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CAPÍTULO I: NÓS, O MUNDO E O SOCIAL

2 O esquecimento do ser

Com isso há em Heidegger – uma inegável influência no pensamento de Hannah Arendt que importa referido na medida do esclarecimento que traz à questão – uma crítica profunda à objetivação do mundo na medida em que esbarra na inseparabilidade do sujeito e do objeto que este método impõe. É que a verdade não poderá ser tratada por intermédio de um sujeito observador, já que nessa relação entre sujeito e objeto instalar-se-á a dúvida quanto à apreensão da verdade, na medida em que essa verdade só pode ser encontrada no próprio ser25 e não no sujeito que observa.

A metafísica, ao postular a essência como algo eterno e imutável, acaba por negá-la ao homem. Será uma essência que já nasce morta na medida em que nega a experiência do aparecimento manifesto. “O desvelamento é essencialmente fático” (HEIDEGGER, 1997, p. 290). Essência é vir à presença, realizar potencialidades. Tem lugar em situações concretas que se manifestam na cotidianidade, onde o mundo se

exemplo. Para muitos, isso não é um argumento. Para os filósofos analíticos, tal perspectiva é sem sentido. Parece que estamos confrontados com a metafísica sem provas conclusivas. Senti, a partir da minha própria experiência, a importância dessa atitude de Heidegger. Como estudante de filosofia, lia Heidegger e compreendia o significado das suas palavras; todavia ainda não entendia o que ele queria dizer. Não entendia a força dessa confrontação com a metafísica. Somente depois de muito tempo, com a experiência da guerra com a Iugoslávia, entendi o significado de se pensar, hoje, a diferença, o individual. E, também, como é sacrificado o individual em nome do geral e, atualmente, em nome do global. Minha experiência na Iugoslávia foi praticamente uma experiência heideggeriana. A pré-compreensão que eu tinha sobre a diferença se transformou em compreensão. Agora entendo não apenas o sentido das palavras, mas a força dramática da pergunta sobre o Outro e a necessidade dessas questões no contexto em que o particular, o diferente, desaparece” (MILOVIC, 2004, pp. 124-125).

25 “A questão central acerca do sentido do ser respeita a distinção entre ser e ente. Quer dizer, além de

constituírem duas formas verbais distintas (o ente é o particípio presente do verbo ser) o ente é tudo aquilo que é; é a realidade (sendo). Neste sentido, a realidade é vista sendo, na medida em que não se vê o ser da realidade. Vê-se o ente e não o ser, não obstante seja o ser que fundamente todo o ente. A compreensão do ente, de como a realidade é tomada, tem como fundamental o destino do processo do ser. Enquanto o ente é um dado, o ser é um problema. O que HEIDEGGER chamou de ser assume, ao longo da história da filosofia, várias formas: em KANT é a razão pura, em HEGEL, espírito absoluto etc.” (CHUEIRI, 1995, p. 41).

45 apresenta fenomenologicamente. Nesse sentido, para levar uma coisa à plenitude de sua essência, o pensamento deve deixar que uma coisa seja. Nesse contexto, o projeto moderno será um niilismo trazido por intermédio do domínio da tecnologia e que é resultado da metafísica iniciada com Platão, desenvolvido ao máximo pelo racionalismo cartesiano.

A metafísica sempre foi marcada pela entificação do ser. Ao “pensar”, “pensa” em algo. Traduz-se no pensamento de alguma coisa. E, desse modo, ao perguntar “o que é?”, o ser passa, imediatamente, a ser pensado como algo e, por isso, já começa a ser esquecido. Ou seja, ao colocar o ser como ente, instala-se um processo de coisificação do ser, e o ser, por obviedade, não pode ser compreendido através de nenhum ente, já que a verdade do ser permanecerá distante do pensamento metafísico.

Assim é que, no âmbito da instituição e de operacionalização de um sistema político, imergindo até seus membros, para pensarmos originariamente a verdade do ser, imprescindiremos de uma libertação dessa apropriação técnico-científica que transforma o ser em objeto, pela redução de sua essência a conceitos e teorias. Se o esquecimento do ser se instala em prol de uma supremacia do ente, instalada está a decadência e a inautenticidade, para Heidegger, na medida em que estaremos fechados para a abertura do que de fato somos para ficarmos abertos apenas para o ente. Sair do paradigma do conhecimento em voga envolverá, pois, o compromisso do pensamento, não com o ente, mas com a autenticidade do ser26.

O esquecimento do ser, no âmbito desse processo de reificação que nos interessa mais de perto, ou seja, no âmbito da transformação de relatos de opiniões ocorrentes no mundo da vida em objetos juridicizados, significa o desvirtuamento, a supressão ou desconsideração (não de modo despropositado) de diversos sujeitos constitucionais que integram a comunidade política a que se destina a normatividade produzida pelo Estado que, por conta da impossibilidade do aparecimento do ser – esquecido nessa operatividade – não poderá, a rigor, ser reconhecido, não verdadeiramente, como Estado Democrático.

26 “O sentido do ser acompanha o ser-no-mundo, [...] como forma que é a condição de possibilidade de

compreensão que o estar-aí tem de si, dos utensílios que maneja [...]. Os existenciais como modos do ser do estar-aí são cooriginários com a compreensão que o Dasein tem de si em seu ter-que-ser: a compreensão de seu ser é já sempre uma tarefa (STEIN, Seis estudos, p. 14). Quer dizer, o Dasein já possui, antecipadamente, uma compreensão de si e dos utensílios com os quais lida.” (CHUEIRI, 1995, p. 42).

46 Assim é que – como a perversão dos meios e fins ocorrente no âmbito do mecanicismo e automatismo do fazer impingido pela máquina estatal que reduziu o homo politicus a um animal laborans, ou seja, em um servo da soberania – o subjetivismo e alienação que afasta o homem do mundo e o leva ao esquecimento do ser torna a dignidade política humana praticamente impossível. Também, porque o cálculo cartesiano que passou a caracterizar o pensamento moderno promoveu outro fenômeno que intensifica esse projeto moderno de indignidade. Trata-se de um processo decorrente do método cartesiano inerente à ciência moderna que Hannah Arendt descreve como substituição do “o que” pelo “como”.