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A influência da cultura africana nos adornos brasileiros

2.2 A joalharia no Brasil

2.2.3 A influência da cultura africana nos adornos brasileiros

Durante todo o período colonial, especificamente entre os séculos XVl e XIX, o Brasil recebeu milhares de embarcações com escravos vindos de diversos lugares do continente africano. A cultura africana exerceu importante papel formação cultural e artística brasileira, principalmente na culinária, religião, música, dança e vestuário. No caso do estudo das joias, além de simples adornos, expressam elementos representativos para a formação da identidade cultural brasileira. Diferentemente do Brasil, que possuía uma série de recursos naturais valiosos, a África era dotada de mão-de-obra e força de trabalho. A escravidão africana já era praticada pelos portugueses, antes mesmo do descobrimento do Brasil, pois a mão-de-obra escrava foi a mais valiosa mercadoria encontrada em expedições pela África (Macedo, 1974). Assim que os

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escravos chegavam ao Brasil, transportados em navios negreiros, eram comercializados nos próprios portos.

As atividades realizadas pelos escravos nas terras brasileiras estavam baseadas principalmente na agricultura e no serviço doméstico. Os escravos agricultores tinham uma rotina de trabalho árdua e não se beneficiavam do convívio social. Os escravos domésticos levavam uma vida mais confortável e realizavam atividades mais leves, o que possibilitava a preservação de alguns costumes da cultura africana. Os elementos culturais de maior contribuição africana estão ligados à dança e a música, no desenho de estampas em tecidos, esculturas e outros objetos, além do vestuário e da ornamentação pessoal. Através dos adornos expressaram-se valores culturais que por meio de símbolos podiam comunicar graus de hierarquia, diferenciação perante a sociedade e tradições religiosas. Os adornos corporais de origem africana não são associados à joalharia convencional entre as elites daquele tempo. Suas peças eram maiores do que as joias das senhoras brancas e eram usadas sempre em grande quantidade. Dentre as peças mais utilizadas pelas escravas estavam colares, com cruzes, rosetas e outros pingentes, brincos, pulseiras de placas, braceletes de “copo”, anéis e pencas de balangandãs15. Na sua

maioria eram produzidos em ouro ou prata, porém não maciços, e em algumas peças eram utilizados elementos não considerados preciosos, como o coral, marfim e madeira. Enquanto escravas domésticas, os senhores assumiam a responsabilidade pelo seu vestuário e ornamentação, uma vez que as mesmas eram vistas em eventos sociais e as joias constituíam sinais de riqueza e poder.

“Quando, por exemplo, nas poucas vezes em que a senhora de família abastada saía às ruas, era acompanhada de suas escravas, vestidas de sedas e enfeitadas de joias. Se as senhoras brancas desfilavam em um cortejo reluzente em que tilintavam ouro e pedras preciosas, as escravas eram adornadas com várias vezes o próprio valor da sua alforria, mostrando o status de seu senhor.” (Cunha & Milz, 2011, p. 152)

Entre os séculos XVIII e XIX, as joias de crioula, denominação utilizada para os negros já nascidos no Brasil, misturavam-se com as tradições de ourivesaria portuguesa e, assim, surge

15Ornamentos, em geral, de prata, que as crioulas baianas usavam em dias de festa. Fonte: Dicionário Priberam da

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um estilo singular, jamais visto antes e que são marcadas pela hibridação das culturas africana e europeia, através das fusões de técnicas utilizadas na sua produção e da sua aparência e pelos seus valores culturais. Neste processo de identificação da influência africana nas joias e adornos percebe-se a forte presença da religião (figura 7). Os escravos vindos da África descendiam de diversas tribos e possuíam diferentes religiões. Quando chegaram ao Brasil, suas crenças foram unificadas e transformadas em apenas uma religião denominada candomblé (Carneiro, 2008).

Figura 7: variedade de joias utilizadas pelas crioulas afro-brasileiras.16

O candomblé serviu como inspiração para diversas joias e seu uso estava diretamente ligado à identificação dos seus seguidores aos orixás17, que são os denominados deuses afro-brasileiros,

através da utilização de fios de contas (figura 8). Segundo Lody (2001), contas são uma designação geral para tudo o que é processado por enfiamento com a finalidade de ser um fio- de-contas. Esses fios eram utilizados como colares e pulseiras de diversos tamanhos, modelos e materiais. Quanto mais colares e mais enfeitadas as contas utilizadas, maior era a possibilidade de se identificarem uns aos outros dentro da hierarquia do candomblé.

16 Fonte: Ilustração do livro Joias de crioula (Cunha & Milz, 2011).

17 “Divindade introduzida no Brasil pelos negros escravizados na África ocidental, e cultuadas nos candomblés da Bahia e em outros ritos afro-brasileiros. Cada orixá está materialmente representado no peji (altar dos candomblés) por fetiches. O orixá tem cantos, denominados pontos, toques de atabaque, danças, vestimentas, dia, insígnias e gritos de saudação próprios. As filhas-de-santo de cada orixá usam cores específicas, e lhe sacrificam animais sagrados e oferecem seus alimentos preferidos.” Fonte: Dicionário Online de Português (http://www.dicio.com.br/orixa_2/).

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Figura 8: Pulseira de contas que pertenciam as crioulas da Bahia.18

Além da mão-de-obra para a realização do serviço braçal, as escravas também serviam para satisfazer o desejo sexual dos seus senhores. Além das contas, os colares continham símbolos católicos como o crucifixo, figas, corações, entre outros símbolos. Os colares tinham as contas de alianças entrelaçadas em que cada uma delas era uma aliança portuguesa conquistada após uma noite de amor (Lody, 2001).

Alguns materiais utilizados nas joias das crioulas tinham significados sobrenaturais associados ao candomblé. O coral, por exemplo, era considerado pelos africanos o elemento do deus Oxum e possuía propriedades mágicas, que representavam proteção às forças contrárias a esta entidade. O coral é um material orgânico marinho explorado no Mediterrâneo e no Oceano Índico e foi trazido pelos portugueses no século XV e comercializado em toda a Europa e no continente africano (Paiva, 2001). Também nas joias das crioulas eram esculpidos rostos de membros da coroa portuguesa que simbolizavam a inclusão social. A penca de balangandã (figura 9) é um adorno especificamente brasileiro identificado nas crioulas da Bahia no século XVIII, composto de diversos elementos que constituem um amuleto de proteção a quem o usa. Sua origem está nos cultos religiosos africanos e representa Ogum, o orixá dos que trabalham com o ferro. Seu uso surgiu pela necessidade da negra de se proteger contra o “mau-olhado” ou como forma de evocar o lucro material ou agradecer uma bênção (Magtaz, 2008).

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Figura 9: Penca de balangandãs em prata.19

Os balangandãs tinham significado voltado à religião e possuíam diversos objetos que simbolizavam os orixás, signos relacionados à cultura africana, e também signos relacionados ao catolicismo como os santos e a cruz. Ainda no período da escravidão, algumas das crioulas circulavam com seus adornos e eram autorizadas pelos seus senhores a comercializar produtos como as ervas, frutas e pratos culinários de origem africana. Após a abolição da escravatura em 1888, muitas das negras que viviam na Bahia foram para o Rio de Janeiro em busca de melhores oportunidades. Essas baianas representavam grande influência social e sua imagem era associada às manifestações de cultura popular como o samba, o carnaval e a religião de forma original. Com seu estilo de vestir caracterizado pela saia rodada, turbante na cabeça e os colares de contas, as baianas começam a ser representadas no âmbito cultural pela hibridação étnica. Carmem Miranda20, ao interpretar a canção de Dorival Caymmi, “O que é que a baiana

tem?”, foi uma das primeiras artistas brasileiras que conseguiu expressar ao mundo, através da dança e do seu traje inspirado nas baianas, a miscigenação cultural presente na identidade brasileira.

Hoje em dia, a presença das contas é ainda muito forte nos elementos culturais brasileiros. Não somente em manifestações da cultura brasileira, como o carnaval e cultos religiosos populares, os brasileiros costumam utilizar em seu cotidiano os fios de contas como amuletos de proteção. Se, hoje, materiais de baixo custo e até não duráveis substituíram o ouro, a prata e o coral,

19 Fonte: Ilustração do livro Joalheria brasileira: do descobrimento ao século XX (Magtaz, 2008).

20 Carmen Miranda: Cantora popular brasileira que se tornou atriz de Hollywood. Ficou marcada por representar de forma estilizada a baiana como ícone de identidade nacional brasileira nos 1930 e 1940 e difundiu a cultura brasileira no cenário internacional (Garcia, 2004).

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permanecem as formas e o gosto pela fartura, a vontade de ostentar imagens exuberantes. Como as cantoras e a baiana típica, as joias de crioula e os fios de contas do candomblé constituem uma preciosidade, são verdadeiras pérolas da cultura brasileira (Conduru, 2013, p. 37).