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4.1 - A Identificação das Anomalias efetivadas pelos Programas

Nos capítulos anteriores estão descritos os Programas de Recuperação Fiscal REFIS e PAES, as formalidades e interesses no seu lançamento, as características e natureza de seu conteúdo.

No relato, observa-se que, apesar de sua composição inovadora, os Programas de Recuperação Fiscal REFIS e PAES e outras promoções menores vêm sendo periodicamente lançadas pelos governantes, sob alegação de combate contra inadimplência fiscal e tentativa de ‘compensar’ a sobrecarga fiscal impositiva, em crescimento, mas despertam a suspicácia de desajuste constitucional entre os operadores do direito e até ao senso comum dos contribuintes148.

Isso porque, ao contrário de outros meios de incentivos fiscais, que promovem estímulos para ações futuras, os Programas atuam sobre o passado, construído sob as mesmas regras para todos, e que, de modo inusitado, passa a receber tratamento mais benevolente, que, se fosse conhecido de todos, poderia tornar atraente a inadimplência. Sobretudo, não há qualquer vantagem compensatória aos contribuintes regulares.

Desse modo, os Programas REFIS e PAES sugerem inconstitucionalidade porque promovem a injustiça fiscal e a desigualdade de tratamento tributário para contribuintes equiparados, sem justificativa de proporcionalidade ou moralidade para a diferenciação, requisitos essenciais de aferição da justiça fiscal.

148 Comentário: Conclusão deduzida do conteúdo de reportagem de James Allen no jornal O Estado de São

Paulo, de 16/03/2003, antes do lançamento do PAES, relatando que o Presidente Lula é contrário à reabertura ampla do REFIS, por temer a premiação dos sonegadores.

A justiça fiscal se inclui como modalidade essencial de Justiça, porque a atividade fiscal interfere com valores fundamentais do indivíduo, como a igualdade, a liberdade e a propriedade, sobretudo esta última, quando investe sobre o patrimônio dos cidadãos, que é seu meio de subsistência ou é seu instrumento de promoção da riqueza coletiva, quando conjugado com a organização empresarial e movido pela livre iniciativa.

Diversos estudiosos enxergam inconstitucionalidade flagrante ou velada na descrição de efeitos dos Programas. Cabe então demonstrar como atua a inconstitucionalidade conjeturada, seja pelo contraste das normas dos Programas com normas constitucionais e com o sistema de princípios jurídicos, ou ainda pelo efeito material nocivo produzido pelo funcionamento dos Programas. Essa abordagem será realizada na Parte II seguinte.

A inconstitucionalidade essencial presumidamente praticada pelos Programas se relaciona com violação do Princípio da Isonomia, e seu contorno pode ser vislumbrado por dois aspectos: 1 – benefícios a contribuintes inadimplentes, sem compensações a outros contribuintes regulares, associada a limite temporal de adesão; 2 – intervenção estatal nefasta para o equilíbrio da concorrência na atividade econômica, porque fornece alternativa de benefícios tributários a agentes privados inadimplentes ou insolventes, que, em tese, teriam sido alijados pela livre competição sob mesmas regras, e que ganham oportunidade de ser reintroduzidos no mercado, sem contrapartida de vantagem aos agentes saudáveis.

Quanto ao aspecto 1, a desigualdade de tratamento entre contribuintes se expressa em razão do critério distintivo utilizado para o deferimento de facilidades fiscais, a inadimplência, sem vantagens compensatórias aos adimplentes, acompanhado do limite temporal de adesão, que completa o impedimento à possibilidade potencial de aproveitamento genérico por todos os contribuintes.

Os contribuintes em geral são iguais em direitos e deveres tributários em todos os sentidos, mas são desigualados pelos Programas somente em razão de sua condição de

inadimplência em determinado momento temporal, que não se constitui em critério com densidade suficiente para traçar desigualdades de direitos e deveres tributários.

O fator temporal pode trair o senso de comparabilidade, porque nem todos os contribuintes podem estar inadimplentes ao mesmo tempo, e alguns mesmo, nunca vir a estar inadimplentes. Desse modo, os seres a comparar, contribuintes adimplentes e inadimplentes, seriam intrinsecamente diferentes ou incomparáveis neste ponto.

Acontece, porém, que os contribuintes são seres inequivocamente comparáveis, mormente quanto à igualdade de aproveitaento de benefícios fiscais, e o tratamento equiparado que lhes é atribuído deve ser observado segundo o conjunto integrado do sistema tributário, mesmo porque, do contrário, não haveria sentido na pretendida Isonomia Tributária, se destinada a igualar objetos que poderiam se tornar incomparáveis apenas pelo fator tempo. Os objetos podem tornar-se diferentes pelo fator tempo, mas não incomparáveis.

Quanto ao aspecto 2, da intervenção nociva e indesejável na atividade econômica, presume-se que a interferência estatal através dos Programas desfaz e desmerece os resultados conquistados pelos agentes privados regulares, que, submetidos as mesmas regras do jogo na competição livre do mercado, mantiveram-se aptos ao acesso aos incentivos oficiais e fora do alcance da persecução executiva fiscal com seus embaraços à operacionalidade dos negócios.

Em verdade, salvo situações particulares de cada agente que tenham trazido infortúnio negocial justificável, a exemplo de desastres, caso fortuito, força maior, desavenças societárias, desfalque, etc, a condição de devedor do fisco, por uma empresa dedicada a uma determinada atividade econômica, onde se encontrem outras equivalentes que operam em situação regular, faz presumir a diferença entre a empresa bem administrada e a mal administrada, entre a empresa vencedora na competição de mercado e a perdedora que está sujeita à aniquilação e à insolvência, em virtude da ação das saudáveis virtuais forças da ‘mão invisível’, que o princípio constitucional da livre iniciativa consagra.

Na economia como um todo, sempre é possível observar segmentos mais ou menos favorecidos pelas circunstâncias ou conjunturas econômicas, justificando políticas setorizadas de incentivo, dirigidas ou generalizadas. No entanto, no ambiente econômico global, não se justificam diferenças de tratamento generalizado de benefícios, porque há segmentos onde, mesmo sendo mais favorecidos, ainda assim apresentam agentes incompetentes fracassados, que então se beneficiam, depois de terem sido vencidos pelos mais competentes.

Além disso, mesmo nos setores desfavorecidos, alguns agentes logram sucesso graças a suas competências empresariais, e serão diretamente prejudicados pela sobrevivência forçada ou auxiliada dos seus concorrentes, que se aproveitam de benefícios sobrevindos.

Os Programas, então, fomentam dois efeitos perniciosos ao equilíbrio concorrencial, porque: 1 - premiam o inepto e sobrecarregam o virtuoso, neutralizando o equilíbrio funcional estabelecido pela competição e frustrando a atuação da ‘mão invisível’ do mercado que, em tese, seleciona os competentes dos incompetentes, e 2 – chancelam o sucesso dos que arriscam em busca de se beneficiar com sua própria torpeza.

Destaque-se aqui a inclusão recente na Constituição, do art. 146-A, pela EC 42/2003, que torna expresso o dever de promoção do equilíbrio da atividade econômica, através da intervenção estatal, inclusive em auxílio à preservação da ordem concorrencial149.

149 “Tratando-se de ordem concorrencial, mais do que de direitos fundamentais, deve-se cogitar da teoria das

garantias institucionais (v. Capítulo I, item 3.1.4). O que já foi visto para a disciplina extraconstitucional aplica- se com perfeição às regras constitucionais, até porque nelas teve origem. Adefesa da ordem concorrencial é, no sistema da Constituição, uma garantia institucional.” SALOMÃO Fº, Direito Concorrencial, 2003, p. 109

4.2 - O Problema do Prazo Limite de Inclusão

Assinalamos na seção anterior, que as deturpações à Isonomia Tributária e ao equilíbrio livre de mercado promovidas pelos Programas de Recuperação Fiscal decorrem da inexistência de compensações benéficas aos agentes privados ou contribuintes, que não estão inadimplentes no momento do lançamento dos Programas, e portanto, inabilitados para adesão, completada pela fixação de limite temporal, que impede o aproveitamento posterior das facilidades dos Programas, por aqueles contribuintes regulares, caso se tornem devedores.

Em verdade, denote-se que a inexistência de prazo limite de adesão aos Programas poderia funcionar como estímulo aos contribuintes regularizados, para deixarem de recolher seus impostos e se tornarem inadimplentes, indignados com a mudança das ‘regras do jogo’ antes vigentes, ávidos por aproveitar os benefícios dos programas de recuperação fiscal, que em nada lhes favorece, e ainda beneficia os infratores concorrentes.

Entretanto, observe-se que a adesão aos Programas implica em obrigações e restrições, que não são exatamente desejáveis para os agentes interessados ao livre exercício da atividade econômica e da regularidade fiscal, além da desconfiança negocial transmitida por aqueles incluídos em regimes de tributação e fiscalização próprios para inadimplentes. Observe-se que, no caso do REFIS, a própria abertura do sigilo empresarial escritural de um contribuinte aderente ao programa, pode implicar em desvelamento parcial de transações empresariais também de seus parceiros de negócios.

Dessa forma, a possibilidade de adesão em data além do limite não implica, necessariamente, que os contribuintes regulares se aproveitarão dos Programas como ‘estratégia de inadimplência’, para alavancagem de seus negócios, porque suas ações estarão sujeitas a condições restritivas de sua livre movimentação empresarial.

Além disso, os contribuintes que eventualmente decidam por uma inadimplência ‘programada’, certamente planejarão também a possibilidade de retirada voluntária dos Programas, quando lhes pareça conveniente, através da quitação total dos débitos, mantendo assim seu efetivo controle sobre o destino de seus negócios.

No entanto, aventurando-se por uma estratégia de inadimplência ‘programada’, os contribuintes elevam o grau de risco para seus negócios, porque, se porventura venham a ser alcançados por infortúnios imprevisíveis, estarão virtualmente limitados na possibilidade de retirada voluntária dos Programas segundo suas conveniências, permanecendo o negócio sob as restrições indesejáveis.

Destaque-se ainda, que o eventual deferimento de adesão aos Programas, além do prazo limite, atribuiria àqueles contribuintes que estavam adimplentes no momento da edição dos Programas, benefícios apenas equiparados e nunca superiores àqueles desfrutados pelos contribuintes que estavam inadimplentes desde o início, neutralizando qualquer desigualdade com relação a estes.

Para o governo, entretanto, a eventual franquia de adesão aos Programas sem limite de prazo, significaria risco de promoção de inadimplências generalizadas, sem a garantia da contrapartida de receitas pelas adesões aos Programas.

As receitas a auferir, pela adesão de contribuintes inadimplentes aos Programas, eram incertas por duas razões: - primeiro, porque poderia haver fracasso no lançamento, uma vez que, como os programas não são compulsórios e demandam condições restritivas de direitos indesejáveis, é possível admitir que não houvesse nem uma adesão sequer; - segundo, o fracasso na continuidade dos Programas, porque, mesmo havendo adesão em peso, o efetivo ingresso de receitas poderia não ocorrer, pelo descumprimento das parcelas pelos aderentes, ainda que sob pena de exclusão, e, no caso do REFIS, o incerto valor das parcelas, calculadas sobre o faturamento declarado.

Esse risco poderia resultar no franco insucesso dos Programas, trazendo uma redução indesejável de arrecadação, em contrário do objetivo implícito, que consistia justamente no reforço de caixa, além da justificativa de estímulo à economia.

Observe-se que, para aquele objetivo de reforço de caixa, o risco de não haver receitas satisfatórias não admitia possibilidade de correção ou compensações. Logo, única maneira de promover os Programas sem aquele risco, seria fixando o prazo limite de adesão, que explora justamente a desigualdade que estabelece entre contribuintes.

Temos então, que a atratividade dos Programas para o governo somente se apresenta se estes são lançados com prazo limite de adesão. Contudo, esse limite temporal revela, por inteiro, que a verdadeira funcionalidade dos programas decorre unicamente da exploração da desigualdade de tratamento que estes atribuem a contribuintes equiparáveis, beneficiando os infratores e aproveitando, sem atenuações, da lealdade de conduta dos contribuintes regulares.

4.3 - A Solução Proposta

A correção da desigualdade pode ser compensada pela simples desconsideração da data limite de adesão, com autorização de inclusão dos eventuais débitos existentes dos interessados, até a data da inclusão extemporânea do novo aderente.

Isso porque, para os contribuintes adimplentes no momento do lançamento, estará franqueado o desfrute dos benefícios dos Programas, caso venham a incorrer em inadimplência depois da data limite e seja de seu interesse. Não faz diferença que essa eventual inadimplência posterior tenha sido produzida por infortúnios imprevisíveis ou tenha sido aventurada por inadimplência ‘programada’.

Em qualquer caso estará restaurada a Isonomia, porque a possibilidade de adesão aos Programas estará disponível a todos os contribuintes em qualquer tempo, mas sempre de

modo condicional e não compulsório, logo, sujeita a restrições voluntárias para a livre operação de negócios, sempre indesejáveis aos agentes privados.

Ao mesmo tempo, os benefícios disponíveis aos contribuintes serão sempre os mesmos e sob as mesmas condições e restrições, sem desigualdades de oportunidades entre contribuintes, benefícios ou sacrifícios, quando do eventual interesse de adesão voluntária, embora limitante de direitos.

Dessa forma, os Programas de Recuperação Fiscal subsistirão como ‘regimes especiais’ de tributação e recolhimento, sob estrito acompanhamento fiscal, disponível para os contribuintes em geral, voluntariamente interessados e aderentes, enquanto, ao lado, vigora o ‘regime comum’, denominado ‘parcelamento ordinário’, mais rigoroso, e disponível para o mesmo universo de interessados, os contribuintes em geral. Assim, os eventuais contribuintes inadimplentes, necessitados de atenuantes, mas desinteressados em restrições, terão a alternativa de aproveitar o ‘regime comum’.

A demonstração da violação do Princípio da Isonomia será intentada na Parte II seguinte, onde se examina as disposições dos Programas sob o lume da estrutura axiológica constitucional e das normas programáticas econômicas ali dispostas, apreciando conjuntamente a compatibilidade da Solução Proposta.

Em seguida, constatada a inconstitucionalidade, torna-se necessário investigar a viabilidade legislativa ou judicial, material e processual da Solução Proposta, que permita a correção/adequação da eficácia dos Programas à Constituição.

A Solução Proposta, então, consiste no desconhecimento judicial do limite temporal para adesão aos Programas, deferindo a possibilidade de inclusão a todos os contribuintes que se interessem em ingressar no ‘regime especial’ dos Programas, com fundamento na Isonomia Tributária, substanciada na necessária igualdade de oportunidades de aproveitamento de benefícios fiscais.

PARTE I I – DIAGNÓSTICO DO