• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO I: NÓS, O MUNDO E O SOCIAL

1 O que somos e o que estamos fazendo na modernidade?

1.3 Subjetivismo e alienação modernos

Por que para Arendt os modernos não percebem a distinção entre “o labor de nosso corpo” e “o trabalho de nossas mãos”? Por que insistiram tanto em distinguir ‘trabalho improdutivo’ (na realidade trabalho) de ‘trabalho produtivo’ (na verdade, obra)? A razão da insistência dos modernos em distinções como esta reside na ênfase que dão ao sujeito, a partir de Descartes. Por isso é que Marx, segundo Arendt, acabou por confundir trabalho com obra, voltando-se para o sujeito (para a ‘força de trabalho’). Os modernos perguntam sobre quem produz; olham para o sujeito, para dentro dele, alienando-se do mais importante: do mundo. O homem moderno é, portanto, não só um trabalhador consumidor entregue ao mecanicismo de seu modo de vida, mas alguém que é também alienado21.

Para Arendt, Descartes representou um papel essencial nesse subjetivismo moderno. Descartes encerrou o homem na introspecção promovendo uma perda do senso comum que surge normalmente quando partilhamos o mundo com os outros. O ponto arquimediano passou a ser o “eu” (a existência do espírito passou a ser o fator mais certo do conhecimento), o que nos levou, desta forma, do mundo para o sujeito; o novo ponto de “objetividade” para o conhecimento.

Contudo, o ‘trabalho improdutivo’ está afeto ao animal laborans; e o ‘trabalho produtivo’, está afeto ao homo faber. E esta diferença, segundo Arendt, não é trivial,

21 “Arendt quer dar um giro ao largo disso e perguntar acerca do trabalho sob outra lógica; não pergunta

mais a respeito do sujeito, e nem mais acerca da quantidade; mas sobre o produto mesmo e o processo que o produz, sobre o caráter da coisa produzida, sua localização, sua função e a duração de sua permanência no mundo. Esta é, aliás, o que nos parece ser a chave para abrir-nos à compreensão do diagnóstico feito por Arendt, e que pode nos levar à construção do antídoto do totalitarismo: não repetirmos mais a pergunta sobre o sujeito político; mas, sobre os processos políticos a que está submetido e que o condiciona, a fim de encontrar uma “forma” de anulá-los. Só assim parece possível falarmos de um modelo de corpo político que possa, um dia, dignificar politicamente o ser humano de novo” (DOURADO JÚNIOR, 2013, p. 35).

43 pelo contrário, é fundamental. No primeiro tipo de “trabalho”, desconhecendo o nascimento e a morte, o esforço cíclico, fútil, que reproduz o processo biológico vital, é consumido tão depressa quanto despendido, tendo como propulsão a necessidade que tem o animal laborans de sobreviver. No último, o esforço se traduz na produtividade da obra, realizada na linearidade da história descrita entre o nascimento e a morte da biografia do homo faber22.

A não percepção da diferença entre “o labor de nosso corpo” e “o trabalho de nossas mãos” é um importante sinal para Arendt de que, de fato, não vemos o que somos e o que estamos fazendo. O próprio fato dessa ausência de percepção significa, de per si, que estamos mesmo alienados do mundo23. E que, realmente, é por conta da ênfase dada ao processo vital e à subjetividade, ou seja, à força de trabalho, que toda obra passa a ser confundida com trabalho. Aos modernos interessa o sujeito. Com isso, esquecem-se do mundo.

Pior que isso será o esquecimento do próprio ser. O projeto moderno fulcrado numa racionalidade subjetivista determinou, a partir dessa subjetividade, segundo Heidegger, a alienação do homem no que diz respeito ao seu “ter-lugar” no mundo, deturpando sua condição originária. Trata-se, vale dizer, de um projeto que, distinguindo-o do todo, provocando a cisão entre ele e o outro, entre o sujeito e o objeto, acabou por abandoná-lo “na multidão do ‘ser-ninguém’”. 24 Assim é que a modernidade

22 Trata-se de um processo que se identifica com a ideia de distinção. A extinção do homo faber, fundido

que foi ao animal laborans, leva-nos a uma vida comparada com a dos animais que, sem capacidade de distinção, apresentam-se ao mundo como mera reprodução de sua espécie. Ao contrário do homo faber que, ao realizar a obra, registra, de modo indelével, sua passagem pelo mundo. Um outro modo de Arendt referir a questão do esquecimento do ser, ou, em outras palavras, da indignidade política humana.

23 “A alienação moderna teria decorrido, para Arendt, da descoberta da América, da Reforma e da

invenção do telescópio que representa a descoberta do ‘ponto arquimediano’. A primeira por promover um apequenamento do mundo constituindo proximidades que permitiram a redução de distâncias e, com isso, colocando um distanciamento entre o mundo e o homem que, para observá-lo e dele dizer, afastou-se de seu mundo próximo, alienando-se dele. A reforma fez surgir, a partir do fim do feudalismo, uma classe de pessoas separadas de seu mundo físico a que estavam ligadas antes da expropriação da propriedade eclesial. Finalmente, a descoberta do telescópio levou o homem a pensar a natureza a partir de um ponto apartado da Terra” (DOURADO JÚNIOR, 2013, pp. 35-36).

24 “...a fenomenologia, para Heidegger, é a condição para se repensar a questão do ser. O ser não está no

mundo, ele pode ou não aparecer com a questão sobre o sentido da nossa vida. A pergunta sobre o ser é uma pergunta sobre o sentido que a fenomenologia elaborou. Portanto, a fenomenologia poderia ser o começo de uma nova cultura. Entretanto a dúvida de Heidegger sobre a fenomenologia é que a mesma permanece dentro da tradição que se quer criticar. Algo ainda ficou escondido, que somente agora a hermenêutica pode revelar. Algo que pode aparecer como fenômeno, não com a fenomenologia, mas com a hermenêutica. O que poderia ser? Neste ponto, Heidegger tenta reconstruir a estrutura do ser-aí. O ser-aí não é o sujeito seguro e firme. Não é o sujeito transcendental. Ele está lançado no mundo e tem apenas as condições da pré-compreensão. Mas não existe nenhuma garantia, nenhuma teleologia como pré- compreensão transformando-se em compreensão. Se vamos entender o sentido da própria vida, isso depende das situações que Heidegger chama de existencialistas, que incluem a angústia e a morte, por

44 teria inaugurado uma experiência que, presa a conteúdos, tentando encontrar significados metafísicos, separou, e modo intransponível, o ser e as coisas.

Com o recrudescimento dessa subjetividade moderna, o que havia sido reduzido a objeto é colocado à disposição da manipulação e apropriação – como o próprio sujeito foi –, processo no qual um intenso esquecimento do ser então se revela no império técnico-científico, mormente do Direito.