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2.2 As leis da liberdade como fundamento do agir moral e o conceito de Sumo

2.2.2 Deus e a imortalidade da alma

2.2.2.1 O status epistêmico dos postulados

Muito embora Kant tenha inicialmente se debruçado sobre os conceitos de Deus e imortalidade da alma na obra inaugural de seu sistema crítico, cujo propósito maior era

248 KANT, KpV, AA 5: 43.

teórico, pois visava dar conta das investidas da razão pura em conhecer objetos como esses, é no uso prático dessa faculdade que tais ideias adquirem o status mais importante sob o ponto de vista da metafísica. A propósito, tendo em vista um dos objetivos deste trabalho, o qual esta seção corrobora para sustentar, é digno de destaque que o status de postulados que os conceitos de Deus e de imortalidade da alma – assim como o de liberdade – adquirem no terreno prático da razão, representa uma etapa decisiva para a passagem da fase crítico- metafísica da filosofia de Kant em direção a sua fase metafísico-doutrinal, de caráter prático. Ademais, não podemos perder de vista que, assim como ocorrera na primeira KrV, o comprometimento maior de Kant na KpV continua sendo com a metafísica.

Kant introduz os conceitos de Deus e de imortalidade da alma na parte “Dialética” da segunda Crítica após ter confirmado e comprovado os resultados obtidos pela

Fundamentação acerca da determinação das bases da moralidade na parte “Analítica” daquela

obra. Ou seja, mediante o conceito de liberdade da vontade ele acredita ter demonstrado a possibilidade real (como um factum) da razão prática pura e, consequentemente, da lei moral250. Posto isso, a “Dialética” tem como objetivo avançar em direção a um novo terreno que não mais aquele da fundamentação da moralidade, a saber, o terreno que abriga as consequências do agir moralmente considerado. Determinar as possíveis consequências do agir moral – fundado em ações determinadas pela autonomia da vontade, através do imperativo categórico – significa, nos termos do autor, estabelecer o objeto incondicionado da razão pura. A argumentação do interior da “Dialética” a respeito do objeto incondicionado da razão pura desenvolve-se a partir da constatação de que mediante ele, o uso prático da razão obtém certa primazia sob o uso teórico-especulativo.

Diante do exposto até aqui urge perguntar: I) qual a relação dos postulados com a apregoada primazia do uso prático da razão pura sob o uso especulativo?; II) qual a relação dos postulados com a determinação do objeto incondicionado da razão pura? Antes de tentar respondê-las faz-se necessário esclarecer o que Kant entende pelo termo “postulado”, sobretudo no contexto da segunda Crítica.

De acordo com o autor, postular significa estar racionalmente justificado a crer em algo, ainda que não tenhamos condições, por falta de evidências, de demonstrar e comprovar a veracidade dessa crença. Evidentemente, postular não se iguala ao conhecimento, pois se tratam de condições epistêmicas muito distintas, cruciais para distingui-los inclusive em termos de relevância, e Kant tem plena ciência disso. Contudo, eis o problema importante a

ser esclarecido na noção de postulado de Kant: qual o status epistêmico que ele atribui aos postulados práticos, uma vez que que se torna racionalmente justificável uma crença sem evidências? Nesse sentido, Willaschek251 pontua duas condições que devem ser preenchidas para que, de acordo com o autor das Críticas, tenhamos um postulado prático, i. é, uma crença racionalmente justificada ainda que sem evidências, a saber: I) não devem haver evidências empíricas nem argumentos conclusivos a priori a favor ou contra a crença em questão, o que pode ser denominado de uma crença teoricamente indeterminável (a belief theoretically

undecidable); II) assegurar a crença em questão através da necessidade racional da lei da

moralidade, denominada de crença praticamente necessária (a belief practically necessary). Portanto, um postulado da razão prática pura nada mais é do que uma proposição teórica fundada em uma crença que é tanto teoricamente indeterminável quanto praticamente necessária. Como se lê na definição apresentada por Kant na passagem a seguir: um postulado da razão prática pura é “[...] uma proposição teórica mas indemonstrável [nicht erweislich] enquanto tal, na medida em que ele é inseparavelmente inerente a uma lei prática que vale incondicionalmente a priori252”.

Considerando as condições apontadas acima por Willaschek que nos parecem fiéis a definição de postulado prático oferecida por Kant, podemos entender que a crença teórica do sujeito racional num postulado é indeterminável por que não somos capazes de determinar pela experiência, qualquer objeto que corresponda àquele postulado. Portanto, e assim recordamos os resultados da primeira Crítica, os postulados são crenças subjetivamente suficientes, porém objetivamente insuficientes. Subjetivamente suficientes por que a crença, por si só, diz respeito ao foro íntimo do sujeito que pode, e possui motivos internos para, justificá-la racionalmente como crença pessoal. Mas é objetivamente insuficiente por que esse mesmo sujeito racional não possui condições epistêmicas de extrapolar o nível íntimo de sua crença comprovando sua veracidade e, portanto, sua validade objetiva, i. é, para além de si mesmo.

São dignas de recordação as reflexões de Kant registradas na terceira seção de “O cânone da razão pura” da primeira Crítica, intitulada “Do opinar, do saber e do crer253”,

devido às suas explicações e distinções entre aqueles três níveis de validade do juízo. Distingue Kant no “Cânone”:

251

WILLASCHEK, Marcus. “The primacy of practical reason and the idea of a practical postulate”. In: REATH, Andrews; TIMMERMANN, Jens. Kant`s Critique of practical reason: a critical guide. New York: Cambridge University Press. 2010. P. 169.

252

KANT, KpV, AA 5: 122. Colchetes acrescentados. Grifos de Kant.

253 KANT, KrV, A 820/B 848. “Vom Meine, Wissen und Glauben”. Kant também discorre sobre o opinar, o saber

A opinião é uma crença, que tem consciência de ser insuficiente, tanto subjetivamente como objetivamente. Se a crença apenas é subjetivamente suficiente e, ao mesmo tempo, é considerada objetivamente insuficiente, chama-se fé. Por último, a crença, tanto objetiva como subjetivamente suficiente, recebe o nome de

saber. A suficiência subjetiva designa-se por convicção (para mim próprio); a

suficiência objetiva, por certeza (para todos)254.

Ora, fica evidente pela passagem acima que os postulados da razão prática pura, quando considerados apenas pelo primeiro critério (crença teoricamente indeterminável) apontado por Willaschek, não passam de meros artigos de fé255. Contudo, quando observamos o segundo critério (crença praticamente necessária) para que uma crença seja considerada um postulado, nos damos conta de que não se trata de uma fé qualquer, mas de uma fé moral. Tanto é assim que esse tipo de crença está fundamentada na moralidade, comprovada, segundo Kant, pela “Analítica” da segunda Crítica. Todavia, é preciso que se diga que ele não está defendendo, dessa forma, que somos moralmente obrigados a acreditar em Deus e numa vida futura – embora sua afirmação de que “[...] é moralmente necessário admitir a existência de Deus256” quando descontextualizada, nos leve a pensar no contrário257. O que Kant alega em defesa dos postulados serem crenças racionalmente justificadas é que eles consistem em proposições cuja referência é necessariamente prática, ou seja, não teórica, como o autor explica no excerto abaixo.

É o caso de observar aqui que essa necessidade moral é subjetiva, isto é, uma carência, e não objetiva, ou seja, ela mesma um dever; pois não pode haver absolutamente um dever de admitir a existência de uma coisa (porque isto concerne meramente ao uso teórico da razão). Tampouco se entende com isso que a admissão da existência de Deus como um fundamento de toda a obrigação em geral seja necessária (pois uma obrigação, como foi suficientemente provado, depende apenas da autonomia da própria razão)258.

Dessa maneira, Kant quer destacar que não há no uso prático da razão pura qualquer ampliação de nossas capacidades cognitivas para além daquelas demonstradas pela primeira

Crítica a respeito do uso teórico-especulativo da razão. O que ocorre é que no caso dos

254 KANT, KrV, B 850. Itálicos e parênteses de Kant. Negrito acrescentado. 255

Sobre isso, diz Kant (KrV, B 851): “Em caso algum, a não ser do ponto de vista prático, pode a crença teoricamente insuficiente ser chamada fé. Ora, este ponto de vista prático é ou a habilidade ou a moralidade. A primeira refere-se a fins arbitrários e contingentes, a segunda, a fins absolutamente necessários”. Grifos do autor.

256

KANT, KpV, AA 5: 71. O contexto dessa afirmação do autor é da discussão sobre a necessidade moral de buscarmos promover o Sumo Bem. Se consistir num dever buscar promovê-lo, então se deve admitir como consequência a necessidade de postularmos a existência de Deus, único ser capaz de nos conceder o Sumo Bem.

257

Cabe lembrar aqui a categórica afirmação de Kant a esse respeito: “[...] uma fé que seja ordenada é um disparate” (KANT, KpV, AA 5: 144).

postulados práticos o sujeito está racionalmente justificado a acreditar nesses objetos devido aquilo que os fundamenta, ainda que não tenha evidências para tanto. E o que fundamenta tal crença justificada é a lei da moralidade pautada na razão259. Com efeito, as anteriores ideias de Deus, imortalidade da alma e liberdade, agora postulados da razão prática pura, adquirem realidade objetiva. Willaschek260 destaca que quando Kant afirma que essas ideias têm realidade objetiva “[...] não significa que esses objetos realmente existem [...], mas que o conteúdo dessas ideias é suficientemente específico para se referir a objetos determinados”. Ou ainda, conforme a elucidação de Hamm sobre essa questão, “[r]econhecer a sua [das ideias da razão, agora postulados] „realidade objetiva‟ e fazer delas um uso „imanente‟ e „constitutivo‟ não significa, é claro, que as ideias postuladas podem transformar-se em objetos de conhecimento261”. Trata-se, na verdade, complementa ele, “[...] de um „considerar-como- verdadeiro‟ [Fürwahrhalten]262”.