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É isso o que está aqui sendo visado ao se chamar a atenção para o que acontece nas dobras do legal-ilegal. Não se trata de tomar essa binaridade como chave explicativa, mas de prospectar seus efeitos, o modo como os jogos de poder se configuram nesses espaços, a distribuição diferenciada dos controles e, em torno deles, os agenciamentos práticos que se curvam ou que escapam aos dispositivos de poder implicados nessas categorias e codificações.121

A abordagem sobre a informalidade urbana foi tratada, historicamente, a partir da oposição entre o formal e o informal, o legal e o ilegal122. No entanto esta dicotomia

como chave explicativa não só criou um “campo cego”123 para os estudos sobre a cidade

como também serviu de base para programas e políticas que tiveram resultados questionáveis, muitos deles, por exemplo, relacionados aos programas de intervenção e remoção de favelas.

Sem desconsiderar o viés político e a importância que algumas dessas abordagens tiveram ao evocar a diferenciação entre a “cidade legal” e a “cidade real”, em muitos casos e ao alcance do senso comum, a diferenciação foi apropriada para invisibilizar e criminalizar a pobreza, e a informalidade foi incorporada em discursos oficiais como sinônimo de algo que está errado e deve ser combatido124. A redução,

121 Telles e Hirata (2010, p. 41). 122 Segundo Rosa (2008). 123 Lefebvre (2002).

124 Rosa (2008, p.38) diferencia internamente essas abordagens e constrói um quadro do enfoque da

dualidade formal/informal, legal/ilegal nos debates sobre a cidade. A autora mostra como a dualidade foi incorporada no discurso tanto para dar visibilidade aos processos e efeitos da segregação urbana no contexto do Movimento pela Reforma Urbana (balizados pelo conceito de Direito à Cidade) e associada à “criminalização e marginalização generalizada” e ao combate à “desordem”. Nestes casos “reapropriada pela mídia, pelo discurso competente de políticos e profissionais, por organizações não-governamentais, por agências multilaterais e de financiamento internacional.” Além de evidenciar o que chama de “deslocamento de sentidos” nas abordagens sobre a informalidade, Rosa (2008, p.35) levanta questionamentos pertinentes a respeito da teoria e prática sobre a pobreza e a vida na favela quando pautadas pela dicotomização: “não deixaria escapar as relações extremamente dinâmicas e móveis que caracterizam na prática tais fronteiras, (...) recaindo, muitas vezes, em interpretações – e intervenções – homogeneizantes sobre as favelas e periferias”.

homogeneização e o caráter pejorativo também estão associados à negação e desconhecimento dos meandros da pobreza urbana, justificando e legitimando o discurso da erradicação.

Entretanto, a legislação é responsável por definir esse limiar imaginário, enquadrando na normalidade aquilo que convém em um determinado momento. À medida que os interesses e as relações de poder se deslocam, a legislação é acionada para legitimar as mudanças125. Por isso, a legislação não pode ser considerada nesta

discussão apenas da perspectiva das “ideias fora do lugar”126, mas também deve ser

considerada como um dispositivo em disputa nas relações de poder que incidem sobre a produção do espaço urbano.

Tendo em vista que o positivismo jurídico em voga “reduz o legítimo ao legal”127,

o que está em jogo é a capacidade de conferir legitimidade a relações, práticas e discursos. Para compreender a disputa, o questionamento de Fernandes (2001, p.22) é pertinente: “quem participa da elaboração das leis? Quem tem o poder decisório?”. Ainda que, no Brasil, a aplicação da lei seja claramente seletiva.

Partindo, portanto, da premissa de que são fluidas as fronteiras entre o informal e o formal é que sigo para a reflexão acerca do planejamento urbano como processo que tem reconhecido como legítima apenas a cidade produzida e gerida pelo mercado formal. Considerando essa fluidez, torna-se possível compreender o discurso da flexibilização em alta atualmente para evocar a supressão da lei em diferentes ocasiões com a finalidade de beneficiar os interesses dos investidores nas obras de urbanização,

125 Aqui me referencio em Telles e Hirata (2010) sobre a noção Foucaultiana de “gestão diferencial dos

ilegalismos”. Nessa noção, as leis têm efeitos de poder e “operam não para coibir ou suprimir os ilegalismos, mas para diferenciá-los internamente, ‘riscar os limites de tolerância, dar terrenos para alguns, fazer pressão sobre outros, excluir uma parte, tornar útil outras, tirar proveito daqueles’” (Foucault, 2006, p.227, Apud Telles e Hirata, p.41). Sobre isso, um marco que foi determinante no contexto brasileiro corresponde à Lei de Terras – Lei Imperial nº 601 de 1850 – que, como mostra Rolnik (1997), foi criada para a sustentação do poder após a abolição da escravidão e a incorporação do trabalho livre no Brasil.

126 Esta expressão originalmente cunhada por Schwarz (1992) é utilizada por Maricato (2000) para explicar

em parte as razões das discrepâncias entre a cidade idealizada nos planos e nas leis e aquela que se efetiva na urbanização brasileira. As referências pautadas em experiências internacionais e a desconsideração quanto aos conflitos e particularidades da realidade brasileira teriam levado à constituição de normativas inalcançáveis e descompassadas em relação às dinâmicas da produção das cidades.

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produzindo a “cidade de exceção”128. E, assim, vão sendo redefinidos os critérios das

formas toleradas de informalidade.

Considerando que a produção e reprodução de capital se desenvolvem em um campo de possibilidades, a flexibilidade se torna fator fundamental para ampliá-lo129. O

Estado, responsável pela aplicação da lei, tendo em vista a racionalidade que emerge, deve permitir que as normas de autorregulação ocupem o lugar da lei130.

A adoção de um “estado de exceção”, nesse sentido, passa a ser compreendida também como uma epistemologia do próprio planejamento urbano131, já que por meio

deste é que o Estado vai determinar o que e, em que momento, pode ser reconhecido como legítimo, tolerado e, ainda, incorporado à legalidade. Não podemos deixar de lembrar ainda que nem tudo que se encontra em situação de ilegalidade na cidade é combatido.

As obras de urbanização em desconformidade com a lei, mesmo que de certa forma “autorizadas” pelo poder público sob a lógica da flexibilização, caracterizam um tipo de informalidade urbana, e é por isso que a informalidade segue sendo um tema- chave da pesquisa contemporânea sobre os países em desenvolvimento132.

Por isso é necessário enxergar a informalidade como um modo de urbanização133, uma organização lógica que norteia o processo da transformação

128 A “cidade de exceção” é a expressão cunhada por Vainer (2011) para caracterizar a postura do poder

público perante as obras de urbanização para os mega-eventos no Rio de Janeiro. Para criar esse conceito, o autor se referencia em Agambem (2004) e Poulantzas (1986) articulando as ideias de “estado de exceção” e, como uma característica dele, a “autonomia relativa do estado”. Nesse sentido, o autor defende a ideia de que “o estado de exceção redefine as formas através das quais os interesses dominantes se fazem presentes no estado” (Vainer, 2011, p. 9). Complementa dizendo que “a cidade de exceção se afirma, pois, como uma nova forma de regime urbano. (...) A lei torna-se passível de desrespeito legal e parcelas crescentes de funções públicas do estado são transferidas a agências “livres de burocracia e controle político” (Vainer, 2011, p. 10).

129 Vainer (2000). 130 Laval e Dardot (2013).

131 Também referenciada em Agambem (1998), Roy (2007) aborda a estratégia do “estado de exceção”

como uma epistemologia do planejamento urbano. Para a autora, “o planejamento e o aparato legal do estado tem o poder de determinar quando decretar sua suspensão, para determinar o que é informal e o que não é, e determinar quais as formas de informalidade que irão prosperar e quais irão desaparecer” (Roy, 2007, p. 149).

132 Roy (2007).

133 Roy (2007). A autora se propõe a discutir como as diferentes modalidades de planejamento são

urbana. Importante destacar que a informalidade nos processos de urbanização de que se trata não se restringe à população de baixa renda. São também importantes estratégias para a classe média e até para a elite dos países periféricos134.

Neste contexto, dois tipos de assentamentos informais se destacam: um, caracterizado pela ocupação de terra e autoconstrução, e, outro, loteamento de luxo em desacordo com a legislação de parcelamento ou uso e ocupação do solo, podem coexistir mostrando que não se trata apenas da polaridade entre formal e informal, mas que são diferentes situações dentro das formas de informalidade135. A grande diferença

entre as duas está na “autonomia relativa do estado”136 para decidir qual delas

permanecerá na informalidade e para qual se aplicará o “estado de exceção”. Como dito anteriormente, a indistinção entre poder público e setor privado sugere como tem sido tomada essa decisão.

Sendo assim, o Estado em sua multiplicidade de atores tem o poder de decidir qual o tipo de solução que predomina em cada momento, claramente em consonância com a proposta desenvolvimentista de impulsão da economia via produção imobiliária.

Apesar do alerta de Francisco de Oliveira137 para os riscos das abordagens

dualistas para a construção da teoria e das práticas, a oposição formal/informal foi base teórica que embasou discursos e soluções em diferentes momentos da história para diferentes políticas públicas. Entre elas, destaco o desfavelamento.

entende que a legislação define critérios para deliberar o que é formal e, como consequência, o que não se encaixa nos parâmetros é automaticamente entendido como informal. O planejamento não considera cidade a produção informal. Porém, ela existe e representa uma grande parte das cidades brasileiras.

134 Roy e AlSayyad (2004). 135 Roy (2007)

136 Sobre a relativa autonomia do Estado, Lefebvre afirma “(...) que a burguesia, classe dominante, dispõe

de um duplo poder sobre o espaço; primeiro, pela propriedade privada do solo que se generaliza por todo o espaço, com exceção dos direitos das coletividades e do Estado; segundo pela globalidade, a saber, o conhecimento, a estratégia, a ação do próprio Estado” (Lefebvre, 2008, p.57).

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