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2.2 As leis da liberdade como fundamento do agir moral e o conceito de Sumo

2.2.2 Deus e a imortalidade da alma

2.2.2.2 A importância sistemática dos postulados

Esclarecido o status epistemológico dos postulados da razão prática pura, podemos agora concentrar os esforços nas questões arroladas acima: I) qual a relação dos postulados com a apregoada primazia do uso prático da razão pura sob o uso especulativo?; II) qual a relação dos postulados com a determinação do objeto incondicionado da razão pura?

I) Conforme já mencionado, na Crítica da razão pura os conceitos de Deus, imortalidade da alma e liberdade eram considerados ideias da razão por que não possuíam qualquer referência à experiência para, dessa maneira, se tornarem objetos de conhecimento teórico-especulativo. Tratavam-se de ideias regulativas da razão pura que não contribuíam para a ampliação de nossos limites cognitivos. Não obstante essa caracterização, a razão teórico-especulativa mantém seu interesse em conhecer tais ideias, redundando assim, em devaneios da imaginação e do pensamento. Por outro lado, em seu uso prático as ideias

259 Conforme afirma Kant em KpV, AA 5: 132: “Todos esses postulados partem da proposição fundamental da

moralidade, que não é nenhum postulado mas uma lei pela qual a razão determina imediatamente a vontade; esta vontade, precisamente por ser determinada desse modo, como vontade pura, exige essas condições necessárias ao cumprimento de seu preceito”.

260 Willaschek , 2010, p. 191. No original: “[...] this does not mean that their objects really exist [...], but rather that the content of these ideas is specific enough in order to refer to determinate objects”. Nossa livre tradução. 261

HAMM, Christian. “O lugar sistemático do Sumo Bem em Kant”. In: Studia Kantiana, nº 11, 2011, p. 51. Colchetes acrescentados.

adquirem novo status epistêmico, conforme abordado, tornando-se postulados práticos da razão pura. Ou seja, a crença nos postulados está fundamentada na lei moral e por isso os postulados de Deus, imortalidade da alma e liberdade adquirem no terreno prático da razão a realidade objetiva que não obtiveram no terreno teórico-especulativo. Dessa forma, a razão amplia seu escopo de atuação e satisfaz seu inevitável interesse em conhecer (ainda que praticamente) tais objetos. É o que podemos entender da seguinte afirmação de Kant:

Esses postulados [Deus, imortalidade da alma e liberdade] não são dogmas teóricos mas pressuposições em sentido necessariamente prático, logo, em verdade não ampliam o nosso conhecimento especulativo mas conferem realidade objetiva às ideias da razão especulativa em geral (mediante sua referencia ao domínio prático) e justificam conceitos, cuja possibilidade ela, do contrário, nem sequer poderia arrogar-se afirmar263.

De acordo com Willaschek264, Kant alega que estar racionalmente justificado a crer em algo sem as devidas evidências para sustentar essa crença é equivalente a alegação de que o uso da razão prática pura tem primazia sobre o uso teórico-especulativo. Kant discute especificamente o assunto da primazia do uso da razão pura, seja ele prático ou teórico, na seção intitulada “Do primado da razão prática pura em sua vinculação com a razão especulativa265”, na “Dialética” da segunda Crítica. O autor inicia sua análise apontando o que julga ser o critério de determinação da primazia de um uso da faculdade pura sobre o outro, a saber, o interesse. A partir disso, fica mais compreensível a equivalência destacada por Willaschek, citada acima. Para Kant, “[o] interesse de seu [da razão] uso especulativo consiste no conhecimento do objeto até os princípios supremos a priori, e o do uso prático na determinação da vontade em relação ao fim último e completo266”.

Kant centra-se no interesse da razão pura como critério de determinação da primazia de um de seus usos por que ele entende que há certa prerrogativa [den Vorzug] entre os interesses dessa faculdade superior. Devo lembrar que o interesse da razão pura sempre esteve direcionado ao incondicionado, como as “Antinomias” da primeira Crítica apontaram e a “Dialética” da segunda Crítica destacou. A propósito, cabe lembrar ainda que em se tratando desse inevitável interesse da razão, em seu uso especulativo, poucos êxitos ela obteve. Porém, algo diferente ocorre em seu uso prático, conforme a doutrina dos postulados da razão pura demonstrou, a saber, nesse domínio a razão satisfaz seu interesse em obter realidade objetiva

263 KANT, KpV, AA 5: 132. Grifos e parênteses de Kant. Colchetes acrescentados. 264

WILLASCHEK, 2010, p. 170.

265 KANT, KpV, AA 5: 119.

a respeito de certas ideias, ainda que na forma de postulados, i. é, crenças racionalmente justificadas – porque fundadas em princípios a priori –, mas sem evidências. Dessa forma, a razão em seu uso especulativo também satisfez seus interesses, afinal, como o autor chama atenção, “[...] se trata sempre de uma e mesma razão que, seja de um ponto de vista teórico ou prático, julga segundo princípios a priori [...]267”. Assim, assevera ele:

[...] não se pode de modo algum exigir da razão prática pura estar subordinada à razão especulativa e, pois, inverter a ordem, porque todo o interesse é por fim prático e mesmo o interesse da razão especulativa é somente condicionado e unicamente no uso prático é completo268.

II) A segunda questão a que nos propus investigar aqui se refere à relação entre os postulados práticos e o incondicionado da razão pura. Como já aludido, a razão pura em seu uso prático mantém o mesmo interesse pelo incondicionado demonstrado em seu uso teórico- especulativo. E é exatamente nesse aspecto, a respeito da satisfação do interesse da razão pura que aquele uso se sobressai sobre esse, pois, conforme argumentado, os postulados consistem em representações do incondicionado da razão cujo fundamento é a priori. Porém, há uma representação do incondicionado que reúne todas as demais, inclusive os postulados, num único objeto da razão pura, a saber, o Sumo Bem, como atesta Kant nesta passagem da segunda Crítica:

Como razão prática pura ela procura para o praticamente condicionado [...] igualmente o incondicionado e, em verdade, não como fundamento determinante da vontade; mas, ainda que este tenha sido dado (na lei moral), ela procura a totalidade

incondicionada do objeto da razão prática pura sob o nome de sumo bem269.

Os postulados práticos nada mais são do que condições de possibilidade do objeto incondicionado que representa o fim último da razão pura. Como argumentaremos mais detalhadamente na sequência do trabalho, liberdade, Deus e imortalidade da alma são pressuposições necessárias para a promoção e/ou realização do Sumo Bem. Portanto, aqueles conceitos tomados como meras ideias regulativas pelo uso teórico-especulativo da razão se tornam no uso prático pressupostos necessários para a efetivação do objeto incondicionado que representa o fim último da razão pura, em todos os seus usos. Cabe mencionar aqui que na terceira Crítica, Kant reconstitui a argumentação moral sobre o status epistêmico dos, por ora, postulados práticos da razão pura. Contudo, conforme analisamos na terceira seção desse

267

KANT, KpV, AA 5: 121.

268 KANT, KpV, AA 5: 121.

estudo, a argumentação do autor desenvolvida nas duas primeiras partes daquela obra assume como elemento fundamental para pensarmos a necessidade prática dos postulados e do Sumo Bem a determinação das características e capacidades da faculdade de julgar.