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Não tenhas medo! Alguma vez hás-de começar...

Vamos, põe o avental, arregaça as mangas e boa sorte! (MENINA E MOÇA, 1947, apud BRAGA; BRAGA, 2012, p. 207)

O fragmento acima retirado da revista “Menina e Moça” é uma boa síntese das publicações que eram dirigidas às mulheres (BARRENO, 1976) no Estado Novo português. “Põe o avental”, a afirmação é um convite às mulheres a participarem da vida que lhes era natural, portanto “o não tenha medo” é uma convocação a formarem-se, a aprenderem e a agradarem na dimensão privada, estando aptas a viver em sociedade e desse modo estarem a par da ideologia do regime. (BRAGA; BRAGA, 2015)

Em Portugal, as mulheres não foram deixadas de lado pelo projeto governista que

previa a cada um o seu lugar116

, antes pelo contrário. Existiam órgãos e mulheres de bem, como o caso de Maria Guardiola – entusiasta do regime na manutenção da ordem e na educação das meninas ‒, que foram aliados ao sistema para que se chegasse o mais perto possível do ideal: Deus, Pátria e Família.

Com cunho pedagógico, as publicações dirigidas às mulheres no Estado Novo Português dão conta do projeto idealizado para o feminino. Um dos exemplos mais emblemáticos é a Revista Menina Moça, do órgão estatal Mocidade Portuguesa Feminina, que começou a ser produzida em 1947. “Chega no mês de maio para que se receba pela mão da Virgem Maria, a menina e moça ideal que nós desejamos ser” (MENINA E MOÇA, maio 1947)

Nessa publicação dirigida às mulheres percebe-se como os discursos se emaranham nos jogos de poder. O discurso destinado às mulheres ganha a dimensão que o regime precisava. Esse discurso estatal atrelado ao religioso e aliado à norma estará envolto no guia

116 Irene Pimentel, em sua dissertação de Mestrado sobre as organizações femininas no Estado Novo, defende a

ideia que as políticas instaladas pelo governo Salazar ordenavam e distribuíam os sujeitos, colocando cada um no seu lugar.

da moça perfeita e ganhará ares de lei. Governar a casa, fazer coisas sensatas e saber fazer compras eram as qualidades imprescindíveis de uma mulher, além de alertar, em épocas de eleição, sobre a consciência pelo voto certo.

Mas havia um tema emblemático, o cuidado da alimentação familiar. E sobre isso, as matérias versavam na perspectiva da mulher ciente do preparo do pão para alimentar sua família, simbolizando a mulher-mãe, detentora das mais preciosas dádivas. Isabel Drumond Braga e Paulo Drumond Braga, investigadores das publicações da Revista Menina e Moça, percorreram os caminhos dos discursos da “Menina e Moça” na busca de elementos que consubstanciassem seus estudos no que se refere à mulher ligada à alimentação. Com isso, a culinária ganha uma atmosfera rica em símbolos, a mulher que cuida e alimenta bem sua família já pode se considerar a verdadeira cristã, pois o alimento é sagrado. Em 1953, o excerto abaixo foi publicado:

A Santa Igreja recomenda-nos durante este santo tempo a oração, a esmola e a mortificação. Se trabalhares na preparação do folar – no arranjo ou na confecção de roupas, brinquedos e outros mimos – com espírito de fé, o teu trabalho será oração. Poderás até oferecer a Deus esse trabalho (no momento de fazê-lo) por aqueles a quem se destina. A oração, como sabes, é o melhor meio de atrair a graça sobre as almas: de missionar. O folar dar-te-á também ocasião de praticares a esmola e a mortificação. Será um sacrifício agradável a Deus renunciares a qualquer coisa (por exemplo, uma ida ao cinema ou a compra de um objecto supérfluo) para com o produto da renúncia comprares material para o folar. (MENINA E MOÇA, 1953, apud BRAGA; BRAGA, 2012, p. 201-226).

A constrição, sempre pregada e alardeada como uma das principais qualidades do sujeito, tem no corpo da mulher sua principal simbologia. A mulher que soubesse medir bem seus ingredientes, sem o desperdício do mundo liberal, estava pondo em prática o que os media e as revistas a alertavam. O esbanjar, sintoma maior da sociedade preocupada com as excentricidades, opõe-se à sociedade que poupa, economiza e guarda, fazendo, sempre que pode, a caridade. O ato de incentivar a caridade mostra que a Igreja chegava, muitas vezes, onde o Estado não era ativo, manifestando o caráter providencial que a Igreja tinha junto a esse modelo social.

As publicações seculares (ALMEIDA, 1998, p. 91) ou religiosas também mantinham alguns pontos de intersecção, entre eles, o discurso religioso que permeava ambas publicações (AZEVEDO, 2011, p. 115-131). Numa publicação laica não era raro ler recados de Deus direcionados às mulheres, inclusive algumas publicações relacionadas à alimentação da família vinham acompanhadas de uma certa consciência das diferenças de classe que existiam naquele período, diferenças bem marcadas pelas mulheres que ocupavam as regiões mais

urbanas e mulheres que habitavam as regiões rurais. Nesse sentido, eles vaticinam: “Nem sempre, no campo, há carne e peixe. Mas os ovos remediam a sua falta. Há tantos modos de os cozinhar! E são tão apetitosos e nutritivos os pratos que com eles se podem fazer!” (MENINA E MOÇA, 1947, apud BRAGA; BRAGA, 2012, p. 207).

Por outro lado, o cenário da imprensa dirigida às mulheres nem sempre teve essa perspectiva, nas publicações que remontam à Primeira República observa-se um discurso mais independente, mostrando que as mulheres escritoras publicam – em baixa escala –, mas reivindicando protagonismo no espaço público, e isso irá diferir das publicações que ora direcionavam as mulheres, no advento do Estado Novo.

Esse período estará marcado pelas publicações que versam sobre o ambiente privado e muitas delas trazem em sua publicidade elementos que constituem o casamento como destino natural e ambicionado pelas mulheres (ALMEIDA, 1985). Na Revista “Modas e Bordados”, a publicidade dos cosméticos Nally evidenciam esse pressuposto. Com a manchete central que absorve toda a página, a revista publica: “Ninguém a quis”:

[...] porque não soube valorizar os seus dotes naturais, porque não adquiriu o misterioso e dominador encanto, a sútil e irresistível sedução que, mais do que a perfeição acadêmica dos traços, constituem a verdadeira beleza atraente, - porque não cuidou e defendeu a sua pele e a sua mocidade, porque não usou, enfim os produtos Nally. (MODAS E BORDADOS, jun. 1935)

A mesma revista, além de fazer um apelo aos cuidados femininos voltados à mulher que não casara, pois sua toillete não estava a contento e seus cuidados eram parcos para consigo, também levantava questões que eram responsabilidade das mulheres no que se refere à elegância masculina. Segundo a revista Modas e Bordados (jun. 1935), a mulher deveria ocupar-se de ter um homem com suas roupas alinhadas, gravata bem passada, calças sem vincos etc. Alertava-a que não era tarefa fácil, pois esbarrava em ter um homem que concordasse com tais cuidados. No entanto, a matéria traz a questão do poder feminino:

Quando a mulher quer, nem o diabo tem força para opor. E não. Porque tudo se consegue com persistência, tenacidade, brandura, experiência. E essas qualidades tem-nas em geral a mulher. Portanto, não vale desanimar a primeira. É preciso que a pouco e pouco a senhora vá convencendo o marido de que determinada gravata é horrenda, de que a camisa amarrotada, os sapatos mal engraxados, o fato com joelheiras, enfim, o conjunto detestável, de que ele se orgulha só tem um resultado: envelhecê-lo. E, minhas senhoras, não há homem algum, por mais desprendido que seja da sua pessoa, que goste sendo novo, da aparência de velho que é.

Esse tipo de texto publicado na Revista Modas e Bordados, que era uma revista secular, com conteúdo diverso, inclusive sendo a primeira revista a publicar os textos de Florbela Espanca, estará diretamente ligado a um tipo de pauta que perpassará a imprensa voltada para as mulheres. A agenda para o feminino (ALMEIDA, 2000, p. 5-15) compreendia esses temas: casamento, maternidade, vida doméstica e o lugar da mulher na sociedade. Variando um pouco o enfoque em um ou outro tema, as revistas femininas de circulação e grande tiragem não distinguiam-se abruptamente, conforme afirmam os investigadores da imprensa. Há quase um consenso que a imprensa feminina, inclusive na contemporaneidade, versa temas relativos a esfera “menor” da vida humana.

Teresa Salvador (2009, p. 95) faz uma incursão exaustiva na imprensa portuguesa direcionada ao feminino, percebendo as pautas, agendas e o que se convencionou como o interesse feminino dentro da sociedade em Portugal, advogando que:

O problema da vulnerabilidade, decorrente do predomínio de ideologias sexistas enraizadas, transversalizadas e internalizadas, tanto afectava os artigos dedicados à moda, quanto os artigos de conteúdo político: os primeiros por serem considerados próprios das mulheres ou conformes à sua natureza; os segundos, por lhe serem impróprios ou estarem desajustados do papel social convencionado, naturalmente politicofóbico. Tal mentalidade contribuiu para inferiorizar a imprensa feminina perante a imprensa em geral que ganhara, por razões várias, uma forte consciência do valor de si mesma. Todavia, nem sempre os ataques depreciativos vinham do exterior. Muitas vezes constituíam-se e assumiam-se no interior do núcleo editorial, independentemente de os responsáveis serem homens ou mulheres. Ilustrativo é o texto de apresentação de Vida Feminina. Revista Semanal da mulher e para a mulher, supostamente escrito por uma das secretárias de redação, onde se esclarece o público leitor sobre a natureza da revista: espaço ‘onde a mulher se sente mulher e onde a futilidade feminina, que é afinal a vida, é tratada com algum carinho e sem política nenhuma’.

Entretanto, Teresa Salvador (2009, p. 95) adverte que o enunciado das publicações e a propaganda que era dada a conhecer delas não manifestam a diversidade de publicações direcionada às mulheres nos oitocentos. Essas poucas, mas antagônicas publicações, diferiam do consenso que pairava sobre a imprensa para mulheres e mostrava-se “extrovertida, combativa e decidida a permanecer no espaço informativo, equacionando os problemas da mulher e da sociedade, juntando a vida privada com a pública e harmonizando valores”.

Essas publicações que se mostravam diferentes das pautas que costumeiramente eram vinculadas ao feminino (ALMEIDA, 1998), fosse pelo discurso que as mulheres interessavam-se apenas por trivialidades (LIMA, 2012), fosse por sobressaírem-se em números a outras de cariz diverso, também eram alvo das revistas com redatores homens, que escreviam e editavam para o mercado impresso voltado às mulheres. É o que assevera

Salvador (2009, p. 97), ao falar da Revista “O Toucador: Periódico sem política dedicado as senhoras”, que era dirigida por Almeida Garret, que em seu editorial afirma: “declara-se que ficam intencionalmente de fora ‘as tarefas de politicar e despoliticar’”.

Com a afirmação de Garret sobre o “despoliticar” das revistas endereçadas às mulheres, pode-se perceber que há uma agência própria voltada à imprensa feminina, trabalhando com o fim de ilustrar a vida da mulher, a imagem como ilustração, no sentido de dar um lustro à imagem feminina, mostrando à natureza feminina o que se deveria consumir, ler, ouvir e dizer. Entre texto e imagem, os dois suportes têm o objetivo de mostrar aspectos do cotidiano feminino, desenhando e deixando um rastro de norma entre as grandes publicações que informavam e formavam, além de conformar o feminino. Em uma das muitas publicações a que se teve acesso, uma chamou a atenção pelo conteúdo da responsabilidade feminina na felicidade doméstica:

Os dez mandamentos da felicidade doméstica: I- Sê otimista, sorridente; mas evita as gargalhadas.

II- Não queiras por força esconder-lhes as gravatas; o teu gosto não é forçosamente o dele;

III- Não lhe peças dinheiro a toda a hora; faze os teus cálculos e pede-lhe por uma vez;

IV- Não o importunes com coisas insignificantes. Não lhe fales nos serviços caseiros. Nada de ditinhos nem intrigas. Mas uma vez por outra conta-lhe uma anedota, que ele há de achar graça;

V- Dá-lhe uma alimentação simples. Dize-lhe que esse regime lhe convém, por isto e por aquilo. Mas se ele é apreciador de comida complicada, uma vez por outra faz- lhe a vontade;

VI- Sê como ele te deseja. Se ele gosta que sejas frágil, dá-lhe ocasião a que ele venha em teu auxílio... Mas se ele aspira a que o ajudes, não finjas que não entendes; VII- Adula-o, se é preciso. Mas critica-o só quando ele te pedir;

VIII- Sê meiga, carinhosa; afectada não;

IX- Cuida de ti como no tempo do noivado. Procura tua beleza, mas pinta-te com moderação. Renuncia às pantufas...

X- Mas prepara as dele. (MODAS E BORDADOS, dez. 1935)

Essa publicação, entre outras, eram chamamentos a que as mulheres atentassem àquilo que lhes era esperado. Portanto, as publicações em sua maioria, desde os oitocentos, estarão sintonizadas com o aprimoramento da vida familiar, fazendo a mediação entre o mundo privado e os conselhos públicos que permeavam as revistas. Teresa Salvador (2009, p. 97), ao analisar a publicação de 1822, chamada “Gazeta das Damas”, que destoava das demais, pois prometia formar e informar, enfatiza:

A invocação da necessidade nacional de aproximação das mulheres à política, pelo menos na qualidade de observadoras e comentadoras, coexiste, no mesmo espaço, com o apelo ao cultivo a domesticidade angélica, como se fosse insignificante e invisível o desacerto das mundividências. De fato, se alguns artigos não fazem

contenção no uso do tom crítico, irônico e exaltado, outros postulam um ideal de mulher do tipo companheira doméstica. Cita-se exemplificativamente: ‘Dama de um espírito cultivado, e de um coração bem formado, e virtuoso. Eis aqui a companheira, e não a escrava do seu condigno Esposo: Ela satisfaz os seus desejos, e alivia-lhe igualmente as suas penas, recompensa-lhe os seus cuidados e suaviza a sua sorte por efusões de ternura: a gravidade, a inocência e a modéstia mostrar-se-ão no seu rosto’.

Como pode-se perceber, a diferença dos anos oitenta do século XIX para os anos trinta do século XX (BERNARDES, 1989), na questão das abordagens das revistas femininas e na imprensa voltada para a mulher, não evidencia uma mudança radical ou drástica. As formas de escrita atravessam as décadas e na linha editorial que se acessou, elas mostram muitos pontos de intersecção.

Maria Teresa Santos (2013, p. 18), ao escrever sobre a imprensa feminina, afirma que os periódicos que circulavam entre as mulheres foram enquadrados na “categoria da petite presse”, e sobre isso ela observa:

[...] designação depreciativa que sugere-se tratar-se de um gênero menor de uma espécie, ou seja, de uma designação dos grandes periódicos. É certo, que, do ponto de vista editorial, em termos comparativos, tais periódicos foram particularmente efêmeros, de publicação irregular, de fraca tiragem e de circulação restrita (mulheres portuguesas letradas), com poucos artigos de ressonância internacional, abuso de entradas informativas e falta de sustentabilidade financeira. Sem consequências concorrenciais negativas para os periódicos de referência nacional, mantinham-se no mercado editorial graças a carolice militante de algumas mulheres que desdobravam os seus nomes em pseudônimos, trabalhavam muitas vezes gratuitamente e financiavam sem retorno.

É nessa cena que se remonta aos periódicos católicos destinados às mulheres. Com alguma vantagem na estrutura tipográfica e com escritoras que eram do corpo da Igreja, a concorrência constituía-se desleal. A imprensa católica, além das doações da Igreja, buscava junto a fiéis multiplicar as assinaturas, também com algumas promoções que viabilizassem as publicações. Contavam com inúmeros mecanismos para a propagação de uma formação católica para as mulheres portuguesas.

Entre as matérias investigadas nas revistas “Alleluia” e “Stella: A revista da mulher católica” e a coluna feminina do Jornal “Novidades” percebeu-se que a agenda para as mulheres não destoava dos valores indeclináveis da mulher como: maternidade, educação dos filhos, o combate ao divórcio, o combate ao aborto e a educação para o matrimônio perfeito. Desse modo, nos arquivos acessados, entre imprensa laica e imprensa religiosa destinada às mulheres, a pauta pouco variava (BUITONI, 1990). O que era vário era o enfoque, em

algumas matérias o apelo ao culto mariano, era recorrente, o que não era tão visível na imprensa secular.

Não houve acesso à imprensa da resistência feminina, que tivesse outros discursos, exatamente porque o cerne da investigação era a participação da imprensa religiosa na manutenção de um regime duradouro. Dessa forma, alguns aspectos confirmaram a hipótese inicial e outros mostraram uma imprensa mais independente do Estado. No entanto, os pontos de convergência são imensos e extensos, o que corrobora a tese inicial e a investigação ora empreendida. As revistas católicas compuseram como forma transversal, ficando a coluna feminina do jornal Novidades, jornal filiado à hierarquia da Igreja e com forte identificação conservadora, como principal aporte referencial para tecer-se a problemática. A coluna do Jornal Novidades mereceu especial atenção por reunir esses elementos fundamentais já expostos (mulheres, educação e política), e também por estar vinculado à pergunta que norteou o olhar do início ao fim, procurando-se a resposta, portanto ela integra o subcapítulo seguinte.