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Outro aspecto do modo de operar da Cohab-LD é a visão empresarial96 sobre o

cumprimento de suas funções. Tal visão empresarial me soava contraditória pensando no papel da empresa pública e na moradia como um direito fundamental e considerando o atendimento de uma demanda que não é solvável. Entretanto, resgatando o Estatuto Social, a legislação e o histórico da criação da empresa, como já comentado, percebi que na sua origem traz uma função empresarial e mercadológica e que absorveu – aí sim de forma contraditória – outras funções no âmbito da assistência social. Isso confere sentido às palavras de Heleno Rabello97 sobre a situação das ocupações irregulares:

O problema é social e esta não é a função da Cohab. A nossa função é construir casas. Só que, ao longo dos anos, foram transferindo esta responsabilidade para nós por estar ligada à questão da habitação. Com isso, desvirtuaram o nosso papel. A Cohab hoje, endividada, não consegue nem construir casas, nem resolver o problema das favelas.

Nesse sentido, a crise quase existencial pela qual passa a Companhia, relatada no dia a dia dos funcionários e diretores, por outros setores da administração pública e pela população, é decorrente dessa incapacidade de solucionar os problemas relativos à habitação a que se propõe (de fato, de maneira descabida e até ingênua), com excesso de burocracia e lentidão, junto a processos de reintegração de posse conflituosos e violentos, e sem conseguir recuperar os investimentos na venda de unidades habitacionais, sendo assim caminha no sentido contrário ao da eficiência, produtividade e agilidade, tão valorizadas pelos princípios empresariais.

96 Não podemos colocar nos mesmos termos que a tese de Pulhez (2014) sobre a gestão empresarial

terceirizada empreendida pela CDHU. Aqui trago a visão empresarial como lógica (Laval e Dardot, 2013) que permeia a visão e as práticas da Companhia na administração de capital e de terras, na abordagem e negociações com ocupações irregulares e no diálogo com a população atendida ou, nos termos da Companhia, com seus clientes.

97 Heleno Rabello é funcionário de carreira do setor social da Cohab-LD e hoje exerce o cargo de diretor

técnico da Companhia. Esta fala é parte de entrevista concedida ao jornal Folha de Londrina em 2001. Disponível em: https://www.folhadelondrina.com.br/reportagem/favelas-concentram-carentes-desde- 1966-341194.html. Acesso em: 29/10/2019.

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Em termos de receita, no momento de criação, foi destinado à Cohab-LD um capital social de Cr$ 100.000.000 (cem milhões de cruzeiros) conforme o artigo 2º da Lei Municipal nº 1.008 de 1965. De acordo com o Estatuto Social (Art. 6º), o Capital Social é hoje de R$.172.607.685,7198 (cento e setenta e dois milhões, seiscentos e sete mil,

seiscentos e oitenta e cinco reais e setenta e um centavos).

Assim como no restante do Brasil, quando a Cohab-LD foi criada, foram adquiridas terras para viabilizar a produção de moradias. Em todo o país foi dado início à

formação de 'bancos de terras públicas', principalmente grandes glebas, muitas vezes ainda rurais, nas periferias das grandes cidades, para a produção de megaconjuntos habitacionais (...) construídos com os chamados 'projetos-padrão' no esquema terraplanagem+unidade mínima, enquadrando o empreendimento no padrão de maior retorno financeiro99.

O primeiro diretor, responsável pela aquisição desses terrenos era um agropecuarista local100. As propriedades adquiridas eram glebas rurais, algumas delas

negociadas devido à queda da produção do café. O principal argumento era de que essas propriedades eram mais baratas e, em Londrina, esse período corresponde de fato à decadência da produção na região devido às geadas que impactaram severamente as propriedades.

É relevante o fato de que a Cohab-LD adquire as glebas pois investe parte do seu capital social no mercado imobiliário. A partir desse momento, a relação entre a Cohab- LD e a propriedade imobiliária deixa de ser apenas de incorporadora e passa a ser também de proprietária de terras101.

98 O valor do Capital Social da Cohab-LD apresentado no Estatuto Social disponível no site corresponde ao

aumento aprovado em 2016.

99 Negrelos (2014, p.60). 100 Cordeiro (2015).

101 Sobre o papel do proprietário na produção habitacional, Maricato (2009, p.41) coloca que “a moradia

é uma mercadoria especial. Além do capital de construção, o processo produtivo inclui um financiamento ao consumo (habitação é um dos bens mais caros de consumo privado e como uma mercadoria especial exige um financiamento específico), um capital de incorporação e um agente especial – o proprietário de

A compra das propriedades não foi, até hoje, analisada com profundidade, mas determinados fatos mostram que algumas negociações foram, no mínimo, duvidosas. A relação com o mercado imobiliário, principalmente sobre os vazios urbanos deixados para fins de valorização imobiliária já foi apontada por alguns autores102, mas vou utilizar

aqui duas situações distintas para ilustrar como algumas dessas negociações caracterizam uma “zona de indistinção” em que fica difícil distinguir a legalidade da ilegalidade, o público e o privado103. O que se supõe aqui é que a companhia foi utilizada

como meio na articulação entre poder público municipal e proprietários de terras104.

A primeira delas corresponde à compra das terras da Fazenda Refúgio em 1991, durante a gestão de Antônio Belinati. A propriedade comprada possui restrições ambientais105 e físicas sendo inadequada para ocupação, muito menos para a

construção de seis mil unidades habitacionais conforme anunciado na época da compra. Além da inadequação para moradia, o que levou à ação judicial foi a suspeita de que a compra foi superfaturada. Na época, a Cohab-LD pagou o equivalente a mais de um milhão de dólares (Cr$ 943,8 milhões) à Dinardi Agropecuária106 e devido aos laudos que

comprovaram que a propriedade não valia nem metade disso resultou em ações na esfera civil e inquérito policial.

Outra situação é a indenização paga à proprietária do terreno que se encontra em fase de regularização fundiária. Este terreno está ocupado desde 1988, quando a Cohab-LD removeu famílias para obras de urbanização em outro bairro e as assentou na área. Entretanto, possivelmente por problemas relacionados a certidões de débito o imóvel, a Cohab-LD não conseguiu registrar o terreno e formalizar a desapropriação em

terra – de quem depende uma condição básica para produção. Cada novo empreendimento exige que uma nova parcela de terreno seja assegurada.”

102 IPPUL (1996); Bartlo (2015); Cordeiro (2015). 103 Agambem (2004).

104 Este não seria um caso isolado de Londrina, sem dúvida. Bolaffi (1975, p. 54) discute algumas dessas

“burlas” realizadas com os recursos do banco.

105 Até 2008, a Cohab-LD tinha sido multada seis vezes pelo Instituto Ambiental do Paraná – IAP pela

retirada de vegetação e terra, pela supressão de área de preservação permanente e por permitir a realização de rallys ilegais. Informações obtidas em reportagem da Folha de Londrina, disponível em: https://www.folhadelondrina.com.br/cidades/fazenda-refugio-terra-de-ninguem-645048.html. Acesso em: 29/10/2019.

106 O dono da Dinardi Agropecuária na época, Maurício Dinardi, é também proprietário da Dinardi

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1988, que só foi possível em 2014 sob a vigência da Lei Federal nº 11.977/2009107. Essa

área era de propriedade de um diretor da Cohab-LD, e mesmo passados mais de 20 anos da ocupação na área, a desapropriação foi paga à viúva do antigo proprietário.

Seguindo a lógica imobiliária, a Cohab-LD ainda mantém um banco de terrenos desocupados cedidos ou alugados, se beneficiando da especulação imobiliária. O argumento é o de onde está investido o capital da empresa e, por isso, a regularização fundiária das ocupações e assentamentos irregulares em terrenos da Cohab-LD é vista como descapitalização pelos setores administrativos da Companhia. Deve ser por esse motivo que há casos em que a Cohab-LD optou pelo pedido de reintegração de posse contra ocupantes de seus terrenos no lugar de promover a regularização fundiária.

Outra prática que se repete marcando esse modus operandi abordado aqui é quanto à mediação de conflitos fundiários entre ocupantes e proprietários. Tendo em vista que as ocupações irregulares se tornaram matéria da Cohab-LD, esta é acionada em situações de conflito seja para tentativas de negociação ou para auxiliar a polícia na remoção das famílias nos casos de reintegração de posse. Quando se trata de uma mediação anterior a um pedido de reintegração de posse, por exemplo buscando acordo com o proprietário, pelos relatos, documentos e reportagens, é evidente o favorecimento dos proprietários. A questão mais latente é a ausência dos pressupostos dos instrumentos da Usucapião. A principal atitude recorrentemente adotada pela Cohab-LD é a compra ou desapropriação pelo município das áreas ocupadas, mesmo quando a situação se enquadra nos termos da Usucapião. Observa-se, assim, que o pensamento proprietário vigora mesmo quando isso gera um ônus desnecessário à Companhia.

O primeiro fato sobre isso teve início logo nos primeiros anos dos trabalhos da Cohab-LD, durante a década de 70. Na segunda gestão, mas logo que foram abertas as instalações, foi dada a reintegração de posse para a Caixa Econômica Federal de uma

107 Só em 2014, com as facilidades da Lei Federal nº 11.977/2009 é que foi possível registrar o formal de

partilha da área e transferir para a Cohab-LD. Toda a documentação estava descrita nos autos como emissão de posse por ser resultado de desapropriação, mas a emissão foi cancelada devido às mudanças promovidas pela Lei Federal nº 11.977/2009 que permite a transferência direta para o nome da Cohab- LD.

área ocupada irregularmente chamada de Favela da Caixa Econômica. A ação policial estava montada e 400 famílias seriam despejadas da área e a prefeitura não tinha uma solução para apresentar. Então, o Presidente da Cohab-LD – Nelson Gavetti – negociou pessoalmente com a Caixa Econômica o terreno por um “valor simbólico” mantendo a população no local108.

A partir desse fato, sempre nesses termos, a Cohab-LD passa a mediar e negociar com proprietários e ocupantes. No entanto, nem sempre – como visto no caso da Fazenda Refúgio – trata-se apenas de um valor “simbólico”. Outro exemplo, também da década de 90, foi a compra da área do Jd. Maracanã, que se encontra em fase de regularização fundiária. Tratava-se de uma ocupação de mais de 400 famílias. A área havia sido avaliada em R$ 136 mil, mas foi pago R$ 200 mil pelo terreno. A loteadora que era proprietária da área havia pedido R$ 280 mil no início das negociações109.

Uma reportagem de 2006 – gestão de Nedson Micheleti (PT) – sobre uma ocupação em um terreno particular na zona norte de Londrina (no CH Vivi Xavier) mostra como a ação da Cohab-LD nessa mediação/negociação é percebida pela população: “De acordo com o presidente da Associação de Moradores da invasão110, Ailton Natalino da

Silva Souza, a esperança dos moradores é de que a companhia compre o terreno e repasse a área por meio de um financiamento111.” No entanto, com uma postura menos

política, a Cohab-LD se negou a fazer a mediação neste caso:

(...) em uma reunião realizada na Cohab, representantes da associação ouviram do próprio presidente da companhia que a possibilidade de desapropriação está descartada. ‘Eles pediam uma posição da Cohab, e nossa posição é essa. Essas famílias terão de fazer suas inscrições na fila de financiamento e aguardar. Não podemos deixar 14 mil famílias

108 O relato desse evento encontra-se em Gavetti (1998, p.47 e 48).

109 Folha de Londrina (1999). Disponível em: https://www.folhadelondrina.com.br/cidades/cohab-

compra-terreno-invadido-235181.html. Acesso em: 29/10/2019. Nesta reportagem o presidente da associação de moradores do Jd. Maracanã diz ter ficado satisfeito com a compra pela Cohab-LD. Portanto, foi uma solução para o conflito que pareceu agradar a todas as partes o que, em termos políticos, tem um valor bastante alto.

110 O termo “invasão” foi usado na fala original. Cabe o destaque de que o uso do termo criminaliza o ato,

tendo em vista que invadir é um crime, diferentemente do uso do termo “ocupar”.

111 Folha de Londrina (2006). Disponível em: https://www.folhadelondrina.com.br/geral/familias-

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de lado e privilegiar uma ocupação’. (...) A liderança da ocupação deve nos próximos dias se reunir com o proprietário do terreno e discutir algumas alternativas ventiladas durante o encontro de ontem à tarde. Afonseca não quis adiantar o conteúdo da conversa. ‘A Cohab não pode fazer nada. O problema tem de ser revolvido entre os invasores e o dono do terreno’, afirmou.

Essa afirmação do presidente da Cohab-LD na época “não podemos deixar 14 mil famílias de lado e privilegiar uma ocupação” tem um sentido disciplinador112 muito

relevante que observei em negociações recentes entre a Cohab-LD e membros de ocupação. Durante as entrevistas na Cohab-LD vários profissionais de diferentes áreas relataram acreditar que muitas ocupações não ocorrem devido a uma situação de emergência das famílias, mas que são apenas uma forma de pressionar a Cohab-LD para “passar aquelas famílias na frente da fila do atendimento”. Primeiro que a ideia de “fila” é ilusória, pois não existe um atendimento em ordem, são realizados sorteios entre as famílias cadastradas, portanto não existe garantia no atendimento. Porém, ao dar declarações que a Companhia se posiciona contra o privilégio dos ocupantes, a Cohab- LD coloca as famílias que estão aguardando contra as ocupações, reduzindo a força política, isolando e criminalizando o ato.

Novas perspectivas: Ministério das Cidades e a Política