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2.1 A filosofia transcendental como crítica à metafísica especulativa

2.1.3 O realismo transcendental

Vimos na seção anterior que a ilusão transcendental consiste no engano da razão que toma como princípio fundamental de todo o condicionado, o incondicionado. O problema é, portanto, assumirmos com base na realidade fenomênica como um todo do mundo (condicionado) – seja em nossas ações e crenças, na natureza e seus objetos, nas relações entre os objetos e nós mesmos, etc – que há uma realidade escondida de nós, uma espécie de essência (incondicionada), e que, mais do que isso, é possível conhecê-la racionalmente regredindo até o princípio de tudo. Como Kant afirma em diversas passagens, essa ilusão da razão é natural e inevitável. Ou seja, a razão possui a característica intrínseca de sempre buscar e querer identificar o elemento unificador (incondicionado) da multiplicidade de condições, mediante aquele princípio sintético a priori. Não menos intrínseca é sua capacidade de enredar-se naquela busca, porque ela parte do condicionado apreendido sensivelmente, visível aos sentidos, digamos assim, em direção ao incondicionado, assumindo-o como necessariamente cognoscível uma vez que sua condição é dada. Nesse sentido, ela acaba por assumir o condicionado das coisas do mundo como se fosse a essência incondicionada, i. é, a coisa em si mesma. A razão assume como se fosse possível conhecer o incondicionado diretamente, através de seu conhecimento do condicionado, sem a necessidade de algo que mediasse esse processo de conhecimento. Ora, conforme argumentaremos a seguir, essa é a mesma tese do realismo transcendental: assumir como

possível conhecer imediatamente – sem qualquer elemento mediador – as coisas como são em si mesmas (o incondicionado), a partir do conhecimento do condicionado. Ou, dito com outras palavras, o realismo transcendental acredita que as coisas como nos aparecem – meros fenômenos, segundo o idealismo transcendental kantiano que abordaremos mais detalhadamente a frente – são as coisas em si mesmas (noumena, também de acordo com o idealismo de Kant)131.

O realismo transcendental pode ser visto sob duas perspectivas diferentes. Ambas atacadas por Kant e por seu idealismo transcendental. Conforme a crítica do autor denota, Leibniz é o melhor representante da perspectiva do realismo transcendental denominada de racionalismo dogmático porque considera os fenômenos representações das coisas como elas são em si mesmas132, i. é, representa os objetos empíricos – meros fenômenos, segundo o idealismo transcendental – como se fossem noumena133e, consequentemente, desconsidera a relevância que qualquer mecanismo subjetivo possa ter no processo cognitivo. Leibniz assumiu como única faculdade cognitiva legítima o entendimento e descartou a sensibilidade porque ela seria “[...] apenas uma forma confusa de representação e não uma fonte particular de representações134”. Enfim, Leibniz redundou em erro ao assumir a perspectiva realista transcendental, em sua vertente dogmática, porque “intelectualizou os fenômenos, tal como

131 A distinção entre phenomena, noumena e coisa em si é fundamental para a compreensão da filosofia de Kant

(Cabe um parêntese aqui para elucidar que, segundo comentário de Valério Rodhen – em CAYGILL, Howard. Dicionário Kant, 2000, p. 149, verbete “fenômeno” – a partir da segunda edição da Crítica aparência (Erscheinung) e phenomena tornam-se sinônimas). Kant caracteriza o primeiro nos seguintes termos: “Chamam- se fenômenos as manifestações sensíveis [ou aparências] na medida em que são pensadas como objetos, segundo a unidade das categorias” (KANT, KrV, A 248/49). Ou, “[...] são apenas fenômenos, i. é, meras representações que, tal como as representamos enquanto seres extensos ou séries de mudanças, não têm fora dos nossos pensamentos existência fundamentada em si” (KANT, KrV, B 519). Conforme lembra Nicholas F. Stange (em http://plato.stanford.edu/entries/kant-transcendental-idealism/#pagetopright acesso em 09/03/16), “Todos os objetos da intuição empírica são aparências [manifestações sensíveis], mas apenas aqueles „pensados segundo a unidade das categorias‟ são fenômenos”. Noumena é definido por Kant como “[...] coisas que sejam meros objetos do entendimento e, não obstante, como tais, possam ser dados a uma intuição, embora não intuição sensível (por conseguinte, coram intuitu intelectuali), teremos de as designar por numena (intelligibilia)” (KANT, KrV, A 249). Ou seja, a principal característica do noumena é de não ser um objeto da intuição sensível (intuitu intelectuali). Por isso que a “Estética” e a “Analítica transcendental” nos mostraram que não nos é possível conhecer noumena, pois, para nós, conhecer um objeto significa intuí-lo sensivelmente. Noumena está vinculado à coisa em si (Ding an sich), segundo Kant. Ambos, noumena e coisa em si, se caracterizam por não possuírem qualquer correspondente na experiência, ao menos na experiência que nós, seres humanos, somos capazes de apreender. Podemos pensar sobre a coisa em si (Ding an sich) desde que não sejam transgredidas as regras do pensamento possível, ou seja, que não seja um pensamento contraditório. O próprio autor, por vezes, usa coisa em si (Ding an sich) e noumena como sinônimos: em referência a aplicação dos conceitos puros do entendimento (Prolegômenos § 29) e quando trata sobre o incondicionado (KANT, KrV, B XX), por exemplo (Cf. CAYGILL, Howard. Dicionário Kant, 2000, p. 58, verbete “coisa em si mesma”). Diferentemente dos fenômenos, os quais, conforme passagem supracitada da Crítica em B 519, não possuem existência fundamentada em si mesmos. As coisas em si, segundo Kant, possuem. Portanto, é legítimo e coerente com o pensamento de Kant vincularmos coisa em si (Ding an sich) e noumena.

132

KANT, KrV, B 320.

133 KANT, KrV, B 322. 134 KANT, KrV, B 326.

Locke sensualizara os conceitos do entendimento [...]135”, afirma Kant. Leibniz e Locke, cada um a sua maneira, de acordo com o autor da Crítica, concentraram-se numa das faculdades cognitivas – naquela que consideravam que “se referia imediatamente às coisas em si, enquanto a outra nada mais fazia que confundir ou ordenar as representações da primeira136” – ao invés de distinguirem o entendimento e a sensibilidade e vê-las como fontes legítimas de representações, embora com suas diferenças. Leibniz não só intelectualizou os fenômenos, mas também as formas da sensibilidade, espaço e tempo. Ele pensou o espaço “como sendo uma certa ordem na comunidade das substâncias, e o tempo como a série dinâmica dos seus estados137”, possíveis de serem abstraídos a fim de evitar confusões desses conceitos.

Assim, o espaço e o tempo eram a forma inteligível da ligação das coisas (substâncias e seus estados) em si mesmas. As coisas, porém, eram substâncias inteligíveis (substantiae noumena). No entanto, [Leibniz] pretendia fazer passar estes conceitos por fenômenos, porque não concedia à sensibilidade nenhum modo próprio de intuição, procurando no entendimento todas as representações, mesmo as representações empíricas dos objetos, e não deixando aos sentidos mais do que a mesquinha função de confundir e desfigurar as representações do entendimento138.

A outra perspectiva do realismo transcendental, oposta ao racionalismo dogmático e também combatida pelo idealismo kantiano, toma as condições subjetivas que participam da constituição cognitiva como se fossem coisas em si mesmas. Ou seja, de acordo com a segunda vertente do realismo transcendental, o mundo como percebemos através de condições da sensibilidade é a representação fiel das coisas como elas são em essência. Ademais, as condições de possibilidade dos objetos, que podem ser percebidas pela nossa sensibilidade, não são condições de nossa subjetividade, mas constituem os próprios objetos. Assim, diferentemente do racionalista dogmático, para um representante da segunda vertente do realismo transcendental não nos é possível abstrair das condições da sensibilidade, espaço e tempo, pois elas não compõem a nossa subjetividade. Elas independem de nossas faculdades cognitivas em geral. Essa vertente do realismo transcendental, oposta ao racionalismo

dogmático, pode ser denominada de empirismo dogmático139. Sobre o realismo

transcendental, em especial esse último, o empirismo dogmático ou realismo empírico, Kant afirma:

135 KANT, KrV, B 327. Grifos de Kant. 136 KANT, KrV, B 327.

137

KANT, KrV, B 331.

138 KANT, KrV, B 331. Parênteses e grifos de Kant. Colchetes acrescentados. 139 Kant chama de “realismo empírico” (KANT, KrV, A 370).

[...] um realismo transcendental, considera o espaço e o tempo como algo dado em si (independente da nossa sensibilidade). O realista transcendental representa, pois, os fenômenos exteriores (se se admite a sua realidade) como coisas em si, que existem independentemente de nós e da nossa sensibilidade e, portanto, também estariam fora de nós, segundo conceitos puros do entendimento. Este realista transcendental é, propriamente, aquele que, em seguida, desempenha o papel de idealista empírico e, após ser falsamente pressuposto que, se os objetos dos sentidos devem ser externos, necessariamente devem ter uma existência em si mesmos e independente dos sentidos, acha insuficientes, neste ponto de vista, todas as nossas representações dos sentidos para tornar certa a realidade desses objetos140.

Segundo Esteves, ambas as perspectivas do realismo transcendental chegam às mesmas conclusões, apesar de adotarem vias diferentes141. O racionalista dogmático abstrai as condições da sensibilidade como fontes legítimas de conhecimento, intelectualizando-as como se fizessem parte do entendimento, e assume os fenômenos como se fossem coisas em si mesmas, i. é, assume o condicionado como se fosse incondicionado. De maneira diferente, mas com resultados semelhantes, o empirista dogmático encara os objetos fenomênicos como coisas em si mesmas, pois as condições de percepção dos mesmos não estão no sujeito humano cognoscente, mas constituem a natureza dos próprios objetos. Dessa maneira, o empirista dogmático tem de admitir que o objeto empírico, uma vez acolhido que é uma coisa em si mesma, consiste no incondicionado, independentemente das capacidades humanas de percepção desse incondicionado.

Diante dessas constatações, Esteves sustenta que o trabalho de desconstrução da metafísica operado por Kant atingiu seu êxito já nas seções “Estética” e “Analítica transcendental” da primeira Crítica e que, por conseguinte, a respeito dessa desconstrução, a “Dialética” não acrescenta algo novo em relação àquelas seções anteriores da obra, como podemos ler neste excerto:

[...] na medida em que minam as bases do realismo transcendental, a Analítica transcendental e a Estética transcendental conjuntamente são suficientes para dar conta das pretensões do racionalismo e do empirismo dogmático, numa palavra, das pretensões ilusórias erguidas pela metafísica geral142”.

Concordamos com a interpretação de Esteves a respeito da suficiência, digamos, destruidora da metafísica operada pelas “Estética” e “Analítica transcendental”. Contudo, como sustentaremos nesse trabalho a “Dialética” é sistematicamente relevante na medida em

140 KANT, KrV, A 369. Grifos de Kant. 141 ESTEVES, 2012, p. 553.

142

ESTEVES, 2012, p. 554. É importante deixar claro que o autor não considera a “Dialética” irrelevante ou dispensável. O que ele questiona é sua relevância para a justificação da ilusão transcendental uma vez que a “Estética” e a “Analítica transcendental” já haviam justificado (p. 554 – 556).

que através dela Kant inicia seu trabalho de reconstrução da metafísica, não mais sob o ponto de vista teórico-especulativo, mas do prático. Sendo que, para tal reconstrução o conceito de Sumo Bem será decisivo porque por meio dele é realizada a passagem entre o uso teórico e o uso prático da razão pura143.