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INTRODUÇÃO 23 1 CAMINHOS DESTA PESQUISA

2 APRENDIZAGEM DIALÓGICA E INTELIGÊNCIA CULTURAL

2.2 INTELIGÊNCIA CULTURAL: BASES CONCEITUAIS E METODOLÓGICAS, EVIDÊNCIAS EM CONTEXTOS EDUCATIVOS

2.2.1 A inteligência humana na sociedade da informação

103 Para codificação, considerou-se que a redação das referências centrais está em espanhol, de modo que os termos usados foram inteligencia cultural e inteligencia/inteligentes. No Apêndice B, pode-se encontrar instrumento especificamente criado, pela autora, para captação dessas unidades nos livros analisados.

Retomando as definições dos princípios de aprendizagem dialógica, apresentadas no Quadro 2, da subseção anterior, entende-se que o princípio de inteligência cultural se refere ao uso da capacidade universal de linguagem e ação para aprender e demonstrar conhecimentos e habilidades de diferentes origens culturais; e que todas as pessoas podem usar habilidades acadêmicas e práticas, aprendidas em outros contextos, ao interagirem e se comunicarem com pessoas do novo contexto. Tais definições foram primariamente tecidas a partir de análise descritiva, a fim de se aproximar da aprendizagem dialógica, como marco conceitual em que se insere cada um de seus princípios.

Ao focalizar a inteligência cultural, em Compartiendo Palabras (FLECHA, 1997), verifica-se que esse princípio se encontra especificamente delineado, assim como cada um dos outros, em duas partes: em item da introdução e em capítulo especifico. No item 2 da introdução (p. 20-27), encontra-se a explicação teórica da inteligência cultural como também alguns dos exemplos de sua concretização na tertúlia literária dialógica da Escola de Pessoas Adultas de La Verneda de Sant Martí. No capítulo 2 (p. 65-84), são revelados elementos de reflexão, extraídos principalmente de relatos das experiências de participantes das tertúlias, organizados em oito segmentos: Muros antidialógicos: pessoais, culturais e sociais; Inteligência cultural: superando as viseiras da cultura acadêmica; Habermas dialoga com gente da tertúlia; Racionalidade dialógica. Poder dos argumentos frente ao argumento de poder; Linguagem dialógica; Consenso e dissenso; Aprendizagem instrumental; Aprendizagem emancipadora.

Em Aprendizaje Dialógico en la Sociedad de la Información, Aubert et al. (2008) desenvolvem o princípio de inteligência cultural no subitem 4.2 (p. 175-188), assim como fazem com os demais princípios em outros subitens, a fim de se componha o capítulo denominado “Os sete princípios da aprendizagem dialógica”, na Parte II desse livro. Em cada subitem dedicado a esses princípios, as autoras e o autor oferecem uma situação cotidiana, em contexto escolar, seguida por argumentos teóricos e evidências científicas. Nessa perspectiva, observa-se que a elaboração do conceito de inteligência cultural, nesse livro, se relaciona fundamentalmente a atuações que levam ao êxito educativo em contextos escolares e que permitem ampliar “aprendizagem e (...) solidariedade de meninos e meninas de diferentes partes do mundo” (AUBERT et al., 2008, p. 237).

Com base nos critérios de recorte para análise de conteúdo desses livros, adotados como referências fundamentais desta tese, possibilitou-se a obtenção de itens de significação relativos ao conceito de inteligência cultural. Na tabela a seguir, apresenta-se a frequência das unidades de registro e das unidades de contexto identificadas.

Tabela 1 – Distribuição de frequência de termos nos livros de referência Unidades de registro Compartiendo Palabras

Aprendizaje Dialógico en la Sociedad de la Información

Termos Parágrafos Termos Parágrafos

Inteligência cultural 13 11 10 7

Inteligên(cia-s/te-s) 20 *6 101 *17

Total 33 17 111 24

Fonte: Construída pela autora com base na análise dos livros Compartiendo Palabras (FLECHA, 1997, p. 20-27; p. 65-84) e Aprendizaje Dialógico en la Sociedad de la Información (AUBERT et al., 2008, p. 175-188).

*Nesta quantificação, foram desconsiderados os parágrafos que também mencionaram o termo

inteligencia cultural.

Em vista do resultado quantitativo geral, pode-se afirmar que houve evolução na abordagem do conceito de inteligência cultural, entre uma e outra obra. Ao mesmo tempo, observa-se que quantitativamente foi diminuída a menção ao termo “inteligência cultural”, ao passo que se aumentou a menção ao termo “inteligência”. Sendo assim, propõe-se caminhar para o adensamento da compreensão sobre inteligência cultural, buscando-se verificar por meio de análise qualitativa desses itens de significação: a relação deste conceito com outros conceitos de inteligência, os elementos considerados relevantes na constituição do conceito de inteligência cultural, e as referências básicas e as complementares que foram mencionadas.

De acordo com Flecha (1997), a inteligência cultural se refere à integração entre diferentes inteligências, como a prática e a acadêmica, e capacidades de linguagem e ação dos seres humanos, sendo que estas tornam possível se chegar a acordos em diferentes âmbitos sociais (FLECHA, 1997, p. 20). Nesse sentido, esse conceito visa contemplar a globalidade humana, considerando além das habilidades práticas e das acadêmicas, eventualmente de domínio pessoal, as habilidades comunicativas, as quais possibilitam o entendimento em torno de objetivos e de meios delineados para sua consecução coletiva.

Tomando as habilidades comunicativas como centrais, Flecha (1997) explica que a elaboração do conceito de inteligência cultural vem atender aos propósitos sociais e educativos da aprendizagem dialógica, de modo que se “contemple a pluralidade das dimensões das interações humanas e se baseie no diálogo igualitário” (FLECHA, 1997, p. 20, tradução nossa). Nesse sentido, permite-se considerar que a inteligência cultural transcenda a dimensão cognitiva tradicionalmente focalizada pelos estudos sobre a inteligência, ao se levar em conta que, por meio da linguagem, podem-se alcançar acordos em outros âmbitos, como os cognitivos, estéticos, éticos, por meio de interações entre pessoas e grupos diversos.

Buscando maior compreensão acerca do contexto em que essas interações são realizadas, torna-se possível identificar as influências do giro dialógico na constituição do conceito de inteligência cultural. Nessa elaboração, propõe-se que cultura e aprendizagem sejam compreendidas na mesma perspectiva de globalidade em que se considera a inteligência humana, e que a intersubjetividade é potencialmente transformadora de sujeitos e de sistemas. Em Compartiendo Palabras, Flecha (1997) afirma que:

As habilidades comunicativas são componentes importantes desta inteligência. Com elas se resolvem muitas operações que um ator solitário não conseguiria solucionar, com suas inteligências acadêmicas e práticas. Quando compramos uma máquina de lavar roupas ou introduzimos um computador em nossa empresa, poucas pessoas aprendem o funcionamento através do livro de instruções. A maioria pergunta ao responsável pela instalação qual é o programa de roupa branca ou como se usa o antivírus. A partir da perspectiva dialógica de inteligência cultural, as operações mentais próprias das inteligências acadêmicas e práticas devem ser analisadas em contextos comunicativos (FLECHA, 1997, p.21, tradução nossa).

Em trechos como este, o autor assinala que, a despeito das diferentes inteligências constituídas nos contextos de desenvolvimento individual, frequentemente se recorre à intersubjetividade para a resolução de problemas cotidianos. Nesse sentido, compreende-se que a aprendizagem humana ocorre em diversos contextos comunicativos, revelando-se que a educação é fenômeno amplo e não se realiza apenas em ambientes escolares e acadêmicos. Ao mesmo tempo, pode-se considerar que o conceito de cultura se relaciona a diversos âmbitos formativos, nos quais os seres humanos se movimentam e constituem seus diferentes modos de pensar, de sentir e de agir.

Nas tertúlias literárias dialógicas, descritas em Compartiendo Palabras (FLECHA, 1997), observa-se que são muitas as dificuldades de quem inicia ou retoma seus estudos na idade adulta, conforme os relatos apresentados nesse livro. No entanto, dadas as condições comunicativas buscadas pelo grupo, aos poucos se promove a superação dos limites de cada participante, haja vista que suas inteligências se reportam aos respectivos contextos formativos, conforme demonstrado no trecho a seguir.

Ao ouvir que esses romances eram “versos octossílabos de rimas assonantes alternadas”, Lola pediu uma explicação e logo, sem fazer muito caso, disse: muito

interessante. No dia seguinte, Goyo perguntou se sabia o que era os versos octossílabos e ela contestou com outra pergunta: “E tu, sabes cantá-los?” Assim, aprendeu como o “romance” era um texto muito diferente para ambos; ele o baseava em sua inteligência acadêmica e ela em sua inteligência prática. Mas os dois podiam desenvolver sua inteligência cultural, coletiva, e superar seus respectivos limites acadêmico e prático (FLECHA, 1997, p. 69, grifos do autor, tradução nossa).

Assim, torna-se perceptível que, por meio do diálogo em torno de textos literários entre pessoas que constituíram suas inteligências em diferentes contextos educativos e sociais, pode-se entrar em contato com outras formas de compreender e de interpretar o mundo. Gradativamente, passa-se a entender que os conteúdos se referem à mesma realidade social em que as pessoas se encontram. Assim, abre-se espaço para aprendizagem máxima, a partir das múltiplas interpretações que são oferecidas com base em argumentos e reflexões coletivas.

Remetendo-se ao livro Aprendizaje Dialógico en la Sociedad de la Información (AUBERT et al., 2008), podem-se encontrar dilemas contemporâneos apresentados aos contextos educativos, tais como a instituição escolar, conforme se apresenta a seguir:

(...) nossos centros educativos são cada vez mais multiculturais e estamos respondendo a esta multiculturalidade desde um modelo educativo que se corresponde exclusivamente com a cultura majoritária. Em troca, se reconhecemos a inteligência cultural de todos os meninos e as meninas, podemos acelerar muito suas aprendizagens incorporando o uso de todas as habilidades (AUBERT et al. 2008, p. 185, tradução nossa).

Dessa forma, as autoras e o autor salientam que desafios contextuais, como a multiculturalidade, demandam a criação de conhecimentos que efetivamente ofereçam referências às diferentes culturas presentes na escola, ao passo que apresentam a inteligência cultural de toda a comunidade como rico manancial para essa criação. Nessa proposta, resgatam a globalidade que reveste os conceitos de inteligência e de cultura, de modo integrado, superando o reducionismo que tradicionalmente vincula seus sentidos aos saberes da cultura acadêmica. Ao mesmo tempo, revelam que os saberes culturais da comunidade são fundamentais à educação escolar, conforme o trecho a seguir.

Necessitamos da inteligência cultural de pessoas da comunidade para aumentar as aprendizagens de nossos alunos e alunas e melhorar a convivência nas aulas, nos centros educativos e na relação destes com a comunidade. Se somente temos em conta os saberes acadêmicos e somente valorizamos estes conhecimentos nas pessoas que se relacionam com o alunado, estamos desaproveitando muitos recursos que são muito úteis para conectar com a diversidade atual de meninos e meninas e melhorar suas aprendizagens. Quando olhamos a comunidade a partir do conceito tradicional de inteligência, que se limita a reconhecer somente as habilidades e conhecimentos que adquiridos, como produto da escolarização, estamos segregando um bom número de pessoas que dispõem de outros saberes culturais que são imprescindíveis para melhorar a qualidade educativa na sociedade da informação (AUBERT et al., 2008, p. 175-176, tradução nossa).

Portanto, de acordo com Aubert et al. (2008), o conceito de inteligência cultural possibilita reconhecer a diversidade de saberes como potencial recurso para desencadear

mudanças nas estruturas escolares da Sociedade da Informação. Nessas estruturas, o conhecimento especializado de profissionais da educação vem sendo insuficiente para se promover efetiva aprendizagem para todo o alunado, frente à complexidade do capitalismo informacional. Ao se possibilitar interações entre pessoas com conhecimentos e habilidades diversas, geram-se as condições para a criação de alternativas pedagógicas que conduzam à aprendizagem instrumental, cuja responsabilidade ainda é atribuída à escola.