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A inserção do mundo rural no contexto da Revolução de

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CAPÍTULO II: “1947” E O CONTEXTO DE TRANSFERÊNCIA DA SEDE DA “UNIVERSIDADE” DE APENAS DOIS CURSOS

1.2 A inserção do mundo rural no contexto da Revolução de

No que se refere ao mundo rural, ao adaptar o conceito prussiano de revolução “pelo alto” desenvolvido por B. Moore para a circunstância do pós-1930 brasileiro, Vianna (1976) destaca inicialmente alguns indicadores da modernização da época, como o crescimento das principais capitais, que passaram a ser polos atrativos da população e, por conseguinte, mudaram o sentido do movimento migratório de rural-rural para rural-urbano; e o aumento da produção industrial, que ultrapassou o das safras agrícolas. Em seguida, Vianna (Idem) lembra que a ciência política considera um traço peculiar dos regimes autoritários certo disfarce da intenção modernizadora, o que alimentaria um apelo conservador para uma “ruralização” com intenção de ocultar dos setores da pequena propriedade urbana e rural o projeto modernizador. Dessa forma, o fascismo protegeria a grande agricultura e a grande indústria à custa da neutralização política do operário agrícola e do pequeno camponês.

As elaborações de Vianna levam ao entendimento de que as políticas direcionadas ao mundo rural possuíram um efeito conservador sob dois sentidos: conservar o homem do campo em seu meio evitando o inchaço urbano e conservá-lo satisfeito 38 por se julgar amparado, no plano das leis, por um governo ao qual não interessava um maior dinamismo reivindicatório nas bases sociais agrárias. Feito isso, estava, então, conservado o latifúndio, justificando, na adaptação para o caso brasileiro, a denominação de “conservadora” adotada por Moore (1983) na qualificação deste tipo de revolução modernizadora.

Dependendo da interpretação dada a esse tipo de política duplamente conservadora, o presidente Getúlio Vargas pode ser considerado ora negligente diante das demandas do meio rural, ora um de seus maiores incentivadores. Se forem levadas em consideração as leis trabalhistas de seu governo, consagradas especialmente pela Consolidação das Leis Trabalhistas (BRASIL, 1943), pode-se dizer que este presidente “esqueceu” o trabalhador rural, por tornar esta legislação (artigo 7º do título I) inaplicável a ele.

Por outro lado, se tomarmos por base outras leis, que poderiam ter desagradado, em algumas oportunidades, os interesses dos grandes proprietários, observaremos uma valorização política, até então inédita no Brasil, do homem rural brasileiro, concretizada pelos seguintes decretos (DEZEMONE, 2008):

→ Decreto 24.606, de 6/7/1934: extinguia o sistema de arrendamento de terras da União. → Decreto 6.569, de 8/6/1944: tornava obrigatória a exibição do título de propriedade pelos ocupantes de terras que a União considerava como suas.

→ Estatuto da Lavoura Canavieira, de 21/1/1941: onerava com maior taxação os usineiros do nordeste açucareiro.

→ Decreto-lei 6.969, de 19/10/1944: oferecia garantias de salário, entre outras, para moradores das regiões açucareiras, desde que no sistema de colonato, parceria ou renda. → Decreto-lei 7.038, de 10/11/1944: previa a extensão do direito de sindicalização ao campo. → Decreto-lei 18.809, de 5/6/1945: criava seguridade social com cobertura de acidentes de trabalho na agricultura e na pecuária.

38Dezemone (2008), a partir da leitura de cartas endereçadas pelo povo ao presidente Getúlio Vargas, constata a construção coletiva de uma imagem favorável a este presidente pela população rural, apesar de ela não ter sido tão beneficiada como a urbana por leis trabalhistas. Entre os fatores facilitadores dessa construção positiva, estaria a ação do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), que vinha sempre associando a imagem de Vargas a benefícios sociais, e os programas oficiais de rádio, que auxiliavam na divulgação de tais benefícios.

O entendimento que se pode ter dessa possível ambiguidade legislativa do governo Vargas encontra-se relacionado ao seu interesse de, contrariando minimamente as oligarquias rurais, conter o êxodo rural e incentivar a ocupação das regiões desabitadas, adotando, como estratégia para tal, um programa denominado Marcha para o oeste. Mais de cunho ideológico do que econômico, a Marcha para o oeste, que consistiu, a partir de 1938, na criação de incentivos para o povoamento do interior brasileiro através da agricultura e da pecuária, atribuía funções diversificadas ao movimento da fronteira brasileira, entre elas: a) fixar em zonas mais produtivas e menos propícias a flagelos os excedentes de população de certas regiões do país; b) substituir a imigração estrangeira, que poderia estar trazendo para o Brasil “ideologias exóticas”; e c) evitar a ameaça de uma excessiva aglomeração de braços nas grandes cidades (VELHO, 1979).

Oliveira et al. (1996), reiterando Velho (1979), comparam a Marcha para o oeste às bandeiras, por ambas terem almejado atingir objetivos semelhantes: a construção da brasilidade e da unidade nacional a partir da ocupação dos espaços vazios do país, não contestados pelos grandes proprietários rurais; e a preservação da segurança nacional, através da contenção ou mesmo interrupção do movimento migratório para as cidades. O “oeste” aí não era apenas o do Rio de Janeiro, mas o do país. A exemplo das bandeiras, a brasilidade seria redescoberta na ocupação dos espaços vazios do país, empurrando os “sem-terra” da época para um lugar fora das influências subversivas dos meios mais urbanos.

Mesmo envolvida em controvérsias por parte de alguns historiadores (DIETRICH, 2010), existe, ainda, mais uma função atribuída à Marcha para o oeste, vinculada a invasões feitas pela Alemanha e pela Itália às colônias da Ásia e da África, durante a Segunda Guerra Mundial. Como no Brasil havia muitos imigrantes alemães e italianos e também um imenso território com espaços vazios, o presidente Getúlio Vargas temeria que o Brasil também pudesse ser invadido pelos exércitos do Terceiro Eixo.

As medidas elementares para a concretização da Marcha para o oeste consistiam em saneamento, educação e transportes. No entanto, os recursos que o Estado brasileiro tinha a seu dispor eram relativamente poucos, logo a intenção de povoar a fronteira desocupada representava, como dito, uma estratégia mais ideológica do que econômica de canalizar tensões para longe da estrutura agrária concentradora, estabelecida desde os tempos coloniais.

Torna-se importante ressaltar que a expressão “Marcha para o oeste” não é uma peculiaridade do povoamento brasileiro, pois também foi usada, em análises de F.J.Turner (REIS, 1980), para qualificar a colonização da América e um de seus principais alicerces, que seria o espírito de aventura do colonizador americano em deslocar continuamente a fronteira do leste para o oeste. Esse perfil psicocultural de busca de oportunidades de apropriação individual de recursos favoreceria, no plano político, a consolidação de uma ordem democrático-liberal, por produzir na sociedade uma propensão para a liberdade do indivíduo de ascender socialmente e uma ambição pelo bem-estar das massas.

Em contraste com a experiência americana, o padrão de colonização brasileiro se manteve à custa do monopólio da terra, o que modificou completamente o perfil da Marcha para o oeste brasileira, se comparada ao modelo americano, conforme constatado por Velho (1979, p. 146):

Ao passo que para Turner a fronteira é o locus onde se desenvolve a democracia americana, para Cassiano Ricardo a experiência da fronteira leva ao desenvolvimento do autoritarismo brasileiro. Em ambos os casos a fronteira é utilizada como matéria-prima para mitos de origem. No entanto, cada um dos mitos acaba sendo o oposto do outro, o que é para nós extremamente revelador em

termos do contraste que viemos apresentando entre desenvolvimento burguês e autoritário.

Caio Prado Júnior (1946; 1977) avalia que a Marcha para o oeste, preconizada como uma política de penetração do interior, repete dois erros que permeiam o povoamento brasileiro desde a sua origem: a dispersão (existência de muitos espaços vazios) e a instabilidade (caráter nômade da população resultante da falência econômica de algumas regiões). Antes de se investir no desbravamento de sertões inacessíveis, deveria se cuidar do que ficou para trás: vastos territórios de solos desgastados e decadência precoce. A história brasileira mostra momentos em que a ação estatal incentivou o povoamento de determinadas regiões facilitando a aquisição de terras. No entanto, muitas não prosperaram, seja porque as terras ficavam muito afastadas, seja porque os trabalhadores contemplados (os imigrantes, por exemplo) não sabiam manejá-las. De acordo com Caio Prado Júnior, ao contrário do que sempre se fez, uma colonização não deveria ter por objetivo povoar territórios desertos, mas sim corrigir as falhas de povoamento já existentes.

Na proposta do historiador, os territórios despovoados deveriam servir como reserva futura a ser aproveitada oportunamente. Quando as áreas mais povoadas “transbordassem”, aí sim, seriam povoadas as indevassadas. Localizando-se em zonas velhas, a colonização gozaria de vantagens já existentes quanto a transportes, aparelhamento urbano e mercados próximos, sendo organizada em pequenas propriedades, uma vez que, ao contrário do assalariado e do fazendeiro, o pequeno proprietário é um elemento demograficamente estável. A propriedade para ele é uma habitação, um lar, uma fonte de subsistência, e não um negócio.

O problema é que nas zonas velhas não haveria normalmente tanta terra disponível, inviabilizando tal proposta pelo fato de ser incompatível com o contexto já explicitado de revolução modernizadora, defensora e mantenedora do latifúndio, que caracterizou a era Vargas.

Freyre (1982), posteriormente, nos anos 1960, apresentaria uma proposta de ocupação racional do extenso território brasileiro semelhante à de Caio Prado Júnior, no que chamaria de projeto “rurbano”, o qual almejaria à integração desejável dos opostos rural (interior/sertão) e urbano (litoral), unindo essas vocações a partir de obras de comunicação, como as estradas de rodagem, que articulariam, de forma mais eficaz, as zonas dispersas de povoamento do território brasileiro. Apesar dos custos dessas obras em áreas tropicais serem três vezes maiores do que em áreas temperadas, o autor as julgava essenciais na organização do espaço físico brasileiro, por mais antieconômico que parecesse. Comunidades seriam organizadas em pequenas propriedades, ao longo das rodovias, e contariam com escolas, centros sociais e áreas de lazer e recreação, dedicando-se ao cultivo dos hortigranjeiros.

Por ter sido implementada em um contexto de revolução “pelo alto” (conservadora), a Marcha para o oeste não apresentou propostas de reforma agrária para o mundo rural brasileiro. Ao contrário, a via modernizante preconizada nos anos 1930 previa, para o campo, exatamente o contrário:

O fato de o poder estatal se encontrar detido por uma elite agrária fechava o caminho da ampliação do mercado interno pela transformação radical do sistema de propriedade da terra. [...] Não havia alternativa que não essa, diante da regra maior do sistema – a intocabilidade do estatuto exclusivo da propriedade agrária, agora reforçada pela adoção, a nível de política do Estado, da via prussiana de capitalização da renda da terra (VIANNA, 1976, p. 150).

2. Da ESAMV à UR: trajetória da instituição até a transferência para o km. 47

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