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4 A FORMAÇÃO CATÓLICA PARA AS RAPARIGAS, ATRAVÉS DA

4.2 A MISSÃO DA MULHER

Muitas foram as missões destinadas às mulheres. Os jornais, revistas, manuscritos, boletins católicos e textos propagandísticos deixavam claro que a mulher existira e existia para desempenhar uma missão no mundo. Esse mundo povoado por sujeitos carregava o senso de compartimentação da vida social. António Oliveira Salazar fizera questão de destacar em seus pronunciamentos que o indivíduo só completava sua missão no seio da família, portanto cada membro dessa instituição estava comprometido com o sucesso desse

projeto social. Entretanto, não nega-se as exigências sociais diversificadas que estavam sob responsabilidade da mulher.

Foi com essa perspectiva que o Jornal Novidades publicou em 2 de outubro de 1936 a matéria “A missão da mulher”, baseada nas palavras do Dr. Carlos Borges, conforme informa o jornal. No cassino peninsular de Figueira da Foz, uma festa beneficente organizada pela senhora Dona Celeste de Melo Mendes contou com a fala muito oportuna, segundo jornal, do Dr. Carlos Borges, sendo transcritas no periódico algumas passagens de sua conferência. As palavras iniciais merecem ser citadas:

Pregoa-se por toda a parte a emancipação das mulheres, como se tratasse da libertação de escravos e o comunismo levou a doutrina aos extremos limites do impudor e da insensatez. Igualdade de direitos políticos e civis, livre exercício de todas as profissões e amor livre. E está em síntese, a doutrina feminista. A natureza feminina, a função social da mulher são incompatíveis com o exercício de muitos cargos e profissões. Demonstram Callet e Iver, que a mulher não falece inteligência nem vigor para ser um médico ou um advogado de mérito mas, a que cuidar de doentes ou debater questões forenses tem de renunciar aos deveres e aos doces prazeres do lar: não pode ser boa mãe e boa esposa. O seu ofício acaba por ser exercido sobre as ruínas da própria felicidade. A mulher não pode ser igual ao homem. As suas vidas, os seus deveres, a sua função correm paralelas, são equivalentes, mas inconfundíveis. A imitação de certos actos e gestos masculinos degrada e desprestigia. Há damas que fumam em lugares públicos e de preferência nas reuniões mundanas. O cigarro é assim como uma proclamação de independência e desdém pelo próximo, uma maneira insolente de irritar o indígena. (NOVIDADES, 2 out. 1936)

O cigarro, o cabelo cortado à Joãozinho125

e o vestuário que motiva uma nova perspectiva visual e que está atrelado à masculinização da mulher serão veementemente combatidos (XAVIER FILHA, 2010). Nesse microcosmo o que está em causa também é a questão da virilidade, da superioridade masculina, e à medida que o terreno estende-se, que as mulheres são arrimos de suas famílias, que o divórcio é uma possibilidade, muitas verdades dadas são postas em xeque. Peter Gay (1988, p. 146) cita Walter Bensan – ensaísta, comentarista social e romancista prolífico – para mostrar o temor da perda de terrenos que até ali vigoraram. Em “The Revolt of Man” (A revolta do homem), ele incursiona pelas questões das emancipações femininas, alegando que num futuro próximo – e está tratando de 1882 –, as mulheres estariam dominando o mundo, invertendo vigorosamente os papéis sociais.

Com esse temor, que Gay muito bem enfatiza, o Dr Carlos Borges termina sua conferência:

125 O livro “La Garçonne”, de Victor Marguritte, publicado em 1922, narrava a história de uma jovem

progressista, que deixa a casa da família em busca de uma vida independente. Esse texto é atrelado as novas formas de vestir e tratar o corpo feminino, por isso, as alusões feitas aos cabelos a Joãozinho são introduzidas e atreladas a tal literatura.

Tomando uma posição francamente, antifeminista, preste culto à beleza, à graça e à virtude da mulher. Não são mulheres, as criaturas que deixam a vida do lar e os cuidados dos filhos, para irem para a praça pública, atear ódios e suscitar assassinos, saques e degradações. Não são mulheres, aquelas que se alistam nas hostes desta ou daquela facção e marcham, entre soldados e com soldados para as linhas de combate. Não são mulheres essas histéricas que proclamam o amor livre e gritam delirantes e descompostas – filhos sim, maridos não. Não são mulheres aquelas que tem o coração vazio para o amor e o ventre estéril para a maternidade. (NOVIDADES, 2 out. 1936)

As palavras do Doutor Carlos Borges ficaram repercutindo nas páginas dos jornais, o combate a um certo tipo feminino nasce de um descompasso entre discurso e prática. Os textos jornalísticos com as mais variadas argumentações entoavam a volta da mulher ao lar e o quanto vil era a mulher que lutava pelo direito à instrução, o direito ao trabalho e o mais básico direito, o da cidadania. Discursos médicos especializaram-se em promover a inferioridade biológica, dando lugar a um discurso jurídico igualmente desigual e opressor. As palavras nos jornais dos mais diversos homens corroboravam as argumentações discursivas, foi o que ocorrera com o Dr. Carlos Borges, que aparentemente desconhecia e renegava a mulher pobre, que sempre esteve nas ruas e que foi uma das mais castigadas pela inferioridade de classe, que igualmente oprimia. É o que afirma Fátima Mariano (2011, p. 62): Como nota Elzira Machado Rosa, nos primeiros decênios do século XX assistia-se a uma situação de dupla discriminação feminina: a da diferença de estatuto entre homens e mulheres da mesma classe e a diferença de condição feminina dos grupos burguês e popular. Em ambos os casos, ‘a mulher ocupa o centro do cotidiano familiar. Mas enquanto a primeira desliza para o mundo exterior saboreando a festa e o lazer, a segunda procura, fora de casa, apenas a subsistência’.

Não se pode concordar, todavia, com o maniqueísmo exposto por alguns autores de que a mulher da elite estava ao sabor da vida e a mulher das classes populares estava em condições de subalternidade, pois a redução é simplista. O que se advoga é que a classe é mais um elemento que diferencia o feminino e que há muitos femininos dentro do feminino. A classe é só mais um marcador social, um importante marcador social, mas não o único, pois mesmo que abastadas, ainda eram mulheres.

As exigências sociais eram diferentes, as discriminações eram diferentes, havia verdadeiros abismos interpostos pela classe, raça e muitos outros elementos que formam e conformam o sujeito, porém medir os níveis de opressão não muda o caráter da sujeição e parece não colaborar para o debate.

No entanto, é imperativo frisar que uma das raízes dessas exigências sociais para ambas classes de mulheres tem origem nas encíclicas papais, dentre elas, a mais famosa, a Rerum Novarum, e a Quadragésimo Ano, que intermedia e molda as relações homem e mulher, dedicando especial olhar ao homem público e à mulher dentro das esferas privadas, redefinindo o espaço de cada um.