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4 A FORMAÇÃO CATÓLICA PARA AS RAPARIGAS, ATRAVÉS DA

4.1 A INSTRUÇÃO FEMININA E A SALVAGUARDA DO LAR

‘É um triste sintoma quando o marido boceja na companhia da sua mulher, dizia Mons. Dupanloup’. Assim sucede quando a mulher não tem suficiente cultura de espírito. O homem culto, absorvido pelo seu trabalho intelectual, aspira a encontrar na mulher como que um eco de suas ideias. Triste decepção o espera, se não encontra mais do que uma linda boneca, muito bem vestida, mas com uma mentalidade oca e cujos lábios de carmim apenas sabem pronunciar palavras sobre moda e mexericos de sociedade! Quando ele volta do seu trabalho cansado de espírito, por vezes preocupado, desejaria expandir num coração amigo a dúvida e a inquietação que o atormentam, esperar talvez um conselho ditado pela dedicação e esse extraordinário senso que a mulher portuguesa possui: a intuição. Mas apenas encontra o vácuo de uma cabeça sem ideias e que acha aborrecido falar em coisas sérias. (STELLA, jan. 1950)

A instrução feminina, quando defendida no periodismo católico, tinha como primazia a formação para o adequado diálogo doméstico. A sempre lembrada ladainha feminina era alvo de muitas querelas. O controle da fala, dos gestos e da adequada toillete eram conselhos recorrentes. Todavia, o excesso de cosméticos – já tão propagandeados pela imprensa, com novos produtos, alavancados por uma crescente indústria da moda – era peremptoriamente

condenado. Por isso, o cuidado sem exagero era sempre apregoado, não esquecendo do silêncio sempre louvado.

Conforme observa Fátima Mariano (2011, p. 61), “o silêncio é o mais belo adorno da

mulher”.124

Os movimentos do feminino tinham que ser sincronizados e equilibrados. Os manuais de civilidade foram fontes ricas para aferir esse tipo de controle sobre as mulheres. Eles poderiam tratar desde a arrumação da casa até como conquistar o marido. No foro íntimo, era dada especial atenção à higiene corporal e à forma de se vestir e de tratar o corpo. Poderiam circular entre as classes, pensando na mulher abastada, mas não esquecendo-se da mulher pobre, razão pela qual alguns manuais enfatizavam a higiene e capricho da mulher mesmo com poucos recursos.

No mundo ideal dos manuais de civilidade havia poucos espaços para as diversas diferenças entre as mulheres. Em geral, nessas publicações, existia “mulher”, sem levar em conta todas as especificidades que circundavam o universo feminino, mas outro elemento importante a perceber é que os manuais também serviram para embasar e consolidar discursos de natural inferioridade. Como nota Fátima Mariano (2011, p. 62), ao analisar a obra de João da Silva Correa que escreve “A linguagem da Mulher em Relação ao Homem”, essa publicação se deterá nas diferenças linguísticas e intelectuais das mulheres em relação aos homens, conforme excerto:

O léxico da mulher é rico em vocábulos do domínio da vida do lar [...] enquanto é pobre em termos de vida extradoméstica. A mulher recorre também mais aos auxiliares de linguagem, como o suspiro, o gemido ou o pranto, e aos gestos religiosos e supersticiosos. O jogo fisionômico é também ‘mais activo no sexo feminino: os olhos e os lábios têm na mulher mobilidade e expressão que não tem geralmente no homem. E o beijo e o abraço a cada passo substituem, ou pelo menos, acompanham nela, as fórmulas usuais de cumprimento ou saudação, e são repetidos no mesmo dia, pelas mesmas pessoas, a cada encontro, a cada despedida’.

Como esse discurso da diferença, através dos marcadores de codificação social, sendo um deles a falada “debilidade feminina”, atravessou o tempo e a política do Estado Novo, encontrando ressonância em muitas franjas que criam nessa assertiva e um dos maiores expoentes dessa ideia era Oliveira Salazar. Ele formulara uma importante atribuição “às donas do lar”: a gestão da economia doméstica. Na matéria intitulada “Economia Familiar”, do Jornal Novidades, a questão coloca-se dessa maneira:

124 MARIANO, Fátima. “O silêncio é o mais belo adorno de uma mulher”: mas estiveram as mulheres sempre

em silêncio? – A procura da voz das mulheres nos arquivos portugueses. Conferência no Instituto de História Contemporânea, Universidade Nova de Lisboa, 2015.

O preconceito que desconhece a valia do trabalho de gestão da economia familiar funda-se no erro que considera essa economia como de simples consumo, quando ela é conjuntamente de produção e esta é realizada e dirigida pela mulher. Eis como o então professor de economia Dr. Oliveira Salazar justificava na magistral conferência a que ontem aludimos, este profundo conceito que, bem entendido, levaria só por si à reforma de toda essa instrução a educação pública e particular. A maior parte do consumo do país – lê-se no texto da conferência – faz-se no incontestavelmente no seio da família; ora a economia familiar tem sido considerada como simples economia de consumo, quando de facto ela representa uma formidável economia de produção. O conjunto destas economias familiares representa num país mais que qualquer indústria, por mais poderosa que seja. (NOVIDADES, 30 nov. 1956)

Os holofotes, nesse momento, estarão iluminando a pequena fábrica familiar, buscando evidenciar o grande papel que a mulher desempenhara no lar e o quão difícil seria que essa mesma mulher pudesse estar fora do lar, sob pena que toda essa gestão e articulação dos pequenos afazeres fossem prejudicadas pela falta do feminino, no seio da família. Com isso, o Dr. Oliveira Salazar prossegue:

Não há nenhuma, nem mesmo o Estado que consuma tanto combustível e tanta energia de iluminação e empregue tanto pessoal e disponha duma tão grande força de trabalho como as donas de casa juntas. A alimentação é quase integralmente preparada na família; na maior parte das famílias o é as roupas brancas de uso, a de cama, noutras mesmo a roupa de uso externo; fora da cidade a roupa é lavada em casa, em toda parte consertada, passada, corrida a ferro; juntemos os bordados, as rendas, a lavagem e enceramento das casas e mil outras pequenas coisas de indústria caseira. Quem governa essa monstruosa cozinha nacional familiar que fabrica a alimentação a seis milhões de criaturas? Quem dirige o trabalho nessa empresa monstro, que toma sobre si tantos encargos e uma produção tão variada e de alto valor? As pobres mães de família. (NOVIDADES, 30 nov. 1956)

Por isso, “as pobres mães de família” são conclamadas a entenderem melhor dessa ciência doméstica. Também por isso, um dos pilares da instrução feminina católica no Estado Novo estava na correta gestão da economia doméstica. Esse tema foi um dos pressupostos do crescente discurso de correta formação da mulher católica, também sendo um dos aspectos abordados por António Oliveira Salazar em seus discursos. Segundo ele:

O fato de não ter considerado a família como uma economia de produção, explica muitos defeitos nas casas onde essa economia se desenvolve, e o atraso de muitos serviços a que podia dar-se uma organização diferente, mais favorável ao trabalho doméstico como que o que se dará com os despejos, água e luz. É deficientemente aproveitado e dirigido o trabalho doméstico de criados e criadas, cuja função em muitas casas se ajusta melhor a despesa suntuária que ao conceito de trabalho humano empregado na produção. Junta-se ainda a isto o mau, irregular, deficiente aproveitamento das coisas – da luz, do calor, das substâncias alimentícias, dos estojos, dos muitos objetos de uso doméstico. (NOVIDADES, 30 mar. 1956)

Não se tratava, todavia, de uma campanha contrária aos serviçais domésticos, mas uma campanha apelativa a favor da volta da mulher ao lar. Como prossegue:

Os pobres não são mais econômicos que os ricos, nem as casas dos pobres são mais bem administradas que as dos que tem bens de fortuna. Ligado o problema não a uma questão de riqueza ou de virtude mas a qualidade da direção desta indústria típica que é a indústria doméstica, em que a aprendizagem, e a preparação para o casamento desempenham um papel importante, não é de estranhar que assim suceda. Pensa-se muitas vezes que o nível da vida operária depende apenas da taxa de salário; mas sabe-se que um operário norte-americano nem sempre consegue viver como um operário francês que recebia antes da guerra – e hoje muito menos – apenas metade do salário daquele. É isso, descontada a diferença do custo de vida, deve-se às qualidades de economia da mulher francesa. As minhas observações, ainda que relativas a casos pouco numerosos e em locais restritos, ensinam-me que famílias de trabalhadores, iguais quanto a meios e ao número de filhos, vivem muito diferentemente, segundo as qualidades da mãe de família. (NOVIDADES, 30 mar. 1956)

As qualidades da mãe de família são evidenciadas pela maneira como conduz a casa e gere os recursos ganhos pelo marido na vida pública. Num discurso pós-guerra e enfatizando a diferença econômica entre os diversos países, Oliveira Salazar adverte que uma casa bem administrada pode ser rica ou pobre. Ele ainda enfatiza as bem-aventuranças de uma casa, através da boa condução da mulher, portanto o volume dos recursos aí, conforme Salazar, pouca diferença faz; o que fará diferença será a correta gestão doméstica, sem desperdícios. Oliveira Salazar também circunda a figura da mulher avalizada pelo atributo “mãe” que ganha contornos de “entidade”, ratificando a questão da maternidade. A mulher não é só mulher, ela é também a mãe de família. Para consolidar a sua argumentação, Oliveira Salazar prossegue:

Por outro lado a experiência demonstra que, se a mulher não é econômica, debalde o homem tentará economizar. Quem se não lembra da palavra da Escritura, nos Provérbios: ‘A mulher de juízo edifica a casa; a insensata desfaz-se-lhe nas mãos uma casa já feita’. Pomos ponto na citação, aliás resumida, muito embora seja digna de reler-se toda esta parte da magnífica conferência. O que citamos basta porém a elucidar a nossa tese: a mulher dona de casa pode produzir mais dentro da sua função, bem exercida, do que abandonando-a para ir exercer qualquer outro trabalho ou emprego a pretexto de valer a economia familiar. (NOVIDADES, 30 mar. 1956)

A economia familiar ganha status de educação; uma educação voltada para a mulher, na salvaguarda de suas funções naturais. Na gestão da vida doméstica, a mulher deve ser ensinada a pensar na casa como uma fábrica, buscando soluções que economizem o salário do marido.

Além da sábia gestão da economia do lar, um tema que fora correlacionado era o da mulher no mercado de trabalho. As matérias não poupavam advertências às mulheres que

estavam no mercado de trabalho, alertando do verdadeiro risco que isso representava para a sociedade. A justificativa do complemento de salários era refutada frente a uma campanha estabelecida pelo salário familiar, que o homem tivesse um salário, no qual pudesse prover o sustento da família. Foi com essa perspectiva que a matéria “O desemprego e os novos lares” fora publicada:

Já tivemos ocasião de aludir aos esforços, tentados noutros países para auxiliar, sob o aspecto econômico, o regresso da mulher ao lar. A fuga do lar tem causas econômicas e morais. Importa atacar umas e outras. A mulher abandona o lar para ganhar a cota parte do sustento que falta a si e aos seus. Para suprimir esta causa advoga-se o salário familiar, isto é, o salário do marido calculado por uma forma a bastar ao sustento de uma família normal da sua classe; salário que segundo outros deve ser variável por forma a acomodar-se aos encargos familiares maiores ou menores. (NOVIDADES, 11 jan. 1963)

As razões expostas de prejuízos morais ao lar fazem parte da educação recebida pela mulher e também estão conectadas com outros elementos, entre eles, o desemprego masculino. Conforme a matéria, isso tem efeitos profundos na economia da sociedade portuguesa:

Mas o que, sob o aspecto econômico veio dar maior relevo à necessidade de regresso ao lar foi a crise do desemprego. A concorrência da mulher no trabalho e no emprego fez engrossar o número de homens desempregados e, por esta forma, o abandono do lar pela mulher agravou as duas crises: a da família e do trabalho. Para trabalhar fora do lar, a mulher casada abandona os filhos, ou evita-os criminosamente: por falta de trabalho ou de salário suficiente o homem foge de constituir um lar a cuja subsistência não pode prover. Compreende-se facilmente como estas deficiências econômicas arrastam as piores misérias morais. (NOVIDADES, 11 jan. 1963)

Michelle Perrot, ao historicizar o trabalho feminino, coloca em evidência as questões que entram em consonância com o argumento do desemprego masculino, com a moral em risco, pelo fato da mulher estar fora de seu habitat natural: o lar. Ela alerta para a invisibilidade que o trabalho doméstico tivera, pois as tarefas foram sempre atribuídas às mulheres, criando um cotidiano estafante e sem qualquer remuneração, inclusive quando o trabalho das mulheres é fora de casa, mas é dentro de outro espaço doméstico, esse trabalho é mal remunerado e sujeito à apreciação dos patrões sobre a remuneração, estando bastante vulnerável a qualquer oscilação. Outro fato interessante para o trabalho doméstico de mulheres é que ele está sujeito a outros tipos de pagamentos, houve época em que se trabalhava pelo direito à alimentação e casa. As domésticas não são, aliás, assalariadas como as outras. Conforme observa Perrot (2007, p. 117):

Com casa e comida, elas recebem retribuições que lhes são passadas irregularmente, e sujeitas a descontos caso quebrem a louça ou estraguem a roupa. Sua jornada de trabalho é quase ilimitada. O domingo não é garantido como folga, mesmo quando a prática se torna mais frequente. Além de seu tempo e de sua força de trabalho, sua pessoa e seu corpo são requisitados, numa relação pessoal que ultrapassa o compromisso salarial.

Situação oposta vive a mulher da elite, mas não menos comprometida. É evidente que o desgaste e o cansaço estarão diametralmente opostos. Importa notar que a mulher da elite conta com as criadas de servir para seu auxílio, mas isso não quer dizer que elas não sejam responsabilizadas se o caldo não ficou no ponto, se a gola ficou mal engomada, se há pó pelos móveis. Cabe a mulher:

Elaboração dos cardápios das refeições, cuidados e educação das crianças, organização das soirées familiares, recepções para a sociedade. Uma burguesa, mesmo sendo da classe média, reserva um dia para receber visitas, de maneira faustosa ou modesta, segundo suas disponibilidades. Para a mãe de família que tem filhas na idade de casar, é uma preocupação permanente. (PERROT, 2007, p. 116)

Segundo Almeida (1993, p. 106), “num contexto em que a casa vira as costas à rua”, as mulheres estarão sendo educadas para gestoras dos seus lares, no caso das mulheres da elite. As mulheres pobres trabalhavam nas fábricas ou contavam com a outra face “da virtude feminina”, que cedia-lhe o amplo laboratório doméstico para outra mulher tomar conta, era quase uma filantropa. Esses discursos que opõem o feminino com o feminino é gestado e cultuado nas páginas das revistas e jornais, portanto a educação feminina também é dicotômica entre a trabalhadora e desviante, pois fora do lar está, e a mulher abastada, com criadas de servir, cuidando para que não seja vista como perdulária ou ociosa, o discurso preservará a mulher que percebe na representação estatuária da família, a sua força e seu caráter.