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A influência da LIBRAS em gêneros textuais escritos em português

No documento Letramento em comunidade de surdos (páginas 133-137)

CAPÍTULO 6 – Gêneros textuais escritos e suas funções sociais

6.3 A influência da LIBRAS em gêneros textuais escritos em português

Em diversas situações sociais da comunidade, se encontra a produção (muitas vezes por parte de ouvintes) de uma escrita que será aqui denominada, para fins analíticos, como português com influência da LIBRAS. Nas salas de aula dos cursos oferecidos na igreja, onde o uso da leitura e da produção escrita não é considerado objetivo acadêmico, e sim, um veículo de transmissão das mensagens religiosas, os professores quase sempre escrevem da forma que consideram mais apropriada para a compreensão dos surdos. Por exemplo, no comando de uma atividade para ser realizada em casa, escreve-se no quadro: ‘Atividade: fazer casa’. Uma professora ajudante da igreja lamenta ainda não ter domínio suficiente da LIBRAS para usar a escrita do português da maneira que eles entendam melhor, que facilite a comunicação. Em seu relato, a instrutora deixa claro que objetiva tornar-se fluente na LIBRAS não apenas para ter mais um veículo de comunicação com surdos, mas para que possa aprimorar sua escrita destinada a eles. Partes de seu depoimento mostram, com clareza, suas concepções:

“Eles não usam artigo, não conjugam os verbos, não usam preposição e outras coisas. Então nós não usamos também. A gente queria colocar um aviso lá que seria assim: Que bom ter vocês novamente, então, eu coloquei assim: Bom ver vocês outra vez. Mas ainda não está bom. Acho que na linguagem deles seria: Outra vez bom ver vocês. Eu não consigo ainda essa passagem”.

“Ou seja, a gente não coloca preposição, artigos, a gente não conjuga os verbos. Você me pediu um exemplo, né? Tem outro: A gente queria botar num cartaz o que podemos fazer na igreja e o que não podemos fazer. Pra salinha das crianças. Daí a gente colocou: Pode fazer. Não pode fazer. Porque se fôssemos explicar no cartaz: essas coisas não podem se feitas na igreja, e essas podem, eles não assimilam. Na realidade acho que pra eles, ainda deveria ser: Fazer pode. Fazer não pode. Ou não... talvez: Não

fazer pode. Está vendo? Eu ainda não sei direito. Não sou boa em LIBRAS”. Um exemplo do uso da escrita do português com influência da LIBRAS encontra-se em panfletos e informativos da igreja, destinados à população surda.

Para os produtores do material, partindo do princípio que o objetivo é comunicar, as formas de se registrar a escrita tornam-se legítimas (Figuras 14 e 15).

Figura 14 – Panfleto informativo da Igreja Capunga.

O panfleto da figura 14 foi confeccionado com o objetivo de divulgar a ideologia da igreja e atrair novos adeptos à suas práticas. O público alvo foi a comunidade de surdos, pois esta população cresce a olhos vistos dentro da igreja. O número de adeptos surdos e a quantidade de atividades destinadas a eles vem aumentando nos últimos anos em algumas igrejas da cidade, que fazem, ao menos, o mínimo de esforço para se adaptar às diferenças lingüísticas desta população e receber, de forma atraente, integrantes usuários da LIBRAS. Não é por acaso, que a população surda escolhe essas igrejas para constituir o espaço onde poderão desenvolver sua religiosidade.

Outro exemplo que ilustra o assunto em questão é mostrado na figura 15. A fotografia foi registrada em uma das salas de ensino religioso destinadas aos adultos surdos. O cartaz aderido ao quadro de avisos indica, de forma eficiente que o lixo deve ser inserido no lixeiro, e que de forma alguma deve ser posto ao chão. Os

organizadores do curso preconizam que o importante é que a informação seja transmitida, e não que a escrita obedeça às normas cultas do português.

Figura 15 – Quadro na sala de aula dos adultos (EBD Igreja Capunga).

As mudanças no português escrito, encontradas em alguns gêneros textuais escritos recorrentes na comunidade de surdos investigada neste estudo, são determinadas por objetivos comunicativos e enfatizam o caráter dinâmico, cultural e híbrido dos gêneros textuais. De uma maneira geral, sabe-se que descrições de características típicas como estas, emergentes de funções sociais específicas da escrita, revelam informações sobre a escrita em uso numa comunidade, e por isso, devem ser consideradas e estudadas. Como discutido em capítulos anteriores neste trabalho, a compreensão sobre os diversos usos da escrita social deve servir como um ponto significante de partida para a elaboração de projetos didáticos que visam o ensino da leitura e da produção escrita. Desta forma, otimiza-se à formação de leitores e escritores competentes nas práticas sociais de letramento (BRONCKART, 1999; MARCUSCHI, 2002, 2005; BAZERMAN, 2005).

No entanto, a situação aqui exposta não aparenta ser simples. As mudanças encontradas no português escrito manifestado em diversas interações comunicativas entre surdos e ouvintes podem gerar polêmica, quando consideradas na elaboração de estratégias escolares. Surgem alguns questionamentos, como: Será que a forma específica de escrita dos surdos usuários de LIBRAS, ou seja, o português com

influência da LIBRAS, deve ser utilizado e incentivado em ambiente escolar? Se o objetivo das escolas bilíngües para surdos é o ensino formal do português para que através do uso dessa língua o surdo participe ativamente da sociedade majoritária (de ouvintes), adquirindo parte de sua cultura, será que o uso do português com influência da LIBRAS deve ser considerado e incentivado nas atividades escolares? Desta forma, estar-se-ia dificultando o ensino do português escrito?

Alguns educadores participantes deste estudo acreditam que apenas através do aprendizado da estrutura da língua portuguesa o surdo pode ser considerado bilíngüe. No entanto, enxergam de forma positiva o uso de uma escrita flexível (português com influência da LIBRAS) em ações comunicativas intermediadas pela escrita, ainda que essa escrita surja em ambientes escolares. Isso, desde que, os

objetivos para o uso de cada uma das formas da escrita estejam claros tanto para

os professores, quanto para os alunos. Em outras palavras, quando o propósito é ensinar a ler e escrever, é preciso fazer uso da gramática do português, considerando, obviamente, as variações individuais dos gêneros utilizados nas diversas situações sociais. Mas quando o objetivo é se comunicar com os surdos, acreditam que a melhor maneira de atingi-lo, é através da forma de escrita que melhor comunica, ou seja, o português com influência da LIBRAS. Esta concepção sobre como a escrita deve ser utilizada em interações ocorridas em ambiente educacional foi cuidadosamente explicada por alguns educadores, após confirmarem fazer uso das características típicas da escrita dos surdos. Uma professora do ensino fundamental e médio justifica:

“Quando a gente escreve do jeito deles, eles entendem bem mais rápido. Por isso, quando quero botar algum aviso no quadro, ou mandar algum recado pra eles, escrevo assim mesmo. Mas quando estou trabalhando o ensino do português, claro que não faço isso. Ensino a estrutura do português mesmo”.

Nem todos os educadores pensam dessa forma. Alguns, ainda que acreditem que a forma da escrita do surdo deve ser respeitada e não deve ser encarada como um ‘erro’, mas sim, uma variação; ainda que defendam a aceitação de uma maneira peculiar de escrita do surdo como critério não discriminador na inserção dos surdos em mercado de trabalho (através de concursos) ou no ensino superior (no

vestibular)17, não recomendam o uso deste tipo de escrita por professores em ambiente escolar, argumentando ser este, o espaço para a aprendizagem do português propriamente dito.

Esta discussão pode estar presente em congressos e fóruns realizados por profissionais da Educação, Fonoaudiologia e Lingüística. No entanto, nas comunidades de surdos, em situações específicas, cuja função comunicativa da escrita é clara entre os interlocutores, parece não haver dúvida: a melhor forma de interagir através da escrita com surdos é escrevendo como eles escrevem. É desta forma que também pensam as pessoas que interagem intimamente com surdos usuários de LIBRAS: seus familiares.

O uso da escrita em interações familiares pode ser bem comum entre ouvintes. Muitas são as situações cotidianas que demandam o uso de recados, bilhetes e anotações para tornar viável a comunicação entre parentes. Além do diálogo através da escrita, várias outras situações típicas do ambiente familiar requerem o uso de gêneros textuais escritos, como por exemplo, ao se cozinhar seguindo receitas escritas, ao se corresponder através de cartas ou telegramas, ao se receber contas a serem pagas ou informativos sobre o condomínio, entre tantas outras. A escrita está intensamente presente nos lares e nas interações familiares, seja dos ouvintes, seja dos surdos. Entretanto, a forma como a escrita emerge em ambiente familiares de surdos, e os significados a ela atribuídos, podem conter aspectos peculiares. Algumas destas peculiaridades serão tratadas no item a seguir.

No documento Letramento em comunidade de surdos (páginas 133-137)