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Algumas questões sobre a educação de surdos

No documento Letramento em comunidade de surdos (páginas 50-55)

CAPÍTULO 2 – Concepções teóricas sobre a surdez

2.3 Algumas questões sobre a educação de surdos

O ensino da leitura e da escrita em uma segunda língua é tema bastante discutido por estudiosos na área de Educação e de Lingüística Aplicada. Sabe-se que é possível o aprendizado de uma língua apenas em sua modalidade escrita, sem que exista o domínio desta língua na modalidade oral. Acredita-se que os processos de aprendizagem da fala e da escrita devam andar de maneira autônoma, pois um não depende do outro para ser desenvolvido. A escrita constitui-se em um sistema simbólico de primeira ordem, autônomo, podendo operar por si mesmo. Essa característica autônoma da escrita permite sua apropriação por pessoas que desconhecem o valor sonoro das palavras (FERNANDES, 1990; SANCHEZ, 1990; FERREIRA-BRITO, 1995).

Além do estudante surdo, pode-se pensar em outros exemplos de interesse no aprendizado do texto escrito (compreensão e produção) em uma língua diferente quando não existe o domínio oral desta língua. Pessoas envolvidas em afazeres acadêmicos, que necessitam entrar em contato com produções científicas muitas vezes escritas em outras línguas, ou profissionais que para exercitar e progredir em suas funções precisam fazer leituras também provindas de escritores estrangeiros.

2.3.1 O ensino da leitura e da escrita

A importância do conhecimento do indivíduo sobre textos e habilidades narrativas (seja quanto à produção, compreensão ou às habilidades metatextuais)

vem sendo abordada em propostas educacionais. A proposta apresentada pelo MEC em seus Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL, 1997) menciona a ineficácia das escolas em desenvolver nos alunos habilidades textuais que permitam usar a linguagem escrita de forma ampla, extrapolando o domínio do código alfabético e das regras léxico-gramaticais.

Atualmente, pode-se observar com freqüência o ensino de língua através da compreensão e produção de textos. Um exemplo de gênero textual bastante utilizado em escolas é o literário, e dentro de suas modalidades textuais, recebe destaque a narrativa. Essa modalidade é referida pelo MEC como de fundamental importância durante todo o processo de aprendizagem (SILVA; SPINILLO, 1998). No entanto, as práticas sociais que requerem o uso da escrita estão longe de se esgotar nos gêneros e tipos textuais explorados em escolas. Marcuschi (1996) investigou o trabalho de compreensão de textos escritos sugeridos em livros didáticos de língua portuguesa e constatou que muitos desses livros não trabalham a compreensão textual de maneira adequada. Poucos são os livros que estimulam a reflexão crítica do leitor, impulsionando-o a processos inferenciais. A maioria deles reduz todo o trabalho de compreensão à identificação de informações objetivas e superficiais.

Se a situação em escolas para ouvintes não é das melhores no que diz respeito ao ensino da leitura e escrita, em escolas de surdos torna-se ainda mais crítica. Botelho (2002) afirma que os processos de escolarização de surdos nem sempre priorizam a construção de sujeitos letrados. As atividades de contexto escolar do surdo vêm sendo historicamente centradas no ensino da fala, e não no ensino da leitura e escrita. Segundo a autora, percebe-se imensa diferença quando se compara o investimento nos processos de leitura e escrita em escolas de ouvintes e em escolas para crianças surdas. Um motivo que pode ser apontado como causa dessa situação é o não uso de uma língua em comum entre professores ouvintes e alunos surdos.

O estudante surdo encontra-se em situação bem específica: pretende aprender a ler e escrever uma língua que não domina oralmente e não conta com o aprendizado anterior do processo de leitura em sua primeira língua (língua de sinais), pois esta ainda não possui modalidade escrita de uso social (como visto anteriormente, o registro escrito de uma língua de sinais ainda não é utilizado em grande escala). Apesar de se acreditar que o processo de aprendizagem da escrita é independente do processo da fala, o surdo, na grande maioria das vezes, é

submetido a métodos de ensino da escrita através da fala, ou seja, o modelo tradicional utilizado em escolas de crianças ouvintes.

As dificuldades relacionadas à compreensão e produção de textos escritos aparecem de forma marcante no processo educacional de crianças surdas. Esse fato converte-se, rotineiramente, em objeto de discussões nas atividades de ensino. As dificuldades e “erros” na escrita do surdo são de ordem diferente daqueles dos ouvintes. Características próprias da escrita dos surdos são evidenciadas por autores brasileiros (FERNANDES, 1990, 2003; FERREIRA-BRITO, 1995; GÓES, 1996; ALVES, 2002). Estes estudos apontam algumas dificuldades específicas na produção escrita do surdo, como, por exemplo: limitações do léxico, impropriedades no uso de preposições e advérbios, uso inadequado de verbos, uso inadequado ou omissão dos recursos coesivos, dificuldades narrativas. Sugerem ainda que muitas dessas dificuldades relacionadas à escrita decorram da falta de um estímulo mais eficiente e/ou específico direcionado a esta habilidade. Ou seja, a falta de uma metodologia específica para o ensino da escrita pela escrita.

Fernandes (1990; 2003), em pesquisa sobre a produção escrita do surdo, observa que os participantes de seu estudo, ao produzir textos escritos, apresentam limitação lexical, falta de consciência do processo de formação de palavras, uso inadequado dos verbos em suas conjugações, tempos e modos, omissão de conectivos e verbos de ligação, uso indevido dos verbos ser e estar, colocação inadequada do advérbio na frase, falta de domínio e uso restrito de estruturas de coordenação e subordinação. A autora acrescenta que estas dificuldades podem fazer parte de um processo natural de aquisição de segunda língua, e que grande parte das características encontradas na escrita dos surdos também é vista na escrita de ouvintes durante o processo de aprendizagem de uma língua estrangeira. Atribui a essas dificuldades, o fato do aluno estar inserido em uma sala de aula convencional (sala de aula para ouvintes), onde, para se aprender a ler e escrever, tem-se como requisito o domínio da língua oral. Segundo a autora, é importante existir uma análise dos métodos de alfabetização de crianças surdas, pois algumas dificuldades no processo de aprendizagem de leitura dos surdos podem estar relacionadas ao método de ensino e não necessariamente à falta de oralidade.

A produção de textos escritos por surdos também foi investigada por Góes (1996), em salas de aula, com alunos de 14 a 26 anos, do ensino supletivo. Os textos escritos foram produzidos ao longo de vários meses, a partir de atividades em

que os alunos podiam recorrer à ajuda da professora. As produções apresentavam diversos desvios das regras de construção do português: uso inadequado e omissão de preposições, terminação verbal que não correspondia à pessoa e ao tempo do verbo, inconsistências entre passado e presente, flexão inadequada de gênero (adjetivos, artigos) e uso incorreto do pronome pessoal. A autora concluiu que, mesmo havendo passado por um longo período de escolarização, os surdos apresentam dificuldades com a escrita, e que estas dificuldades não são inerentes à surdez, mas podem estar relacionadas à mediação social da aprendizagem, mais especificamente, às práticas pedagógicas que fracassam na alfabetização de surdos. Considera também como provável causa dessas dificuldades o uso restrito da linguagem escrita por essa população em suas atividades sociais diárias.

Os argumentos dessas autoras sugerem uma realidade educacional carente de investimento metodológico. Diante dessa realidade, faz-se clara a necessidade de estudos que investiguem métodos de ensino da leitura e da escrita apropriados para crianças surdas, levando em consideração não apenas suas características lingüísticas, mas também aspectos socioculturais inerentes à comunidade de surdos.

Para que exista organização no processo de compreensão e produção textual, é preciso que o aprendiz tenha contato com os gêneros textuais mais comuns em sua cultura (jornais circulares da escola, cartas, receitas médicas, bulas de remédios etc.). No caso dos surdos, o contato com gêneros textuais escritos não ocorre em sua primeira língua (língua de sinais). Portanto, o aprendiz se depara com uma nova língua além de uma nova modalidade de língua e, por este motivo, é ainda mais importante que tenha contato com gêneros textuais escritos em seu processo de aprendizagem.

Um modelo de educação bilíngüe para o surdo vem sendo desenvolvido no Brasil desde a década de setenta. Esse modelo sugere que o surdo deve ser fluente na língua de sinais e na língua majoritária do país (português, no caso do Brasil). Para que se caracterize o bilingüismo, o aprendizado do português pode se dar na modalidade oral ou escrita. Na filosofia bilíngüe voltada à educação de surdos, o aprendizado da fala é considerado uma alternativa complementar, mas não condição única para o aprendizado do português. De acordo com a filosofia bilíngüe, ao aprender a língua escrita, o surdo teria maior possibilidade de participar ativamente

das atividades sociais dos ouvintes (ALMEIDA, 2000; CÁRNIO; COUTO; LICHTIG, 2000; GOLDFELD, 2002).

Skliar (1999), educador e defensor do bilingüismo como opção educacional para surdos, defende uma proposta sócio-interacionista de ensino da escrita como segunda língua para o surdo. Nessa visão, enfatiza-se o uso da língua dentro da sociedade, através de situações comunicativas interacionais. Para Skliar, o domínio da língua de sinais por parte de educadores e crianças surdas é de fundamental importância no ensino da segunda língua (escrita), pois deve servir como meio de comunicação entre alunos e educadores, e como referência de visão de mundo para os aprendizes.

Estudos sobre o uso social da escrita em comunidades de surdos podem contribuir com informações sobre gêneros textuais escritos que, geralmente, são consumidos e produzidos por esta população. Além disso, podem indicar funções e significados atribuídos à escrita em práticas e eventos sociais vividos por membros dessa comunidade. Essas informações poderão servir como base para o planejamento de práticas pedagógicas que enfatizem a escrita em uso, favorecendo, assim, o aprendizado desta ferramenta social e promovendo a formação de indivíduos socialmente integrados. É com base nesta crença que se pretende investigar o letramento social na comunidade de surdos.

O capítulo seguinte aborda princípios teóricos da etnografia, abordagem metodológica escolhida para a realização desta pesquisa. Traz, também, a descrição dos participantes, das instituições sociais (educacionais, religiosas e associações de apoio social ao surdo) freqüentadas por surdos. Comenta ainda, de forma detalhada, os procedimentos utilizados na coleta dos dados.

No documento Letramento em comunidade de surdos (páginas 50-55)