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Realizar e/ou promover o Sumo Bem? Uma proposta de solução do problema

2.2 As leis da liberdade como fundamento do agir moral e o conceito de Sumo

2.2.3 O Sumo Bem (das höchste Gut)

2.2.3.2 Realizar e/ou promover o Sumo Bem? Uma proposta de solução do problema

Ante o exposto até aqui sobre o conceito de Sumo Bem, no restante desta seção apresentamos uma proposta interpretativa ao chamado “dilema Beck”, i. é, a defesa do autor de que não consiste em nosso dever (moral) realizar e/ou promover a união entre dignidade de ser feliz e felicidade e que por isso se trataria de um conceito dispensável à filosofia prática de Kant. A via interpretativa que exporemos a seguir não segue nenhuma das propostas classificadas por Caswell (revisionistas, secularistas e maximalistas) no tocante a “divisão ontológica” do Sumo Bem, muito embora tenha sido parcialmente influenciada pela interpretação de Silber do problema aqui em análise.

Como já explorado, na literatura sobre o assunto existem diferentes tentativas de responder o “dilema Beck”, mas em nenhuma delas foram encontradas a expressão nítida da compreensão completa que Kant possui sobre o assunto.

Posto isso, em primeiro lugar, entendemos que não há uma disjunção exclusiva entre promover e realizar o Sumo Bem. Portanto, não se trata de ou promovê-lo (zu bewirken) ou realizá-lo (zu beförden), de maneira que a determinação de um cause a exclusão do outro. Não existe uma disjunção exclusiva porque se tratam de noções e níveis diferentes a respeito da consumação desse objeto da razão prática pura. Em segundo lugar, na segunda Crítica quando Kant se refere à união dos componentes do Sumo Bem como sua realização (bewirkung,

stattfinden) fica evidente que isso só é concebível, e ele está ciente disso, enquanto realidade

objetiva prática (“como se” fosse possível), semelhante a um postulado. Já as alegações sobre a promoção (die Beförderung) do Sumo Bem se referem ao contínuo ato de agir moralmente a ponto de se tornar merecedor da felicidade na medida de seu mérito. Ou seja, promover o Sumo Bem nada mais é do que estar em plenas condições de poder consumá-lo. Para tanto, é preciso, primeiro, ser digno de esperar uma recompensa à altura dos nossos atos morais, qual seja, a felicidade, e, segundo, postular certas condições capazes de consumar tal expectativa. Nesse aspecto, é preciso concordar com alguns pesquisadores do Sumo Bem kantiano (nesse caso os revisionistas) que depositam as esperanças na primeira e condicional parte daquele

conceito uma vez que, segundo compreendemos, é sobre a virtude que repousa a argumentação em favor de sua totalidade, i. é, de sua realização (objetivamente prática). Queremos dizer com isso que no contexto argumentativo da segunda Crítica não se trata de uma realização empírica, afinal o Sumo Bem é uma ideia moral cuja representação na experiência é impossível. Promover está num primeiro nível de consumação do Sumo Bem, enquanto que realizá-lo está no segundo e último nível, mais elevado. Portanto, consiste num dever humano tanto promover quanto realizar o Sumo Bem, desde que ambos os níveis de consumação sejam entendidos nos termos expostos acima e de modo cumulativo. Dessa forma, concordo tanto com Beck333 quanto com Silber334 quando afirmam que consiste em um dever do homem promover aquela parte que está em nosso poder, a virtude. Mas é preciso ressaltar: não apenas a virtude! Em síntese, significa dizer que a aceitação de que é um dever humano promover a virtude não exclui o dever de buscar realizar o Sumo Bem de modo objetivamente prático.

Na esteira da iniciativa de Caswell de rotular as interpretações sobre o Sumo Bem kantiano identificadas na literatura, consideramos essa proposta interpretativa sobre o “dilema Beck” como moralmente “progressiva” na medida em que entendemos que promover e realizar o Sumo Bem consistem em duas etapas distintas de sua consumação, mas cumulativas e graduais. Decorre que a solução do “dilema Beck”, segundo a interpretação exposta aqui, repousa na assunção de que são deveres morais do ser humano promover o Sumo Bem, tornando-se digno de ser feliz, e, consequentemente, realizá-lo.

2.2.4 Considerações parciais

Nessa seção verificou-se as bases de sustentação da argumentação kantiana em favor da moralidade no contexto da Fundamentação e da “Analítica” da Crítica da razão prática. Como exposto, a moralidade, ou virtude, fundamenta-se na ideia da liberdade, mais precisamente, no princípio a priori da autonomia da vontade que se expressa na forma de um imperativo categórico. Dessa forma Kant respondera a segunda pergunta do interesse da razão – “O que devo fazer?335” – apresentada por ele ainda na primeira Crítica.

333

BECK, 1960, p. 245.

334 SILBER, 1963, p. 478. 335 KANT, KrV, B 833.

Na sequência, já no segundo capítulo, nos concentramos na análise da relação da moralidade com as demais ideias da razão, denominadas por Kant no contexto da segunda

Crítica de postulados práticos da razão pura: Deus e imortalidade da alma. Verificou-se que

ao agir moralmente, i. é, praticando ações fundamentadas na autonomia da vontade e que sejam realizadas por dever, nos tornamos dignos de ser felizes. Consequentemente, faz-se necessário postular as ideias de Deus e de imortalidade da alma para conceber a realidade objetiva do fim último da razão prática pura, o Sumo Bem o qual, nada mais é, senão, do que a consumação da dignidade de ser feliz do sujeito merecedor. Por esse motivo que os postulados no terreno da razão prática pura se tornam condições de possibilidade daquele objeto incondicionado.

Posto isso, adentrou-se no problema provocado por L. W. Beck acerca da alegação feita por Kant na segunda Crítica na qual defende a necessidade moral de consumarmos o Sumo Bem, i. é, a felicidade conforme a dignidade do agente. Constatou-se na literatura que existem diferentes interpretações sobre o assunto e que, além disso, tais interpretações cometem alguns equívocos que tornam o problema ainda mais difícil de ser compreendido, na medida em que atribuem distintas definições ontológicas ao Sumo Bem. Por fim, fora destacada a definição unívoca desse conceito, aparentemente negligenciada por parte da literatura. Com efeito, apresentamos uma interpretação do problema motivado por Beck sobre a necessidade moral de consumar o Sumo Bem ao sustentar que consiste em dever moral do ser humano tanto promovê-lo quanto realizá-lo, desde que ambas as ações (promover e realizar) sejam entendidas corretamente: promover enquanto tornar-se digno de esperar a felicidade através de nossas ações morais e realizar no sentido de ser praticamente objetiva, i. é, não empiricamente, mas inteligivelmente.

3 O SUMO BEM COMO OPERADOR DE PASSAGENS NA FILOSOFIA DE