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A soberania consiste na liberdade do Estado em adotar decisões supremas em relação a posicionamentos, planos ou projetos, quer dentro do seu território ou mesmo no contexto internacional, de acordo com as orientações que o poder constituinte estatuiu em sua Constituição.

Diante do pacto democrático inserido no Estado de Direito, a soberania fica atrelada à realização dos preceitos estabelecidos pela sociedade nacional na Constituição do Estado. Assim, é com essa finalidade que deve ser entendida desde o princípio, devendo os dirigentes estatais utilizar a liberdade por ela fornecida sempre com vistas à obediência e à realização dos ditames constitucionais242.

Nesse sentido, convém inferir que a soberania é atributo do Estado. O mais alto nível da estrutura hierárquica do governo, portanto, apenas dispõe da soberania do Estado – e não a

239 KELSEN, Hans. Il problema della sovranità e la teoria del diritto Internazionale Contributo per uma dottrina pura del diritto. 1920. Trad. Italiana de A. Carrino. Milão: Giuffre, 1989, p.469, apud; Idem, Ibidem,

p.04.

240 GALLO, Ronaldo Guimarães. Soberania: poder limitado (parte I). In: Revista de Informação Legislativa,

Ano 43, n. 169, jan./mar. 2006, p. 37.

241 CARNEIRO, Cristiane Dias. A convivência dos princípios constitucionais da soberania, integração política e econômica. In: Revista de Direito Constitucional e Internacional, Ano 16, n. 65, out./dez. 2008, p.

294.

242 BERARDO, Telma. Soberania, um novo conceito? In: Revista de Direito Constitucional e Internacional,

incorpora –, mas para utilização restrita em prol da realização dos compromissos já mencionados.

Resta, então, compreender de onde surge a soberania e qual é o seu conteúdo essencial, para a constatação de que soberania e segurança jurídica internacional não são conceitos contraditórios.

§ 1º. Autodeterminação dos povos

A própria origem da palavra soberania fornece uma boa vertente para início de reflexão: proveniente do latim superanus, que significa o supremo grau da hierarquia política, aporta as ideias de primazia e superioridade243. Estas formariam o eixo principal do conceito de soberania, que vem evoluindo, contudo sem alterações em sua essência, desde o seu primeiro sistematizador, Jean Bodin244 – em uma época que era pensado para solucionar questões internas –, até os dias atuais em que é estudada predominantemente por internacionalistas – visto que o ganho de força do direito internacional impulsiona a solução de questões externas aos Estados no contexto de inserção na sociedade internacional.

Deve-se ter em mente, portanto, que a soberania é um conceito político-jurídico245 observado nas dimensões interna e externa, de modo que surge por expressão política, mas se instrumentaliza e realiza a partir do direito, nos termos da Teoria Realista246. Nesse sentido, vale observar que a soberania está, por essência e por coerência, limitada ou adstrita à realização dos propósitos da unidade Estatal, definidos a partir de um pacto de natureza política. Seria, então, a soberania um conceito jurídico indeterminado, mas de essência e bases bem definidas que se mantêm incólumes ao longo das evoluções políticas e jurídicas247.

A outra questão deveras controversa acerca da soberania – para além de sua presença no rol de elementos do Estado – é a questão de sua limitação. O conceito de soberania

243 DAVID, Marcel. La Souveraineté et les Limites Juridiques du Pouvoir Monarchique du IX au XV Siècle, vol. II, Paris: Librairie Dalloz, 1954, p. 14, apud MELLO, Celso Duvivier de Albuquerque. A soberania através da História. In: MELLO, Celso Duvivier de Albuquerque (coord.). Anuário direito e globalização, 1: a soberania. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 10.

244 A partir de sua obra intitulada Six livres de la republique (Seis livros da república), publicados em 1576. JO ,

Hee Moon; SOBRINO, Marcelo da Silva. Soberania no Direito Internacional, evolução ou revolução? In: Revista de Informação Legislativa, Ano 41, n. 163, jul./set. 2004, p. 09.

245 JELLINEK, Teoría general del Estado – Tomo II. Madrid, 1915 apud VIGNALI, Heber Arbuet Vignali. O atributo da soberania – Estudos da Integração, v. 9. Brasília: Senado Federal; Porto Alegre: Associação

Brasileira de Estudos da Integração, 1996, p. 24.

246 MALUF, Sahid. Teoria Geral do Estado. 26. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 36.

247 MELLO, Celso Duvivier de Albuquerque. A soberania através da História. In: MELLO, Celso Duvivier de

elaborado por Jean Bodin, proveniente da era do Estado absolutista, parece ter sido mal compreendido desde a Idade Moderna até os dias atuais.

Fato é que Bodin defendia que era o Rei o titular da soberania, mas somente é possível compreender a sua verdadeira ideia a partir do estudo da definição que o jurista fornece: “é o poder absoluto e perpétuo de uma República”. Isso não significa dizer que não há limitações à soberania, inclusive estas reconhecidas pelo próprio autor, que se consubstanciam, segundo ele, no direito natural e no direito das gentes248.

Posteriormente a Bodin, Jean-Jacques Rousseau propõe a transferência de titularidade da soberania, desassociando-a da figura do governante para atribuí-la ao povo, devendo ser exercida a partir da vontade geral249. Daí surgiu a expressão “soberania popular”, de natureza política. E, no Estado de Direito, a vontade geral resta consignada em sua Constituição, que deve ser realizada pelo governo, por via do exercício da soberania em nome da vontade do povo.

Assim, compreende-se que expressão da soberania do ponto de vista interno do Estado Democrático de Direito é a autodeterminação dos povos, princípio consagrado constitucionalmente no Estado brasileiro, nos termos art. 4º, III250, da Constituição Federal vigente. O povo, no exercício de suas prerrogativas, dispõe do poder e dos meios de realizar sua vontade consignada na Constituição, o que na democracia representativa ocorre por meio da ação de um governo institucionalizado e composto por agentes eleitos251.

As limitações inicialmente reconhecidas por Bodin se apresentam nas mesmas duas dimensões em que a soberania se manifesta no referido modelo de Estado: internamente, são traduzidas no núcleo de direitos fundamentais da Constituição252, que é formado essencialmente a partir de valores oriundos do direito natural que devem ser respeitados pelo Estado sob quaisquer condições; e, externamente, é limitada pelo direito internacional, formado pela ação voluntária do Estado na atividade de firmar compromissos e assumir condutas perante a sociedade internacional, também orientado por princípios oriundos do

248 BODIN, Jean. Les Six Livres de la Republique. Gérard Mairet (edição e apresentação). Paris: Le Livre de

Poche, 1993, p. 111, apud; idem, ibidem, p. 11.

249 MALUF, Sahid. Teoria Geral do Estado. 26. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 74.

250 “Art. 4º. A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes

princípios: [...] III – autodeterminação dos povos”.

251 RODRIGUES JÚNIOR, Otávio Luiz. Autonomia da vontade, autonomia privada e autodeterminação – notas sobre a evolução de um conceito na Modernidade e na Pós-Modernidade. In: Revista de Informação

Legislativa, Ano 41, n. 163, jul./set. 2004, p. 126.

direito natural, a exemplo da coexistência pacífica dos Estados para a promoção e defesa dos direitos humanos253.

No plano interno, a ideia de tutela da inviolabilidade dos direitos e garantias fundamentais pelo poder público ou privado, que limita a soberania interna do Estado, é aceita pacificamente, não significando qualquer abalo à ideia de soberania, inclusive constituindo uma vertente essencial do direito constitucional. A controvérsia surge quando se discute a soberania no plano internacional, momento em que autores chegam a afirmar que esta não mais existe nos dias atuais, inclusive propondo aporias em sua conceituação254.

Essa controvérsia prejudica a harmonização entre os compromissos internacionais e a autonomia do Estado. Nesse sentido, considerando que a segurança jurídica na integração regional é propiciada por tratados internacionais e pelo direito internacional deles derivado, é necessário o enfrentamento do tema.

§ 2º. Voluntarismo e Autolimitação do Estado na perspectiva integracionista

Considerando que a soberania é um instituto jurídico estabelecido no século XVII para compor necessidades estatais internas, mas que hoje conta com uma dimensão muito mais proeminente no seio da sociedade internacional e do próprio direito internacional, é necessário firmar as bases da soberania também do ponto de vista externo, para além de sua dimensão interna, na perspectiva de permitir sua harmonização com a segurança jurídica das experiências de integração regional econômica.

Ab initio, é importante aduzir que a soberania, nos termos da Teoria da Soberania do Estado de Jellinek – que desenvolve as ideias de Rudolf Von Ihering sobre a soberania como uma qualidade do poder do Estado perfeito –, é característica do Estado255, e não de um de seus elementos, sendo “soberania popular” e “governo soberano” expressões que imprecisamente buscam referência à soberania do Estado.

Ao se tomar a ideia do voluntarismo, derivada da Teoria da Autolimitação do Estado – também de Georg Jellinek e já estudada anteriormente256 –, compreende-se que os compromissos gerados e assumidos pelos Estados perante a sociedade internacional, no

253 MENEZES, Iure Pedroza. Os tratados internacionais e o direito interno dos Estados. In: Revista de

Direito Constitucional e Internacional, Ano 12, n. 48, jul./set. 2004, p. 315.

254 FERRAJOLI, Luigi. A soberania no mundo moderno. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 02-03. 255 Idem, ibidem, p. 33.

desenvolvimento natural de suas relações internacionais, são decorrência do exercício de sua soberania, em conformidade com o que consta no art. 78 da Carta da ONU257 e no art. 1º, I, da Constituição Federal brasileira de 1988258.

Assim, a soberania não é enfraquecida, mas afirmada em face da assunção de compromissos internacionais por parte do Estado, conforme o respaldo da concepção voluntarista. A expressão da soberania do Estado Democrático de Direito no plano internacional é, então, a capacidade de obrigar-se internacionalmente por sua própria vontade, com vistas à realização constitucional. Foi precisamente isto que ocorreu no caso da integração regional sul-americana259.

Nesse sentido, para garantir o argumento, basta considerar que se o direito internacional enfraquece a soberania por limitar a ação dos Estados, também o núcleo intangível de suas constituições o faz. Parece mais acertado considerar, tomando as similaridades de essência do direito das gentes e do direito natural, que ambos não são limitações e, sim, diretrizes de importância distinta para a condução do Poder Público nas atividades estatais260.

Entretanto, existem ainda negadores da soberania do Estado desde Léon Duguit, que entendia a “soberania nacional”, exercida pelo governo, como um conceito absoluto, pelo que não concebia a sua limitação em razão do compromisso perante outra soberania261.

Analisando a posição extremada de Duguit, Sahid Maluf considera que “a negação da soberania [...] só pode levar a um resultado claro: afirmar o reino da força”262. Corroborando este posicionamento e contrariando os negadores da soberania, a simples observação da relativa harmonia na sociedade internacional indica que o seu exercício por parte dos Estados é justamente o que tem construído a ordem jurídica e os organismos internacionais, bem como permitido uma convivência, em geral, pacífica desde o pós- Segunda Guerra Mundial.

O argumento final a desconstruir a tese dos negadores da soberania é o instrumento da denúncia, que se constitui em um meio legítimo de desvinculação do Estado em relação a

257 Ipsi litteris: “O sistema de tutela não será aplicado a territórios que se tenham tornado Membros das Nações

Unidas, cujas relações mútuas deverão basear-se no respeito ao princípio da igualdade soberana”.

258 In verbis: “A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do

Distrito Federal, constitui-se em Estado democrático de direito e tem como fundamentos: I – a soberania [...]”.

259 Ver infra, Capítulo 4.

260 GOMES, Eduardo Biacchi. A supranacionalidade e os blocos econômicos. In: Revista de Direito

Constitucional e Internacional, Ano 13, n. 53, out./dez.2005, p. 316.

261 DUGUIT, Léon. Soberania y Libertad. Madrid: Francisco Beltran, 1924, p. 175. 262 MALUF, Sahid. Teoria Geral do Estado. 26. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 35.

um compromisso internacional263, comprovando que a adesão a um tratado não é um ato definitivo.

A denúncia ou retirada, instrumento inserido no Direito Internacional Público pela Convenção de Viena de 1969, consiste em recurso legítimo disponível ao signatário de um tratado internacional que dele queira de desvincular, com todas as repercussões jurídicas decorrentes de seu ato264.

Vale salientar que a denúncia, em regra, só pode ser exercida em relação à totalidade do tratado, sendo, no entanto, admitido que o próprio tratado ou as partes estabeleçam solução diversa265. Ainda, só pode uma parte denunciar ou retirar-se de um tratado que preveja sua expressa possibilidade ou que de sua natureza seja deduzida tal possibilidade266. Por fim, a parte deverá notificar sua intenção de denúncia ou retirada com uma antecedência mínima de doze meses267.

Visto que as atividades jurídicas internacionais são, em geral, vertentes do cumprimento de objetivos constitucionais, caso uma determinada iniciativa internacional se desvirtue dos objetivos pré-estabelecidos no momento de celebração de seu respectivo tratado, pode o Estado utilizar-se da denúncia para se desvincular.

Fato é que alguns compromissos internacionais, referentes ao jus cogens268, não são passíveis de abandono por parte dos Estados. Entretanto, isto não chega a gerar problemas de maiores proporções, em razão de que tais compromissos são, na maioria dos Estados ocidentais, quase totalmente coincidentes com o núcleo intangível de suas constituições, que, tal qual o jus cogens, não podem ser modificados sem uma ruptura total da ordem político- jurídica. Essa essência constitucional inalcançável pelas reformas é composta eminentemente

263 REZEK, Francisco. Direito Internacional Público – Curso Elementar. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p.

108.

264 MENEZES, Celso Antônio Martins. A importância dos tratados e o ordenamento jurídico brasileiro. In:

Revista de Informação Legislativa, Ano 42, n. 166, abr./jun. 2005, p. 75.

265 Convenção de Viena de 1969, art. 44, § 1º. 266 Convenção de Viena de 1969, art. 56, § 1º. 267 Convenção de Viena de 1969, art. 56, § 2º.

268 A definição do jus cogens é encontrada dentro da ordem jurídica internacional na Convenção de Viena de

1969: “Artigo 53 – Tratado em conflito com uma Norma Imperativa de Direito Internacional Geral (jus cogens)

– É nulo um tratado que, no momento de sua conclusão, conflite com uma norma imperativa de Direito Internacional Geral. Para os fins da presente Convenção, uma norma imperativa de Direito Internacional Geral é uma norma aceita e reconhecida pela comunidade internacional do Estado como um todo, como norma da qual nenhuma derrogação é permitida e que só pode ser modificada por norma ulterior de Direito Internacional Geral da mesma natureza”.

por matérias referentes aos direitos humanos, abrigados, na atual ordem constitucional brasileira, sob a categoria de direitos fundamentais269.

No plano jurídico interno brasileiro, a soberania se manifesta desde o topo da Constituição Federal de 1988270. Não obstante à consideração que a vertente interna da soberania opera múltiplos desdobramentos políticos, jurídicos e institucionais, deve-se constatar que é com essa soberania que o Estado brasileiro deve realizar seu mister constitucional integracionista.

Deve-se levar em conta, ainda, que a realização da Constituição no atual contexto mundial, refletido na sociedade internacional, depende fortemente de iniciativas internacionais. Sendo assim, para a própria efetivação da autodeterminação dos povos é necessário que o Estado esteja apto a realizar os compromissos internacionais pertinentes, o que torna o voluntarismo um respaldo imprescindível.

Destarte, resta certificada a sua existência e o seu papel fundamental na construção do direito internacional e, em especial, do direito da integração regional, levando em conta o contexto latino-americano e a inserção brasileira a partir do compromisso constante do art. 4º, parágrafo único, da Constituição brasileira.