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PARTE II – DIAGNÓSTICO DO CONFRONTO DOS PROGRAMAS DE RECUPERAÇÃO FISCAL COM A CONSTITUIÇÃO

CAPÍTULO 5 A INCONSTITUCIONALIDADE QUE VICIA OS PROGRAMAS

Na Parte I deste trabalho assinalamos que os Programas de Recuperação Fiscal em estudo, lançados consecutivamente, em superposição e concomitância uns com os outros, retratam um cenário de distribuição desigual de benefícios fiscais, oferecidos, em princípio, sempre ao mesmo tipo de cidadão ou contribuinte, isto é, aquele que se encontra inadimplente no momento do lançamento do plano.

A distribuição desigual na oportunidade de aproveitamento de benefícios fiscais se deve justamente ao limite temporal de adesão aposto em cada Programa, uma vez que não se vislumbra qualquer outra justificativa de diferenciação de causas ou situações jurídicas, que implemente ou demarque a desigualdade entre os contribuintes, inadimplentes, potencialmente beneficiados por cada Programa, para com os demais contribuintes, adimplentes, ou que venham se tornar inadimplentes após a data fatídica final de adesão aos Programas.

A diferença de oportunidade de desfrute de diferentes graus de benefícios fiscais, fundada apenas em razão do marco temporal, imposta para contribuintes que estão sob situação jurídica equivalente, isto é, simplesmente inadimplentes para com suas obrigações fiscais, por causa das agruras econômicas das últimas décadas ou anos, estabelece uma desigualdade indesejável, porque:

A – Não existe causa econômica específica que justifique qualquer diversidade de motivos para a inadimplência dos contribuintes, antes ou depois dos sucessivos planos. Logo, antes e depois das datas limites de cada plano, os contribuintes são eventualmente inadimplentes

pelas mesmas causas, e portanto, estão na mesma situação jurídica e necessitados do mesmo refrigério;

B – Em razão de diferenças das datas de seus débitos, os contribuintes estão habilitados a se beneficiar ou não dos regimes benéficos dos programas;

C – Os contribuintes regulares, que cumpriram suas obrigações fiscais até o advento dos programas, certamente com sacrifício operacional e do crescimento desejável, não desfrutam dos benefícios, nem recebem qualquer compensação;

D – A intervenção legislativa estatal na atividade econômica resulta no desequilíbrio concorrencial de livre mercado, auxiliando alguns agentes, justamente os infratores ou perdedores, sem contraponto aos concorrentes, que alcançaram sucesso e regularidade fiscal, embora submetidos ao mesmo cenário econômico.

Recorde-se ainda que, durante o prazo de adesão aos Programas ou durante as interrupções entre seus lançamentos, permanece vigente todo o tempo o ‘regime comum’ de parcelamento ordinário, acessível aos contribuintes desinteressados das contraprestações dos Programas, ou que incorrem na inadimplência em momento inválido para adesão àqueles.

A situação suscita naturalmente ao senso comum, a flagrante violação ao Princípio da Igualdade constitucional, particularmente no seu componente setorial da Isonomia Tributária, com agravo extensível a outros princípios axiológicos intrinsecamente integrados com aquele, a exemplo dos princípios Republicano, da Moralidade, da Razoabilidade, da Proporcionalidade.

Nesta Parte II, intentamos justamente examinar os dispositivos e efeitos dos Programas de Recuperação Fiscal diante dos rigores determinados pelos princípios axiológicos (Capítulo 7) e das normas programáticas da ordem econômica (Capítulo 8), no intuito de registrar, de modo organizado, como e porque ocorre o confronto entre as normas dos Programas e o sistema de valores constitucionais.

Denote-se que, em se tratando de normas de mesma hierarquia, posto que, constitucionais, tanto os princípios axiológicos como as normas programáticas devem ter sua efetividade garantida pela legislação infraconstitucional150, sendo esta sempre sujeita aos parâmetros de interpretação integrada, com aqueles dois tipos de normas, para aferição de sua constitucionalidade.

A desarmonia das leis dos Programas para com os princípios axiológicos constitucionais mencionados e outros, sinaliza para a hipótese da inconstitucionalidade material151, ou seja, aquela em que o conteúdo da norma infraconstitucional confronta com regras ou princípios explícitos ou implícitos da Constituição, que lhe são hierarquicamente superiores. No âmbito da inconstitucionlidade formal ou orgânica, a edição dos programas não reclama reparo.

A verificação judicial da constitucionalidade das leis no regime constitucional brasileiro pode ser exercida pelo controle concentrado ou pelo controle difuso, sendo o primeiro deles exclusivo do Pretório Excelso e o último, disponível ao exercício por qualquer instância judiciária cabível, que venha constatar a infração do Texto Maior nas apreciações de casos concretos152. A aplicação desses controles sobre as normas dos programas está discutida na Parte III.

No entanto, apesar da sugestiva investida dos Programas contra o Princípio da Igualdade entre contribuintes, não houve provocação direta ao Excelso Pretório quanto à inconstitucionalidade dos Programas, salvo a referida impugnação da Procuradoria da República contra a suspensão punitiva penal, deixando entrever que é perfeitamente plausível,

150 “Em segundo lugar, não se acolhe a idéia de ‘princípios’ como um ‘justo superior’ que, em caso de

necessidade, justificará a invalidade das normas constitucionais em conflito irremediável com os princípios axiológicos-normativos superiores (‘normas constitucionais inconstitucionais’). A eventual tarefa de optimização constitucional alicerça-se mais racionalmente num princípio de concordância prática de que numa escala ordinal ou cardinal de ‘valores’ constitucionais.” CANOTILHO, Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador, 1994, p. 282

151 CANOTILHO, Direito Constitucional, 2000, p. 924

no plano fático, a existência de uma lei de posição infraconstitucional, porém, manifestamente inconstitucional, que venha a assumir vigência e eficácia, atue e produza efeitos, embora agredindo à Lei Maior.

A possibilidade real de uma norma inconstitucional efetivamente produzir efeitos jurídicos é reconhecida, por exemplo, quando há coisa julgada inconstitucional não rescindida, e que então produz efeitos, nem sempre corrigíveis153. Do mesmo modo ocorre nos casos do ato jurídico formalmente nulo, mas que perdura e produz efeitos154, e a simples declaração de nulidade posterior, embora, em tese, produza efeitos ex-tunc, não pode vir a prejudicar direitos de terceiros de boa fé.

Isso também pode ocorrer quando uma lei inconstitucional vigora durante algum tempo, até que a jurisprudência superior ou inferior dominante venha a se convencer de sua inconstitucionalidade e retire sua eficácia. Nesse caso, o entendimento jurídico lógico e escorreito considera que tal lei inconstitucional não seria capaz de produzir qualquer efeito jurídico, e então, não poderia atribuir direitos e deveres, em suma, não teria validade, ex-tunc.

Nas situações citadas, há de se encontrar uma solução jurídica, senão completa, ao menos razoável ou compensatória, para manter a harmonia e integralidade do sistema jurídico, sem a qual este descamba para o virtual colapso.

153 “Está, pois, demonstrado que o juízo rescisório, de natureza constitutiva, inaugura uma situação jurídica sobre

a anteriormente vigente. E, se o regime de rescindibilidade das sentenças se assemelha ‘em tudo’ da qual é característica a eficácia ex-nunc, se, em face da própria natureza da coisa julgada há que considerá-la válida e apta a produzir efeitos, não parece fazer sentido, a não ser em casos específicos, o reconhecimento de efeitos ex- tunc às decisões rescindentes.” CARVALHO & CARVALHO, Dos efeitos ex-nunc e ex-tunc da desconsideração da coisa julgada e da decisão rescindente de coisa julgada sobre matéria tributária, 1999, p. 346.

154 “Não é igualmente correta a tese de que a nulidade é imediata ou instantânea. O negócio nulo subsiste, se

escapa à apreciação do juiz. Seja para pronunciá-la, declará-la ou decretá-la, a intervenção judicial é imprescindível. Enquanto não se faz sentir, o negócio aparentemente normal está produzindo efeitos. Teoricamente, pode-se dizer que a nulidade é decretada pela própria lei; o juiz mais não faz do que reconhecê-la e proclamá-la. Praticamente, porém, se esse conhecimento não for feito, e, para tanto, é preciso que a nulidade esteja gravada, o negócio nulo vive, perdura. Neste sentido, nenhuma nulidade é imediata.”(...) “Diz-se que os negócios nulos são insanáveis. Realmente, não se permite que as partes os confirmem, nem que o juiz os valide. Mas, apesar de se afirmar que a nulidade não prescreve, podendo ser alegada a todo tempo, a verdade é que, pelo decurso de tempo, o ato nulo vem afinal a convalescer, ainda que por via oblíqua.” GOMES, Introdução ao Direito Civil, 1998, p. 481

Essa anomalia não é desconhecida da doutrina jurídica, como constatado por Canotilho ao reconhecer a eventualidade de situações constitucionais imperfeitas155, ou nas incompatibilidades aludidas por Bonavides156.

A busca por uma solução adequada para as deformidades jurídicas implantadas pelos Programas de Recuperação Fiscal, consiste, assim, no escopo fundamental desse trabalho, que ousa ainda apontar uma solução satisfatória e testar sua viabilidade.

Observe-se porém, que os Programas de Recuperação Fiscal não são simples normas instituídas em leis ordinárias, destinadas a regular situações correntes da dinâmica econômica, a inadimplência fiscal, e livres de dever de realização de preceitos constitucionais.

Pelo contrário, a justificativa oficial para seu lançamento e o conteúdo de suas normas busca fundamento justamente na finalidade de atribuir efetividade às normas constitucionais programáticas da ordem econômica, examinadas no Capítulo 8.

Os Programas de Recuperação Fiscal são normas infraconstitucionais declaradamente destinadas ao incentivo da atividade econômica, porque atenuam os encargos de contribuintes inadimplentes, para que estes reativem suas atividades asfixiadas e retornem ao recolhimento de tributos, recuperando sua regularidade.

Assim, o exame de sua compatibilidade dos Programas com o texto constitucional não pode ser reduzido ao simples confronto com as normas axiológicas, mas também é preciso observar sua adequação para com as normas constitucionais a que se destinam servir, isto é, as normas programáticas da ordem econômica.

155 “A sanção da nulidade com as características atrás assinaladas (no direito civil e no direito administrativo)

pode revelar-se uma sanção pouco adequada para certas situações que, embora imperfeitas sob o ponto de vista constitucional, exigem tratamento diferenciado, não necessariamente reconduzível ao regime da nulidade absoluta.” CANOTILHO, Direito Constitucional, 2000, p. 923.

156 “Em rigor, tais tendências se acentuam de tal maneira, a esta altura, que o exame da jusrisprudência

constitucional daquela Corte fez com que alguns juristas alemães principiassem a falar de um novo tipo ou figura oriunda das fórmulas decisórias do tribunal, a saber, a variante declaratória da ‘incompatibilidade’ da lei com a Constituição (Unvereinbarkeit), distinta da tradicional e severa declaração de ‘nulidade’ ou ‘invalidade’ (Nichtigkeiterklärung).” BONAVIDES, Curso de Direito Constitucional, 2004, p. 340

Nesse caso, o exame de compatibilidade dos Programas com a Constituição pode induzir que os princípios axiológicos tenham que ser ponderados com outros valores relevantes, como aqueles das normas programáticas, em busca de uma solução que admita a efetividade e atuação harmonizada de todos eles, que não necessariamente será alcançada pela simples retirada das normas do ordenamento, em razão de eventual colisão direta com algum dos princípios axiológicos, quando as normas se apresentem como essenciais e adequadas à efetividade de outros princípios.

A eventual compatibilidade, adequação e estrita necessidade dos Programas para dar cumprimento e efetividade àquelas normas programáticas da ordem econômica, pode resultar na determinação de uma solução jurídica que deva ser harmonizada por ponderação de princípios, no sentido de garantir a eficácia de todos.

Por outro lado, a incompatibilidade, inadequação e desnecessidade dos Programas para a efetividade das normas programáticas da ordem econômica, sinalizará para mais um desajuste dos Programas com a Constituição, reforçando a necessidade de correção jurídica de seus efeitos ou até mesmo de sua extirpação do ordenamento.

Por tudo isso, o conteúdo dessa Parte II se delongará pela investigação da constitucionalidade dos Programas de Recuperação Fiscal perante princípios axiológicos da Constituição e perante seus eventuais concorrentes de mesma hierarquia, as normas programáticas da ordem econômica.

Delineados os conflitos das disposições dos Programas com os princípios, intenta-se também a apreciação da suficiência e da conciliabilidade da Solução Proposta na Seção 4.3, para realizar a harmonização da vigência dos Programas com a efetividade da Constituição.