verdadeiramente seria liquidar essas ilhas:

Mas em breve teríamos completado a modernização, liquidado estas ilhas, e estaríamos todos sobre um mesmo planeta, todos igualmente modernos, todos igualmente capazes de tirar proveito da racionalidade econômica, da verdade científica e da eficiência técnica (LATOUR, 2009, p. 129).

Essa constatação justifica o título da obra de Latour escrita em 1994 e reeditada em 2009: Jamais fomos modernos. Segundo o sociólogo francês, a modernidade jamais começou porque, para que isso acontecesse, haveria a necessidade de se fazer uma revolução que pudesse construir toda uma história de rupturas radicais. Isso, no entanto, nunca ocorreu. Até mesmo as Revoluções Francesa e Bolchevique, consideradas “parteiras” de um novo mundo, apenas prolongaram e aceleraram práticas e circulação de conhecimentos entre um número maior de atuantes. Nessa ótica, a argumentação de Latour em muito se aproximaria de um contexto social tipicamente conservador explicitado no capítulo I desta tese.

A verdadeira revolução é descrita mais claramente na obra de 1999 (reeditada em 2004), quando Latour vê nos “não-humanos” o poder de

adentrar a sociedade civil para bombardear as muralhas da cidade, humilhar os poderosos, aniquilar o obscurantismo, elevar os humildes, fazer calar os tagarelas e fechar a boca dos magistrados. Pela primeira vez, nenhuma traição abriu docemente a galeria para fazê-los (os não-humanos) entrar na cidade a fim de reconstruírem a democracia moribunda “sobre as bases firmes da razão” (LATOUR, 2004, p. 273).

Numa visão mais otimista, se comparada à da obra de 1994 (reeditada em 2009), Latour vislumbra na ciência uma possibilidade de contribuição para tornar a sociedade mais equilibrada:

Quanto mais se trabalha no laboratório, mais os estados de fatos são detectados, rápida e claramente; quanto mais os opinantes se equiparem, mais bem articuladas serão suas opiniões; quanto mais se elaboram tentativas para unir os bens e pessoas, melhor será a qualidade da pesquisa; quanto mais nos obstinamos em levantar problemas artificiais, mais cultivaremos a arte do escrúpulo (LATOUR, 2004, p. 278).

O verdadeiro modernismo não contaria, então, com uma ciência descontextualizada ou segregadora, que elimina violentamente os excluídos do coletivo, ao não constatar, hipocritamente, a sua existência. Ao contrário, a ciência deve favorecer a democracia: “Para bem conduzir a tarefa impossível de compor o mundo comum, o demos havia se acostumado a esperar do alto o socorro da Ciência” (LATOUR, 2004, p. 302).

Essa democratização advém, ainda, do já citado processo de generalização do

laboratório, que acrescenta à discussão do cotidiano científico uma série de vozes novas:

Até aqui, no regime modernista, experimentava-se, mas somente entre cientistas; todos os outros, frequentemente, malgrado eles mesmos, tornavam-se participantes de um empreendimento que não tinham os meios de julgar. Digamos, então, que é o coletivo no seu todo que se define daqui por diante, como uma experimentação coletiva (LATOUR, 2004, p. 319).

A ciência, que já serviu bastante para fomentar guerras (entendendo-se as guerras como um desvio de sua missão), poderá assumir novas configurações:

A um dado momento, já que os objetos científicos criam o consenso e a harmonia, a Ciência terminará por se estender bastante para que os conflitos não sejam mais do que más lembranças. Isso levará tempo, mas um dia ou outro entraremos na terra onde correm os átomos e as partículas. A vitória da paz se encontra na esquina da rua (LATOUR, 2004, p. 354).

A importância da atividade científica na contemporaneidade, vislumbrada nas análises de Latour, aumenta bastante a relevância da vocação científica das universidades. Que instituição que se diga universidade pode ficar fora do contexto traçado? O que seria, de fato, democratizar uma universidade?

Inspirados na visão de Latour, podemos responder a essa pergunta afirmando que democratizar uma universidade seria reconhecer, no departamento universitário, a célula primeira a alimentar essa vocação científica. Os professores-pesquisadores localizados no departamento seriam os principais mediadores do “elo” universidade nas redes sociais de disseminação e aplicação dos conhecimentos científicos. Fariam parte do grupo de sábios com competência para tornar objeto de acordo o que, outrora, o fora de controvérsia. Teriam papel fundamental na eliminação das tais “ilhas da barbárie”, por meio da já mencionada disseminação e aplicação de seus conhecimentos.

Dessa forma, fortaleceriam a universidade, pois, de acordo com Latour (2009), o Estado, essa entidade altamente controladora e tentacular, como já comprovado nos capítulos anteriores, teria dificuldades técnicas de exercer o seu controle sobre os laboratórios, já que a nova claque de sábios neles situada pode contestar a autoridade de todos em nome do conhecimento que possui da natureza.

A valorização do departamento universitário nesse panorama de generalização do

laboratório é reforçada por Vianna (2004), conforme já mencionado no capítulo I. Este autor

considera a comunidade científica gestada nos departamentos universitários uma categoria de

intellighenzia institucional, de formação singular, na medida em que não postula participação

direta no Estado:

Se a intellighenzia adotou a comunidade científica como a sua forma expressiva de inscrição na vida pública, passando ao largo dos partidos políticos e da vocação para substituí-los, no interior do Estado, como uma representante em geral da sociedade [...] seu campo é o da sociedade civil, dos direitos, da reforma intelectual e moral, da cidadania (VIANNA, 2004, p. 211).

Segundo Vianna (2004), isso atribui um forte peso às universidades de vocação científica na sociedade da era tecnológica, pois a intellighenzia nucleada em seus departamentos pode inscrever-se no centro das questões implicadas na modernização brasileira, usando a ciência para erradicar o atraso e democratizar as oportunidades de bem estar social. Uma expansão do ensino superior que realmente contribua para o desenvolvimento da nação seria aquela que estimulasse a vida departamental das universidades, sugerida pela capacidade crescente destas de extrair recursos públicos para a formação de cientistas.

Na verdade, a valorização da vida departamental nas universidades, defendida por Vianna (2004), encontra-se relacionada a três tendências nas quais o autor apoia o seu ponto de vista: uma voltada para a Sociologia do Conhecimento, que, conforme dito, dissocia a ciência dos interesses do Estado e do mercado; outra vinculada à Sociologia de objetos fragmentários (a mulher, o negro, os sem-terra, os movimentos sociais), inscrevendo-se na vida pública a partir deles e, por fim, uma terceira e última, inspirada na Sociologia da Ciência, fundamentada por Latour e descrita da seguinte forma:

Prevê que o departamento seja um ator na construção de redes em torno de objetos definidos, estimulando a criação de laboratórios e dissolvendo, na prática, de sua atividade, as fronteiras entre a ciência, o público e o privado (VIANNA, 2004, p. 229).

Na avaliação de Vianna (2004) a respeito da aplicação da Sociologia da Ciência de Latour no incremento da inscrição do departamento universitário na vida pública, a dificuldade de obtenção de recursos públicos e privados para implementá-la surge como principal obstáculo.

Na nossa avaliação, os obstáculos iriam além dos entraves financeiros. Uma das dificuldades relacionadas ao cultivo da vocação científica dos departamentos universitários

residiria na sua origem personalista, pois eles, conforme afirmado no Capítulo III, surgiram no contexto da Lei da Reforma Universitária de 1968 para alocar os prestigiados professores catedráticos. Ou seja, os departamentos foram criados, naquelas circunstâncias, mais como mera substituição das cátedras e menos como lócus de desenvolvimento de pesquisas.

Como muitas vezes o “real” se distancia do “ideal”, pode-se concluir, diante do que foi exposto, que uma reforma das instituições universitárias inspirada nos moldes “latourianos” (um “ideal”) poderia abalar os alicerces de uma sociedade que vem primando normalmente pela conservação em suas relações de classe (o “real”). Neste “abalo”, os “templos sagrados da intellighenzia” de “invadidos” passariam a “invasores”, pois, ao disseminarem a aplicação dos conhecimentos neles produzidos, contribuiriam para a “invasão” da ciência em realidades externas à universidade e comuns às massas. Como nossa sociedade ainda se encontra firmemente inserida no campo ideológico da revolução passiva, o detalhamento que se fará, a seguir, do contexto do “2007” revelará o quão distante o ensino superior brasileiro ainda se encontra do “ideal latouriano”.

Daqui para frente, a estruturação temática do capítulo IV seguirá percurso semelhante ao do capítulo III, apresentando, no entanto, o cuidado adicional de não repetir reflexões já detalhadas na introdução (que centrou o problema da pesquisa nos anos 2000) e no capítulo I (que apresentou pontos relevantes de um novo tipo de sociabilidade, fragmentada e massificada, consolidada com a chegada dos anos 2000). O objetivo deste capítulo será, então, ampliar e aprofundar o já pontuado anteriormente.

2. O contexto do “2007” no plano mais geral: antecedentes e desdobramentos

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