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2.2 A História da Infância

2.2.2 A infância e as civilizações clássicas

Como considerado anteriormente, o maior impacto que a infância sofreu no período agrícola consistiu em torná-la útil para a economia e a obediência era a garantia dessa força de trabalho.

Assim, essa infância já influenciada pela agricultura passou a sofrer novas influências das civilizações clássicas por meio de princípios advindos de crenças, estilos artísticos, padrões políticos, organizações sociais e comércio. Aqui, o foco está direcionado às sociedades chinesa, mediterrânea e indiana, que, segundo Stearns, (2006) apresentam características que ressoam até os nossos dias.

A infância na sociedade chinesa

A China é considerada por Stearns (2006) como a civilização clássica que primeiro obteve uma forma razoavelmente nítida sobre as características da infância. O período

3 O tráfico de seres humanos não visa somente a fins comerciais (prostituição, turismo sexual, pornografia etc.),

mas também ao trabalho forçado e escravo (na agricultura, na pesca, nos serviços domésticos, na indústria, etc.) e à extração de órgãos e adoção caracterizada como formas modernas de escravidão. Uma das ramificações desse fenômeno está relacionada às relações culturais, como machismo, questão do gênero, de classe, etnia e adultocentrismo, que coloca mulheres, crianças e adolescentes como grupo vulnerável. Durante a explanação desse trabalho, pode-se encontrar esse fenômeno, que hoje é considerado como uma atividade criminosa, através das famílias chinesas de classes populares que investiam em formação para as meninas na área da dança e canto, tendo como destino a venda para homens ricos. Outro exemplo é o tráfico de escravos da África que acarretou para milhões de crianças processo de privações, humilhações e atrocidades. Atualmente, uma das formas de tráfico humano que se pode encontrar bem próximo de nossa realidade é a situação de imigrantes bolivianas em SP que trabalham em confecções irregulares. Apesar do sofrimento com insalubridade do local de trabalho, violência doméstica e sexual, essas mulheres chegam a trabalhar das 7 da manhã até a 1 hora da madrugada (TELES, 2007). O fenômeno do tráfico humano, apesar de detectado, mas ignorado, desde as civilizações antigas, vem mostrar ao longo da história a vulnerabilidade de mulheres, crianças e adolescentes até os dias atuais devido à ausência de politica pública que enfrente a discriminação e o racismo.

clássico na China recebeu grande influência do confucionismo, atribuindo significativo número de características à infância com regras tão aperfeiçoadas, que até determinava como uma criança deveria chorar seus pais falecidos. “[...] o próprio Confúcio recomendava três anos para pai e mãe, o mesmo lapso de tempo em que uma criança havia sido amamentada” (STEARNS, 2006, p.41).

É interessante esclarecer que os registros em relação à infância, em sua maioria, praticamente em todas as civilizações clássicas, são percepções da classe mais alta – a única comumente instruída, se comparada à população, em geral.

Na sociedade chinesa clássica, o filho poderia ser punido por criticar pais e sentenciado à morte por decapitação, se ofendesse os mesmos. Entretanto, os pais que agrediam ou matassem seus filhos recebiam penas modestas. Comportamentos como preguiça, envolvimento em jogo ou até bebida incidiam em expulsão da família por parte dos pais, contando com o apoio das Cortes de Justiça. Nesse contexto, era comum que os pais decidissem o casamento do filho, assim que a criança nascia, com o objetivo de aumentar os arranjos de propriedade para a família.

Existiam leis que resguardavam as crianças, entretanto eram menos elaboradas e a punição branda. As severas práticas de punição e o infanticídio eram deliberados em lei; a matança de meninas e de crianças defeituosas estava relacionada a questões econômicas: as meninas eram assassinadas em períodos de dificuldades econômicas e as crianças defeituosas, porque acarretavam cuidados onerosos.

O confucionismo orientava os pais a não exprimir sentimento excessivo pela morte de um filho. As crianças que viessem a falecer mereciam rara manifestação pública de emoção. Com efeito, a cultura chinesa demonstrava escassa afeição pelas qualidades infantis.

Em relação à educação, aos pais cabia a responsabilidade de garantir que as crianças obtivessem sucesso nos estudos, entretanto a educação na China clássica fazia distinção de gênero e era hierárquica. Somente os meninos e de classe alta eram incentivados pelo confucionismo a estudar. Às meninas estava reservada uma educação peculiar, na qual se destacava o desenvolvimento de aptidões para administrar uma casa e de obediência.

A educação para meninas era incentivada, porém, somente as meninas pertencentes às famílias de classe alta podiam ter acesso privilegiado à leitura e à escrita. Algumas famílias das classes populares até investiam em formação para as meninas na área da dança e canto, entretanto, o destino de muitas delas era o de serem vendidas como amantes a um homem rico.

De acordo com Stearns (2006), há vários escritos no período clássico que registram a visão confuciana sobre educação, com destaque para as questões ligadas à moral e à instrução acadêmica. No currículo era incentivado o estudo em história e literatura clássica, com ênfase na memorização. Uma das características incentivadas pela civilização chinesa está relacionada à disciplina e à obediência, enfatizando a autoridade paterna.

A infância na sociedade mediterrânea

Os registros históricos sobre a civilização grega não demonstram uma visão objetiva da concepção de crianças. Existem ambiguidades que dificultam a compreensão dessa sociedade a respeito da ‘noção de criança’. Os registros da cultura grega e romana são a porta de entrada para se considerar a ideia de infância e o pensamento na história sobre a infância. Aos romanos é atribuída uma visão moderna de infância por meio dos escritos de Quintiliano, ao declarar a necessidade de proteger as crianças de alguns segredos, dentre eles, os sexuais (POSTMAN, 2012; STEARNS, 2006).

Os gregos são considerados os fundadores da civilização ocidental. A partir da sociedade grega, inúmeras concepções, consideradas patrimônio da humanidade, foram desenvolvidas, como a geometria, a lógica, a gramática, a filosofia, a física, a biologia, a matemática teórica, a retórica, a astronomia científica, o teatro, a democracia, a arte da guerra e, até mesmo, os jogos olímpicos.

Nos registros sobre as civilizações mediterrâneas clássicas fica evidente o escasso vínculo em relação às crianças e seus pais, até porque esse tipo de relacionamento não era regra. Em muitas famílias, de acordo com os registros, a criança, principalmente da classe alta, convivia com diferentes adultos, além dos seus pais em suas residências.

Fica evidente, segundo Stearns (2006) e Koan (2003), na discussão sobre a infância nas culturas grega e romana, o destaque atribuído à juventude. Essas culturas tinham admiração pela juventude. Esses autores afirmam que, ao mesmo tempo em que o físico e a estética eram exaltados, a juventude também era considerada como um período de excitação, desordem e fase explosiva que deveria se passar o mais rápido possível para fase adulta.

A morte de um garoto adolescente na sociedade mediterrânea clássica era motivo de nítido choro pela perda do membro da família, bem como pela perda de um trabalhador suplementar na família. Em contrapartida, as mortes de crianças recebiam pouca atenção por parte dos familiares nas culturas mediterrâneas e chinesa. De acordo com Stearns (2006), para

essas duas sociedades, o infanticídio de meninas era largamente aceito. Cerca de 20% das meninas nascidas em Atenas eram assassinadas.

Segundo Kohan (2003), o tema “infância” para Platão está relacionado ao problema da deterioração de Atenas. Para esse filósofo, a pólis só poderia alcançar um estado melhor, mais belo e justo a partir da educação da infância. Em sua compreensão, a evolução da pólis está intrinsecamente ligada à qualidade dos indivíduos e, especificamente, às crianças. É interessante que, ao mesmo tempo, Platão destaca a importância da infância para o avanço da pólis e a associa a imagens inferiores, como ausência, vazio, falta de acabamento, vergonha, desqualificação, condição de incapaz e, por isso, menciona a disciplina como proposição a ser exercida por qualquer homem livre, sob a forma de ameaças e pancadas.

Além das crianças, mulheres, escravos e estrangeiros não dispunham de direito político. Os homens que ocupavam cargos na política, na guerra, na arte ou na ciência, eram considerados os verdadeiros cidadãos. Assim, pouca atenção era concedida à criança nos registros literários e médicos. O interesse pelas crianças não estava relacionado ao que elas eram, mas aos adultos que viriam a ser e que, provavelmente, governariam a polis.

Os atenienses chegaram a fundar as primeiras escolas, nas quais estudavam um restrito número de discípulos. Em contrapartida, as crianças não faziam parte desse contexto educacional, ficando assim sua educação destinada à família. Dessa forma, a educação não chegou às crianças e a escola que conhecemos na modernidade com a proposta de que todos os grupos de crianças se dirijam a ela, com o fim de se “submeterem à ação comum de professores que aplicam o mesmo programa” (TARDIF, 2010, p.48), não existiu no contexto grego. Todavia, a educação da cultura mediterrânea tinha um público adolescente e jovem, masculino, de classe alta e recebia conteúdos relacionados à retórica, oratória, história, literatura clássica, com destaque para a memorização.

Havia um grande interesse por parte dos gregos com a educação. Para Platão, o meio para obter a pólis almejada, mais justa e melhor encontrava-se estreitamente relacionado à educação na infância, uma vez que considerava a educação como um processo de extensa aprendizagem com início na infância e prosseguimento até a idade adulta.

Ainda, segundo Platão, a infância era um momento crucial na vida de um indivíduo, com base no princípio de que “tudo o que venha depois dependerá desses primeiros passos” (KOHAN, 2003, p.18). A proposta de Platão contemplava que a importância não estava na infância, mas no que essa criança se tornaria no futuro, ou seja, o valor da criança não estava em si mesma, mas na sua potencialidade. Para Platão, em a República, a educação torna-se

uma tarefa política com o pressuposto de que “educa-se para politizar os novos, para fazê-los participantes de uma pólis que se define previamente para eles” (KOHAN, 2003, p.26).

A infância na sociedade indiana

Outra sociedade clássica que Stearns (2006) destaca é a indiana que tinha como característica marcante a divisão social e a distinção de gêneros. Nessa cultura a educação para as meninas não era considerada importante, até mesmo nas castas superiores. O acesso das meninas estava restrito à educação religiosa, por parte dos pais. Os meninos, logo depois da primeira infância, recebiam educação e disciplina do pai. Muitos eram encaminhados para os gurus que ensinavam a educação religiosa, com a inclusão da leitura, escrita e matemática. Além dos estudos, os meninos realizavam os “deveres laborais” que, de acordo com Stearns (2006), encontravam-se relacionados a atividades de preparação da comida, de juntar lenha, dentre outros. Apesar de os conteúdos indianos apresentarem diferenças em relação a outras civilizações clássicas como a chinesa e a mediterrânea, ainda assim, essas três civilizações tinham em comum a ênfase na memorização.

Uma das formas de controle sexual acontecia por meio do casamento precoce de meninas, a partir dos quatro anos de idade, tendo como limite até os 10 anos. O casamento era uma espécie de negócio entre os pais, em que a filha se unia ao marido, quando se tornasse mais velha. Pelos registros de Stearns (2006), pode-se constatar que o casamento precoce, o trabalho e a educação austera não eram formas de “controle” somente da juventude, mas também da infância.

Entretanto, a criança, ainda sim, era estimada em sua essência infantil. Antes de as crianças nascerem, as mães recebiam especial atenção com o objetivo de promover uma educação benéfica. Dessa forma, a criança ao nascer era considerada como um convidado de honra e sua amamentação era estimulada, mesmo depois de alimentar-se com alimentos sólidos.

À medida que a criança crescia, a família concedia brinquedos como bolas de gudes e piões. Outra preocupação para com a criança era afastá-la do cotidiano adulto com o intuito de não prejudicar o período da fantasia na infância.

Como síntese das ideias fundamentais relativas ao período da infância no universo das civilizações clássicas, é possível detectar significativos pontos de semelhança e de contradição: a) a criança ora era considerada como importante para o avanço e melhoria da pólis, bem como era associada à ideia de ser inferior, desqualificado e incapaz; b) as crianças

do sexo feminino, além de serem alvo de infanticídio, não tinham acesso à leitura e à escrita, salvo nas famílias de classes mais altas, como na sociedade chinesa; c) no que diz respeito à utilização da mão de obra de crianças, o trabalho era uma forma de controle e adestramento que não admitia preguiça, sendo possível a sua expulsão de casa, como no caso na sociedade chinesa; d) a educação da infância apresenta certa similaridade no que se refere, por exemplo, o acesso à educação restrito aos meninos e aos pertencentes à classe alta; para as meninas, somente na sociedade chinesa era incentivada a leitura e escrita, embora restrita às crianças da classe alta. E, finalmente, em relação ao currículo escolar, evidencia-se como ponto comum presente nas três sociedades a valorização da memorização como prática de ensino.

Enfim, como indica Stearns (2006), o que fica evidente é que a criança ganhou espaço nessas sociedades por meio do trabalho infantil, enfatizado, sobretudo, no período agrícola. As civilizações clássicas apresentaram determinadas variações quanto ao padrão de infância, mas em todas as culturas a infância ganhou destaque pela sua produtividade que era obtida, basicamente, por conta da imposição da disciplina e da obediência, o que, por vezes, levava milhares de crianças a serem agredidas, abandonadas ou mortas.