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3.2 A Intencionalidade da Obra: o pensamento de Umberto Eco

Em geral a arte contem porân ea ten ta estabelecer relações bem sin gulares com o público. Cada obra solicita um a conduta de seu espectador, cada jogo tem seu jogador. Quan do m e refiro ao fato de que cada obra solicita um tipo de ação de seu espectador, m e refiro tam bém à intencionalidade da obra. Segun do Eco, “en tre a intenção do autor e o propósito do intérprete existe a intenção do texto”68; o autor

comenta, em seu livro Interpretação e superinterpretação, que quando apresentou suas idéias n o livro Obra aberta: form a e in determ inação n as poéticas

contemporâneas, ele defendia o papel ativo do intérprete. Isso levou seus leitores a

en fatizarem apen as um lado da questão, que seria a liberdade de in terpretação do in divíduo, m as o autor alerta que a leitura aberta que defen de é um a ação provocada por um a obra, e que objetiva a sua in terpretação. Um berto Eco argum en ta con tra essa postura de “liberdade total”. O autor diz que poderíam os propor, com o alternativa à teoria da interpretação voltada para o leitor, o pensam ento contrário de que a ún ica in terpretação válida seria descobrir a in tenção origin al do autor. Entretanto, diante das dificuldades in eren tes às duas atitudes, Eco propõe um a terceira possibilidade que seria trabalhar a in terpretação a partir da intenção da obra. Além disso, existem elem entos n esse jogo que n ão podem os descon siderar com o as influências culturais, psicológicas e con textuais, apontadas n o Capítulo I desta dissertação, e que fazem com que essa “liberdade total” esteja con dicion ada ou subm etida tam bém a esses fatores. A proposta de Um berto Eco sobre a “intenção da obra” desloca m eus apon tam en tos an teriores sobre a prim azia do espectador no jogo in terpretativo e leva-me a buscar um equilíbrio entre espectador e obra.

A “in tencion alidade”69 da obra está relacionada à estrutura, ao m odo de

funcion am ento da obra e ao contexto histórico e social n o qual ela foi produzida, m as em bora carregue esses vestígios, tan to m ais variadas serão as interpretações,

quan to m ais espectadores, em épocas e lugares diferen tes, existirem . A intencionalidade da obra (in tentio operis) seria o fio condutor dessas interpretações e não um controle. Eco afirma que:

Desde que se con siga estabelecer algum tipo de relação, o critério n ão im porta. Depois que o m ecan ism o da an alogia se põe em m ovim en to, n ão há garan tias de que vá parar. A im agem , o con ceito, a verdade descoberta sob o véu da sem elhan ça, será vista, por sua vez, com o um sign o de outra tran sferên cia an alógica. Toda vez que a pessoa acha que descobriu um a sim ilaridade, esta sugere outra sim ilaridade, n um a sucessão in term in ável. Num un iverso dom in ado pela lógica da sim ilaridade (e da sim patia cósm ica), o in térprete tem o direito e o dever de suspeitar que aquilo que acreditava ser o sign ificado de um sign o seja de fato o sign o de um outro

significado. 70

Eco parece defen der um a postura de liberdade in terpretativa, ou seja, para se realizar um a leitura/interpretação n ão há critérios pré-estabelecidos ou n orm as a se seguir, desde que o espectador consiga tecer sua rede de relações com a obra.

Dizer que a in terpretação (en quan to característica básica da sem iótica) é poten cialm en te ilim itada n ão sign ifica que a in terpretação n ão ten ha objeto e que corra por con ta própria. Dizer que um texto poten cialm en te n ão tem fim n ão sign ifica que todo ato de interpretação possa ter um fin al feliz. 71

O autor levan ta a questão da in tencion alidade da obra e diz n ão haver critérios de certo ou errado para um a interpretação, porém , há, pelo m en os, critérios para as in terpretações ruin s com o no exem plo citado por ele sobre Jack, o

estripador72. Ele n os convida a im agin ar que o assassin o citado ten ha feito seus

crim es baseado em sua in terpretação do Ev an gelho Segun do São Lucas. Dessa form a, as teorias voltadas ao leitor/ espectador argum en tariam que foi um a interpretação despropositada, e a teoria con trária diria que o assassino em questão

70 ECO. Interpretação e superinterpretação, p. 55.

71 ECO. Interpretação e superinterpretação, p. 28.

é com pletam ente in sano. Eco term in a o irôn ico com en tário dizen do que m esm o simpatizando-se com as teorias voltadas ao leitor ele concordaria que Jack, o

Estripador precisava de cuidados m édicos. O autor afirm a que o exem plo dado

“prova que existe pelo m en os um caso em que é possível dizer que um a determinada interpretação é ruim”73.

No capítulo “Superinterpretan do textos”74, o autor ten ta m an ter um elo

entre a “intenção da obra” e a “intenção do leitor”75. Eco escreve:

É claro que estou ten tan do m an ter um elo dialético en tre a in ten tio operis e a in ten tio lectoris. O problem a é que, em bora talvez se saiba qual deve ser a “in ten ção do leitor”, parece m ais difícil defin ir abstratam en te a “inten ção do texto”. A in ten ção do texto n ão é revelada pela superfície textual. Ou, se for revelada, ela o é apen as n o sen tido da carta roubada. É preciso querer “vê-la”. Assim é possível falar da in ten ção do texto apen as em decorrên cia de um a leitura por parte do leitor. A in iciativa do leitor

consiste basicamente em fazer uma conjetura sobre a intenção do texto. 76

As afirm ações do autor vão ao encon tro das duas propostas levantadas n esta pesquisa: prim eiro, quando Eco fala que a in ten cion alidade da obra n ão é revelada pela sua superfície, enten do com o a postura do espectador que se m an tém preso apen as às características in iciais, superficiais ou m ateriais da obra, para jogar com a obra é preciso querer vê-la, desejar jogar. Em seguida o autor nos diz que só é possível falar em inten cion alidade da obra em conseqüên cia de um a in terpretação por parte do espectador. Isso está certam ente relacion ado à m in ha sugestão de pensar que a princípio n ão há um sentido único da obra e que isso se dá n a relação espectador versus obra. É claro que devem os ter cautela e aten ção ao tran spor algum as idéias de Um berto Eco, com relação à in terpretação e ao intérprete, para a análise da obra de arte visual, pois o autor concen tra seus estudos no cam po da literatura e da lin guagem verbal. Mas, acredito que a abordagem dessas idéias seja possível.

Com relação ao conceito de superin terpretação, Eco n ão defin e de form a didática essa n oção. O autor discute, através de exem plos, o que seria um a con duta de in terpretação ruim ou excessiva e que acabaria resultan do em um a superin terpretação, com o n o exem plo an terior sobre Jack, o estripador. Eco defen de que existem critérios para lim itar a in terpretação. O autor nos explica que os “seres humanos”77 pensam em termos de identidade e similaridade e que na vida

cotidian a geralm ente sabem os distinguir sim ilaridades que são im portan tes ou significativas, de sim ilaridades eventuais ou falsas: “Fazem os isso porque cada um de n ós in trojetou um fato in egável, ou seja, que, de um certo pon to de vista, todas as coisas têm relações de an alogia, contigüidade e sim ilaridade com todas as outras”78. O autor nos dá outro excelente exemplo que pode esclarecer mais ainda a

sua noção de interpretação e superinterpretação:

Podem os levar isso ao lim ite e afirm ar que há um a relação en tre o advérbio “en quanto” e o substan tivo “crocodilo” porque – pelo m en os – apareceram jun tos n a sen ten ça que acabei de pron un ciar. Mas a diferen ça en tre a in terpretação sã e a in terpretação paran óica está em recon hecer que essa relação é m ín im a e n ão, ao con trário, deduzir dessa relação m ín im a o m áxim o possível. O paran óico n ão é o in divíduo que percebe que “en quan to” e “crocodilo” aparecem curiosam en te n o m esm o con texto: o paran óico é o in divíduo que com eça a se pergun tar quais os m otivos m isteriosos que m e levaram a reun ir estas duas palavras em particular. O paran óico vê por baixo de m eu exem plo um segredo, ao qual estou

aludindo. 79

O autor explica que para ler o m un do e as coisas de m odo suspeito, é preciso criar algum tipo de m étodo obsessivo ou paran óico. Mas, adm ite que a suspeita em si n ão é um a conduta doen tia, pois o próprio autor escreve: “o leitor deve suspeitar de que cada linha esconde um outro significado secreto”80.

77 Optei por manter a expressão usada pelo autor em seu texto original.

78 ECO. Interpretação e superinterpretação, p. 57.

79 Idem.

Convite ao raciocínio |1978

Nesse sen tido, perceber que Waltercio Caldas utilizou um casco de tartaruga atravessado por um a barra de ferro, cujo título é Conv ite ao raciocínio, e a partir daí questionar por que o uso desses elem en tos específicos e não outros, traçar correlações com o título da obra, etc., é um a atitude de um “olhar que pensa”, que aceita o con vite da obra e joga com ela. Mas, question ar a qual espécie de tartaruga perten cia o casco e por que foi escolhida essa e n ão outra espécie, ou ainda, pergun tar por que um an im al macho e não um a fêmea (ou vice versa) seriam, segun do Eco, eu suponho, elem entos secundários que podem levar a um a superin terpretação, desviando a atenção, supervalorizan do elem en tos secundários e sem lançar n ovas luzes sobre a obra. Pode resultar ainda em um a in terpretação que se fecha em si mesma e não suscita outros olhares para a obra. Segundo Eco:

A superestim ação da im portân cia das pistas deve-se m uitas vezes à ten dên cia a se con siderarem os elem en tos m ais im ediatam en te aparen tes com o sign ificativos, en quan to o próprio fato de serem aparen tes deveria

Sobre superinterpretação o autor escreve também que:

Segun do que critério con cluim os que um a determ in ada in terpretação textual é um exem plo de superin terpretação? Pode-se objetar que, para defin ir um a m á in terpretação, é preciso ter critérios para defin ir um a boa interpretação.

Pen so ao con trário, que podem os aceitar um a espécie de prin cípio popperian o, segun do o qual, se n ão há regras que ajudem a defin ir quais são as “m elhores” in terpretações, existem ao m en os um a regra pra defin ir

quais são as “más”. 82

Em seus textos o autor en fatiza que é difícil dizer se um a in terpretação é boa ou não. Eco conclui que é possível estabelecer alguns lim ites ou critérios para determ in ar se um a in terpretação é ruim ou excessiva: “Certas in terpretações podem ser reconhecidas com o m alsucedidas porque são com o um a m ula, isto é, in capazes de produzir novas in terpretações ou por não poderem ser con fron tadas com a tradição de in terpretações an teriores”83. In terpreto essa afirm ação com o um

exem plo de um a interpretação que n ão suscita n ovos olhares sobre a obra, n ão produz n ovos jogos com a obra ou com outros n ovos espectadores, ela fecha o processo em si mesma.

Através de seus exem plos e argum en tos o autor n os m ostra o que seria um a con duta superinterpretativa e isso é suficien te para recon hecerm os que n ão é verdade que tudo serve. Eco coloca a superin terpretação com o um a ação in terpretativa que culm in a em um m au resultado. O autor en fatiza o lado negativo dessa ação. Com os apon tam en tos feitos por Richard Rorty e J on athan Culler, (no m esm o livro84), podem os pensar n a superin terpretação com o um a espécie de

excesso interpretativo, on de terem os, com o afirm a Eco, um a m aior probabilidade de m aus resultados, porém tam bém existirão bon s resultados. Um m au resultado é aquele já explicitado por Eco, e um bom resultado seria a possibilidade de

82 ECO. Interpretação e superinterpretação, p. 61.

83 ECO. Interpretação e superinterpretação, p. 177.

84 Em 1990, Umberto Eco foi convidado para ser o conferencista das Conferências Tanner e propôs como

tema “Interpretação e Superinterpretação”. Desse evento também participaram Richard Rorty e Jonathan Culler que debateram as propostas de Eco. As palestras dos participantes, bem como a réplica de Eco, podem ser lidas no livro Interpretação e Superinterpretação, São Paulo: Martins Fontes, 2001.

“esclarecer ligações ou im plicações ainda n ão percebidas ou sobre as quais ain da n ão se refletiu”85. A superinterpretação em si própria n ão seria um bom resultado,

com o argum enta Eco, m as poderia ter com o con seqüên cia o apon tam en to de outros cam inhos. Com isso, propon ho que o espectador tenha liberdade interpretativa (com o defen dido por Barthes), m as sua interpretação não é in depen den te da obra, ela tem um a relação de jogo com a obra, portan to está tam bém relacion ada com o que é suscitado pela obra. Desse em bate surgirão diversos jogos.

Sobre a superinterpretação no cam po das artes visuais, talvez seja importante con siderar que as in terpretações (e question am en tos) n ão são pertin en tes ou im pertin en tes em si m esm as, pois depen dem da obra em questão. Um a in terpretação é produtiva ou não sem pre em relação a um a obra específica. Eco coloca a superin terpretação de form a pejorativa, m as devem os n os lem brar que o autor se dedica ao cam po da literatura. Qual seria a relação en tre superin terpretação e in tencion alidade da obra den tro do cam po das artes visuais? Sugiro que pergun tas que são solicitadas pela obra m uitas vezes serão pertinen tes ou não, mas dependem da obra para serem geradas e uma pergunta aparentemente im pertin ente pode deflagrar outras pergun tas que con duziriam a um jogo interpretativo produtivo, possibilitando refletir sobre o objeto de arte. Dessa forma, a superinterpretação não possuiria apenas características negativas.

A escolha de Um berto Eco foi m otivada pela necessidade de an alisar em que m edida se relacion a a expectativa do espectador (suas in ten ções e in terpretações) e a in tencionalidade da obra. Os argumentos desse autor in dicaram a possibilidade de um a outra abordagem , diferente da m encionada n o Capítulo I onde considerei a prim azia do espectador n o jogo in terpretativo. H á, agora, o recon hecim ento da intencionalidade da obra e seu modo de funcionamento como elementos do jogo.

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