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A integração regional como símbolo da soberania econômica do Estado

Dado que a integração regional é um fenômeno ocorrido no seio da sociedade internacional, ela se instrumentaliza a partir do direito internacional. Os Estados, por decidirem, com respaldo em sua soberania econômica, abrir os seus mercados aos

280 Resolução nº 3.281/1974 da Assembleia Geral da ONU, Capítulo I, alíneas “a”, “b”, “d”, “k’ e “m”.

281 “Art. 4º. A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes

princípios: [...] I – independência nacional”.

282 “Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim

assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: I – soberania nacional”.

intercâmbios internacionais com seus vizinhos regionais nos mais diversos níveis, no intuito de realizar suas determinações constitucionais283, consignam este compromisso em tratados internacionais, assegurando o início e a evolução dos processos integracionistas.

§ 1º. Modelos institucionais de integração regional e soberania dos Estados Membros A soberania no contexto do direito internacional após a Segunda Guerra Mundial é consagrada e reconhecida com base principalmente na Carta da ONU, conforme já indicado. É importante observar que a sociedade internacional tem seguido as ideias estabelecidas na referida Carta tanto do ponto de vista econômico quanto dos direitos humanos, o que atesta sua atualidade e força jurídica internacional, comprovada pela complexidade institucional e influência política exercida pela ONU na sociedade internacional284.

Diante desse quadro político-jurídico é que a soberania vem expressar o seu papel, no sentido de permitir e endossar a autonomia e autodeterminação do Estado na busca pela consecução de seus compromissos constitucionais no âmbito da sociedade internacional. Apenas o Estado soberano pode celebrar convenções internacionais criando organizações internacionais de integração para atuação na sociedade internacional, conformando os blocos de integração regional.

Acirrando ainda mais os debates doutrinários acerca da soberania em sua dimensão jurídica, a experiência integracionista europeia, a partir do Tratado de Maastricht, de 07 de fevereiro de 1992, ofereceu aos Estados uma solução totalmente nova pensada a partir de necessidades práticas, qual seja, a conformação das comunidades europeias de estrutura supranacional e capazes de produzir um direito comunitário285.

Nesse modelo de integração regional é que se encontram as soluções necessárias a qualquer projeto de integração que objetive a formação mercado comum – conforme fundamentações jurídicas e econômicas já oferecidas no primeiro capítulo –, ao passo que, simultaneamente, representa também o contexto de maior desafio ao jurista no sentido de compreender e reconhecer a soberania dos Estados diante da integração regional286.

283 Ver infra, Capítulo 4.

284 Sobre a ONU, consultar: MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público. 3. ed.

São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 562-580.

285 Tratado de Maastricht, artigos E e F.

286 FONTOURA, Jorge. Lineamentos para um direito de comunidade econômica. In: ALMEIDA, Paulo

Roberto de (Org.). Boletim de Integração Latino-Americana, nº 10, jul./set. 1993. Brasília: Ministério das Relações Exteriores, 1993, p. 24-25.

A supranacionalidade e o direito comunitário têm sido os pontos mais controversos nas experiências de integração regional, por suscitar uma adequação dos modelos institucionais dos Estados a uma nova realidade de produção de normas287.

Necessário se faz esclarecer que as instituições supranacionais e produtoras de direito comunitário, típicas do contexto de integração regional econômica a partir no nível do mercado comum, como é o caso do Mercosul, não recebem uma cessão de parcela da soberania dos Estados que a criaram, mas apenas sua delegação288. Delegar poderes aos órgãos dedicados ao fim integracionista é medida necessária para ver realizado qualquer projeto de integração, contudo, na experiência sul-americana, tem sido um ponto sensível desde a criação da ALALC até os dias atuais289.

A cessão da soberania, de caráter definitivo, é típica de formas federadas, implicando a existência de um verdadeiro Estado. Daí porque a União Europeia não é considerada federação, pois existe apenas a delegação de soberania, e esta referente à matéria econômica, formando um “território comunitário”, em virtude do reconhecimento de sua interdependência do ponto de vista econômico290.

Destarte, a soberania dos Estados permanece intacta diante das instituições supranacionais por ele criadas, na medida em que é possível a supressão da delegação concedida, por meio da denúncia do tratado internacional pertinente à criação e à capacitação jurídica desses órgãos produtores de direito comunitário. Vale observar que uma situação como esta deve revelar aspectos extremados e incorrigíveis, que não deixem outra solução possível para o Estado.

Saliente-se, nesse sentido, que essa nova realidade é uma construção dos próprios Estados em busca da efetivação de suas constituições e dos compromissos para com suas populações. Nesse sentido, a mudança institucional em tela é evidentemente uma confirmação do exercício da soberania dos Estados, a partir de diretrizes políticas estabelecidas com o escopo de realização constitucional291.

287 CASELLA, Paulo Borba. Soberania, Integração Econômica e Supranacionalidade. In: MELLO, Celso

Duvivier de Albuquerque (coord.). Anuário direito e globalização, 1: a soberania. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 71.

288 GOMES, Eduardo Biacchi. A supranacionalidade e os blocos econômicos. In: Revista de Direito

Constitucional e Internacional, Ano 13, n. 53, out./dez.2005, p. 315.

289 CHIARELLI, Carlos Alberto Gomes; CHIARELLI, Matteo Rota. Integração: direito e dever – Mercosul e Mercado Comum Europeu. São Paulo: LTr, 1992, p. 120.

290 GOMES, Eduardo Biacchi. A nova concepção do Estado perante o Direito da integração. In: Revista de

Informação Legislativa, Ano 42, n. 167, jul./set. 2005, pp. 87 e 89.

291 GUSSI, Evandro Herrera Bertone. Soberania e Supranacionalidade. In: CASELLA, Paulo Borba;

A herança doutrinária interna de compreender a soberania como dotada de um caráter inflexível certamente é resultado das experiências de inclinações totalitaristas vividas por ocasião dos governos militares que tomaram a América do Sul entre as décadas de 1960 e 1980292.

No entanto, essas distorções do real significado do princípio não podem permanecer – por tão longo tempo após a derrocada dos regimes militares de governo – povoando o pensamento jurídico, especialmente em razão de que todas as relações econômicas, políticas, sociais e, por consequência, jurídicas só podem ser devidamente compreendidas e trabalhadas considerando suas inserções internacionais, como é o caso da integração regional.

Combinando o art. 4º, parágrafo único, e o art. 1º, I, da Constituição Federal brasileira de 1988, resta evidenciada a plena possibilidade de realização do projeto integracionista necessitando-se, apenas, de um novo enfoque sobre o conceito da soberania, que, como visto, apesar de apresentar algumas mudanças em sua forma de externalização, permanece íntegro e sem apresentar desfigurações em sua essência quando compreendido como a primazia, superioridade e autonomia para a livre condução do Estado, corroborando a autodeterminação dos povos.

Entender a soberania como dogma inflexível e imutável se constitui em uma esquizofrenia jurídica, na medida em que já se compreendeu que o direito, por ter a sociedade como objeto, deve estar apto a acompanhar as evoluções e necessidades apresentadas pelo contingente social.

Daí o ganho de força das cláusulas abertas e conceitos indeterminados na doutrina jurídica, que permitem que o direito acompanhe as mudanças sociais de forma mais suave, em prol da segurança jurídica proporcionada pela estabilidade das instituições.

Nesse sentido, aduz Paulo Borba Casella:

Enquanto se aceitar o pressuposto da soberania como dogma que não precisa entrar em discussão nem reformulação quando se ensaia a integração, provavelmente não se irá além do estágio da utilização de expedientes formalmente adequados, através dos quais os Estados se ponham de acordo para constatar a ocorrência de discordâncias, sem estruturar mecanismos eficazes para a superação de tais impasses, tornando-os ineficazes para a consecução de seus fins. A ocorrência de tais mecanismos marcará a distinção entre cooperação e integração. Esta a distinção fundamental,

292 SOARES, Mário Lúcio Quintão. Mercosul: direitos humanos, globalização e soberania. 2. ed. Belo

substancialmente mais relevante do que gradações teóricas ou a nomenclatura oficial, adotada por diferentes projetos de integração293. A compreensão da soberania brasileira, portanto, não deve constituir um óbice que prefere a forma e prejudica o conteúdo das normas internacionais294. Deve partir de sua Constituição e levar em conta o próprio contexto constitucional e social, que impulsionam o Estado à busca pelo processo de integração na medida em que este se evidencia na sociedade internacional como meio de alcance do desenvolvimento econômico e da justiça social.

§ 2º. A correta compreensão da soberania do Estado brasileiro como fator realizador e indispensável à integração regional

A integração regional é um processo que se realiza em diversos níveis, a partir da ação combinada de Estados que compartilhem semelhanças sociais e que componham territórios contíguos. Nesse sentido, se realiza por meio da efetivação de compromissos assumidos no direito internacional, em busca da realização constitucional.

Sem a primazia e autonomia que expressam na soberania a realização do princípio da autodeterminação dos povos, não seria possível a realização dos planos de integração regional, tal como não seria possível a formação da ordem de juridicidade internacional. Destarte, a confirmação da existência da soberania como elemento do Estado se dá pela própria formação do direito internacional. No mesmo sentido, compreender a soberania como de maneira absoluta é se recusar a enxergar o próprio direito internacional295.

Inclusive, a Constituição Federal de 1988 trata explicitamente do tema em dois momentos distintos: inicialmente, estatui a soberania como fundamento da República Federativa do Brasil296; e, em outra ocasião, estabelece a soberania nacional como princípio da ordem econômica, destinada a promover a justiça social297.

293 CASELLA, Paulo Borba. Soberania, Integração Econômica e Supranacionalidade. In: MELLO, Celso

Duvivier de Albuquerque (coord.). Anuário direito e globalização, 1: a soberania. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 71.

294 ALMEIDA, Paulo Roberto de. Dilemas da soberania no Mercosul: supranacional ou intergovernamental?. In: MELLO, Celso Duvivier de Albuquerque (coord.). Anuário direito e globalização, 1: a soberania. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 256.

295 SANTOS, Arthur. O dogma da soberania absoluta e a realidade internacional. In: Revista de Informação

Legislativa, v. 1, n. 2, jun. 1964, p. 60.

296 Constituição da República Federativa do Brasil, art. 1º, I. 297 Constituição da República Federativa do Brasil, art. 170, I.

Assim, constata-se que o sistema constitucional brasileiro vigente demonstra haver peculiaridades no Princípio da Soberania em face de matéria econômica, corroborando com a existência, nesse, de uma dimensão de caráter propriamente econômico. Ressalte-se, a atual Constituição, dentre as constituições brasileiras, foi a que mais se dedicou a tratar do tema da soberania298.

A soberania, então, se apresenta nos níveis interno e externo, tendo ambos importância decisiva para a integração regional, visto que os princípios e as diretrizes constitucionais estabelecidas repercutem em ambas esferas, e que estas repercussões são justamente a expressão da realização constitucional.

Isso se dá em razão de que a integração regional econômica é um meio de alcançar o desenvolvimento – este também um compromisso interno do ponto de vista do sistema constitucional brasileiro299. Porém, a integração só pode ser efetivada a partir de ações externas devidamente repercutidas internamente.

Nesse sentido, sem as prerrogativas conferidas pelo elemento da soberania o Estado brasileiro não poderia haver iniciado o processo de integração exigido pelo parágrafo único do art. 4º de sua Constituição, o que implicaria uma dificuldade de realização do dispositivo constitucional. Assim, dificultar a plena eficácia das normas internacionais – especialmente as de integração regional –, sob o pretexto de uma compreensão distorcida da soberania e, ainda, sob um regime dualista de diálogo com o direito internacional, é dificultar a plena realização constitucional brasileira300.

O abandono da conservadora concepção absoluta da soberania, oportunizando sua correta compreensão, é, portanto, condição importante a fim de garantir o acesso do Estado brasileiro às melhores condições de sobrevivência no cenário econômica internacional301. Além disto, em se tratando não de cooperação, mas de integração, é necessário que a estrutura institucional possa contar com órgãos permanentes e dotados de poderes próprios de decisão a partir de competência delegada pelo Estado Membro através de tratado internacional302.

298 OLIVEIRA, Raul José de Galaad. O preceito da soberania nas constituições e na jurisprudência brasileiras. In: Revista de Informação Legislativa, Ano 37, n. 146, abr./jun. 2000, p. 166.

299 Constituição da República Federativa do Brasil, art. 3º, II.

300 BERARDO, Telma. Soberania, um novo conceito? In: Revista de Direito Constitucional e Internacional,

ano 10, n. 40, jul./set., 2002, p. 38.

301 CARNEIRO, Cristiane Dias. A convivência dos princípios constitucionais da soberania, integração política e econômica. In: Revista de Direito Constitucional e Internacional, Ano 16, n. 65, out./dez. 2008, p.

305.

302 FARIA, Werter R. Estrutura institucional de comunidades e mercados comuns. In: Núcleo de

Assessoramento Técnico (Org.). Boletim de Integração Latino-Americana, nº 06, jul./set. 1992. Brasília: Ministério das Relações Exteriores, 1992, p. 06.

Ainda, foi a ocorrência do fenômeno da integração regional econômica, conferindo uma nova feição às relações internacionais com o surgimento dos blocos regionais, que impulsionou mais fortemente a necessidade da evolução do conceito da soberania estatal303. E essa evolução tende a reconhecer a cada vez maior interdependência entre os Estados no que tange à matéria econômica, fundamentando as iniciativas de integração regional304.

Até o presente momento, registre-se, foi identificado o fenômeno internacional da integração regional e consignada a importância do direito internacional para o seu desenvolvimento. Ademais, constatou-se o compromisso constitucional do Estado brasileiro com a integração regional latino-americana.

Estabelecidos os seus planos e os seus princípios diretores através do estudo de sua estrutura normativa, foram analisadas as organizações internacionais atuantes no sentido de sua realização, bem como a inserção do Brasil no contexto integracionista.

Por fim, após apresentada a soberania como o elemento do Estado que lhe permite a busca desse fim com base no texto constitucional, evidencia-se a necessidade de compreender o sistema de incorporação das normas mercosulinas ao Estado brasileiro e o seu mecanismo de solução de controvérsias.

Essa compreensão, no entanto, deve ser orientada de modo a determinar que grau de segurança jurídica oferece o sistema jurídico de integração do Mercosul, determinando se é satisfatório ou não em relação ao objetivo de constituição de um mercado comum, estabelecido no Tratado de Assunção de 1991.

303 , Cristiane Dias. A convivência dos princípios constitucionais da soberania, integração política e econômica. In: Revista de Direito Constitucional e Internacional, Ano 16, n. 65, out./dez. 2008, p. 306-307. 304 GOMES, Eduardo Biacchi. A nova concepção do Estado perante o Direito da integração. In: Revista de

Segunda Parte

A IMPLEMENTAÇÃO DAS NORMAS DO MERCOSUL NO ESTADO BRASILEIRO Visto que a integração regional é um compromisso entre Estados, o direito internacional exerce um papel decisivo para sua consolidação e, mesmo, para sua evolução, considerando que os compromissos que a originam são tratados internacionais – direito internacional originário – e que sua operacionalização é feita pelas organizações regionais de integração, dotadas da capacidade de produzir normas no sentido do aperfeiçoamento do projeto de integração – direito internacional derivado.

Nesse contexto, a efetividade das normas de integração depende fundamentalmente de dois aspectos: a agilidade em sua internalização nos sistemas jurídicos dos Estados Membros, de modo que elas passem a ser exigíveis de forma indistinta no sistema jurídico internacional e nos sistemas jurídicos internos nacionais; e o respaldo jurisdicional, para que sejam exequíveis tanto externa quanto internamente, com vistas a garantir a sua observância, ainda que seja com a utilização de recursos de coerção.

Apenas dessa forma é possível oferecer a segurança jurídica exigida pelos agentes econômicos, que são os realizadores ipso facto de qualquer projeto de integração regional. Não seria diferente no caso do Mercosul, a despeito de que o Estado brasileiro impõe algumas dificuldades à implementação de seu próprio dispositivo constitucional integracionista. No entanto, existem soluções para este problema.

Capítulo 4. A incorporação das normas mercosulinas ao ordenamento jurídico