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CAPÍTULO II: ESTRUTURA DE BANDO, EXCEÇÃO E INDIGNIDADE HUMANA

1. A indignidade política humana, por Agamben

Neste Estado-nação, declaram-se como de todos os homens da Terra, direitos sagrados e inalienáveis, mas sem a devida tutela deles. Trata-se, fácil ver, de declarações desprovidas de concretude na medida de sua configuração como direitos de cidadãos de um determinado Estado. Na verdade, ao declarar como declara esses direitos, a Déclaration des droits de l’homme et du citoyen de 1789, com os dois termos – de l’homme et du citoyen – está a declarar uma ambiguidade porque referente a duas realidades autônomas. Com isso, não fica claro se os dois termos denominam, de fato, as duas realidades autônomas que enuncia, ou, se, em vez disso, elas formam “um sistema unitário, no qual o primeiro já está desde o início contido e oculto no segundo; e, neste caso, que tipo de relações existe entre eles” (AGAMBEN, 2010a, p. 123) 54

. Após a Segunda Guerra Mundial esse caráter instrumental dos direitos do homem multiplica-se em declarações e convenções feitas por organizações supranacionais impedindo, ao ver de Agamben, uma autêntica compreensão do significado histórico desse fenômeno. Proclamações gratuitas de valores eternos metajurídicos que buscavam vincular o legislador a princípios éticos para revelar sua verdadeira função histórica na formação do Estado-nação moderno.

Essas declarações que representam a figura original de que fala Agamben, da inscrição da vida natural da ordem jurídico-política do Estado-nação – que, no antigo

54 Hannah Arendt intitulou o quinto capítulo do seu livro sobre o imperialismo, dedicado ao problema dos

refugiados, “O declínio do Estado-nação e o fim dos direitos do homem”. Esta singular formulação, que liga os destinos dos direitos do homem àqueles do Estado-nação, parece implicar a ideia de uma sua íntima e necessária conexão, que a autora deixa, porém, injulgada. O paradoxo do qual Hannah Arendt aqui parte é que a figura – o refugiado – que deveria encarnar por excelência o homem dos direitos, assinala em vez disso a crise radical deste conceito. “A concepção dos direitos do homem” – ela escreve – “baseada na suposta exigência de um ser humano como tal, caiu em ruínas tão logo aqueles que a professavam encontrarem-se pela primeira vez diante dos homens que haviam perdido toda e qualquer qualidade e relação específica – exceto o puro fato de serem humanos” (AGAMBEN, 2010a, p. 123).

67 regime, era indiferente sob o ponto de vista político, pertencente ao divino como fruto da criação, e distinta, ao menos aparentemente, no mundo clássico, como zoé da vida política (bíos) – agora está em primeiro plano na estrutura do Estado, tornando-se “o fundamento terreno de sua legitimidade e da sua soberania” (AGAMBEN, 2010a, p. 124). É que, na declaração de 1789, é o mero fato do nascimento, ou seja, a vida nua natural, que se apresenta como fonte e portadora de direitos, que, assim que é posta na base do ordenamento jurídico, por outro lado, dissipa-se na figura do cidadão na qual esses direitos serão conservados.

E precisamente porque inscreveu o elemento nativo no próprio coração da comunidade política, a declaração pode a este ponto atribuir a soberania à “nação” (art. 3: “Le principe de toute souveraineté reside essentiellement dans la nation”) (AGAMBEN, 2010a, p. 125). Nesse sentido, as declarações de direitos representam, tanto para Agamben quanto para Hannah Arendt, a passagem da soberania régia de origem divina à soberania nacional. Para Agamben, a exceção da vida em uma nova ordem que sucedeu a derrocada do ancien régime. Após elas, o “súdito” se transformou em “cidadão”, significando, com isso, que o nascimento, ou, em outras palavras, a vida nua natural, passa, pela primeira vez, a portadora imediata da soberania. Esse princípio de natividade de soberania, acaba por unir o que estava separado no antigo regime – onde nascimentos geravam apenas súditos –. Ou seja, nascimento e soberania passam a constituir o corpo do “sujeito soberano” enquanto fundamento do Estado-nação que então surgia.

Há nessa posição de Agamben, uma descrição da indignidade política humana que ora se quer asseverar, na medida em que, para ele, não será possível compreender o desenvolvimento e a vocação “nacional” e biopolítica do Estado moderno nos séculos XIX e XX, “se esquecemos que em seu fundamento não está o homem como sujeito político livre e consciente, mas, antes de tudo, a sua vida nua, o simples nascimento que, na passagem do súdito ao cidadão, é investido como tal pelo princípio da soberania” (Ibidem). Em outras palavras, os direitos declarados não são o resultado de uma deliberação conjunta e consciente de cidadãos, mas tão somente uma concessão deste novo Estado que surge por meio de uma ficção, a de que o nascimento se torna, imediatamente, uma nação.

Assim, entre os dois termos da Déclaration des droits de l’homme et du citoyen não haverá resíduo algum, porque os direitos atribuídos ao homem brotarão dele, na

68 medida em que é o homem o fundamento da nação. Mas, a questão é que, esses direitos dissipam-se imediatamente no cidadão, fazendo com que a função histórica das declarações de direitos venha à luz após as convulsões do sistema geopolítico da Europa que se seguiram à Primeira Guerra Mundial quando emerge aquele resíduo removido entre a vida nua e a nação levando o Estado-nação a uma crise que o leva ao fascismo e ao nazismo – dois movimentos biopolíticos, para Agamben, porque fazem da vida natural o local por excelência da decisão soberana –, mormente em face da adoção dos critérios jus soli e jus sanguinis para identificar a cidadania55.

Foi essa centralidade ambígua da expressão “cidadania” que, segundo Agamben, fez com que Rousseau tivesse dito que nenhum autor francês compreendeu o verdadeiro sentido dessa palavra; “mas daí, também, já no curso da revolução, o multiplicar-se das disposições normativas destinadas a precisar qual homem fosse cidadão e qual não, e a articular e restringir gradualmente os círculos do ‘ius soli’ e do ‘ius sanguinis’” (AGAMBEN, 2010a, p. 126). Questões como saber o que é francês ou o que é alemão transmutam-se de temas antropológicos filosóficos em problemas políticas de primeira ordem, levando essa discussão a redefinições constantes até chegar-se a quem e o que é alemão, e, consequentemente, quem e o que não pode sê-lo. Com o nacional-socialismo, esse trabalho de redefinições coincidirá com a função política mais importante do Estado-nação.

Nesse sentido, fascismo e nazismo constituirão redefinições dessa relação homem-cidadão só inteligíveis, para Agamben, dentro dessa compreensão biopolítica do Estado-nação porque, por mais paradoxal que pareça, apenas o vínculo entre direitos do

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“Nós estamos habituados a compendiar no sintagma “solo e sangue” (‘Blut und Boden’) a essência da ideologia nacional-socialista. Quando Rosenberg deseja exprimir em uma fórmula a visão de mundo de seu partido, é, de fato, a esta hendíadis que ele recorre. ‘A visão do mundo nacional-socialista’ – ele escreve – ‘parte da convicção de que solo e sangue constituem o essencial do Germânico, e que é, portanto, em referência a estes dois datismos que uma política cultural e estadual deve ser orientada’ (Rosenberg, 1936, p. 242), mas tem-se esquecido com demasiada frequência que esta fórmula politicamente tão determinada tem, na verdade, uma inócua origem jurídica: ela não é outra além da expressão que compendia os dois critérios que, já a partir do direito romano, servem para identificar a cidadania (isto é, a inscrição primária da vida na ordem estatal): ‘ius soli’ (o nascimento em um determinado território) e ‘ius sanguinis’ (o nascimento a partir dos genitores cidadãos). Estes dois critérios jurídicos tradicionais que, no antigo regime, não possuíam um significado político essencial, porque exprimiam somente uma relação de vassalagem, adquirem, já com a revolução francesa, uma nova e decisiva importância. A cidadania não identifica agora simplesmente uma genérica sujeição à autoridade real ou a um determinado sistema de leis, nem escarna simplesmente (como crê Charlier quando, em 23 de setembro de 1792, pede à convenção que o título de cidadão substitua em todos os atos públicos o tradicional ‘monsieur’ ou ‘sieur’) o novo princípio igualitário: ele nomeia o novo estatuto da vida como origem e fundamento da soberania e identifica, portanto, literalmente, nas palavras de Lanjuinais à convenção, ‘les membres du souverain’” (AGAMBEN, 2010a, pp. 125-126).

69 homem e a nova determinação biopolítica soberana pode dar compreensibilidade à coincidência entre o conteúdo da declaração dos direitos de nascimento inalienáveis e imprescritíveis, de um lado, e, de outro, a distinção dos direitos do homem em geral em direitos ativos e direitos passivos56. É dizer, a despeito de sua flagrante contradição com o espírito das declarações, essa distinção de direitos ativos e passivos capta um coerente significado biopolítico que se revela enquanto característica essencial da biopolítica moderna e que se exaspera no século XX como necessidade de contínua redefinição do limiar, na vida, que define o que está dentro e o que está fora dela.

Uma vez que a impolítica vida natural, convertida em fundamento da soberania, ultrapassa os muros do ‘oîcos’ e penetra sempre mais profundamente na cidade, ela se transforma ao mesmo tempo em uma linha em movimento que deve ser incessantemente redesenhada (AGAMBEN, 2010a, pp. 127-128). Isto é, as declarações politizaram a zoé. Com isso, articulações e limiares podem ser continuamente redefinidos, razão porque, no momento em que a vida natural é integralmente incluída na pólis, estes limiares deslocam-se para além das fronteiras que separam a vida da morte para, a partir desse ponto, identificarem um novo morto vivente, que Agamben chama de novo homem sacro. Os refugiados, nesse contexto, porque rompe a continuidade entre homem e cidadão, ou seja, entre nascimento e nacionalidade, expõe a ficção originária da soberania moderna colocando-a em crise.

O refugiado, ao exibir às claras o dito resíduo havido entre nascimento e nação, revela aquela vida nua que constitui, na cena política, o seu secreto pressuposto. “Neste sentido, ele é verdadeiramente, como sugere Hannah Arendt, ‘o homem dos direitos’, a sua primeira e única aparição real fora da máscara do cidadão que constantemente o cobre. Mas, justamente por isto, a sua figura é tão difícil de definir politicamente” (AGAMBEN, 2010a, p. 129), porque desembaraçando resolutamente o conceito de refugiado – ou a vida nua que ele representa – do de direitos do homem, considerando a

56Já Sieyès nas suas Préliminaires de la constitution, afirma com clareza que: Les droits naturels et

civils sont ceux pour le maintien desquels la societé est formée; et les droits politiques, ceux par lesquels la societé se forme. Il vaut mieux, pour la clarté du langage, appeler les premiers droits passifs el les seconds droits actifs... Tous les habitants d’um pays doivent jouir des droits de citoyen passif... tous ne sont pas citoyens actifs. Les femmes, du moins dans l’état actuel, les enfants, les étrangers, ceux, encore, qui ne contribueraient en rien à fournir l’établissement public, ne doivent point influencer activement sur la chose publique. (SIEYES, 1985, pp. 189-206). E o trecho supracitado de Lanjuinais, depois de haver definido os membres du souverain, continua com estas palavras: Ainsi les enfants, les insensés, les

mineurs, le femmes, les condammés à peine afflictive ou infamante... ne seraient pas des citoyenss

70 tese arendtiana de que há uma ligação dos destinos dos direitos aos do Estado-nação moderno, é de se concluir que se este entra em declínio, aqueles, necessariamente, tornar-se-ão obsoletos.

Daí Agamben concluir deva o refugiado ser considerado por aquilo que ele é, um conceito-limite que coloca as categorias fundamentais do Estado-nação em crise. Pondo abaixo o nexo nascimento-nação para esse pretenso homem-cidadão da Declaração, a figura do refugiado permite “desobstruir o campo para uma renovação categorial atualmente inadiável, em vista de uma política em que a vida nua não seja mais separada e excepcionada no ordenamento estatal, nem mesmo através da figura dos direitos humanos” (AGAMBEN, 2010a, p. 130). A indignidade política humana, nesse contexto, então, revelar-se-á, tanto com Arendt quanto com Agamben, na relação havida entre o soberano e seus súditos.