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O espectador pode ir além dos seus sen tidos n a apreen são da obra. No prim eiro m om en to usam os n ossos sen tidos, ou apenas algun s deles, para perceber a obra e, assim , travar com ela um “jogo de sen sações e percepções”, m as colocar a apreen são do objeto artístico ou a experiên cia artística apen as no n ível físico ou biológico seria sim plificar dem asiadam en te esse processo. H á um espaço e tem po próprios desse “jogo”, no qual o espectador estabelece estratégias de investigação e apreensão da obra.

Na abordagem de um a obra de arte, con tem plam os, observam os, sen tim os, experim en tam os, participam os e pen sam os, procurando um a con exão en tre as partes, buscan do um m otivo, um a sign ificação ou sen tido, um porquê n o qual tudo se relacione. O encontro com o objeto artístico é um a experiência sen sível porque lida com os n ossos sen tim en tos e as n ossas sen sações, m as tam bém é um a experiência racional, pois envolve nosso intelecto.

Na construção do objeto artístico, o autor lida com idéias, projetos, e tam bém acasos ou aciden tes, m as n ada que um artista coloque em sua obra pode ser con siderado gratuito pelo espectador. Devem os n os deixar guiar pela obra, nos orien tar através do todo, para en tão perceber as características principais e explorar, no âm bito da obra, todos os detalhes in ter-relacion ados. Dessa form a, gradualmente, a obra se revela e, à m edida que a percebem os, cada vez m ais, estabelecendo com ela esse jogo de diálogo, com eça a se con ectar a obra e o pensam ento do espectador, levado pela sua in tuição e o seu in telecto. Segundo Rudolph Arn heim , a apreen são do objeto artístico pelo ser hum an o consta de duas ações, dois processos com plem en tares en tre si: a intuição27 e o in telecto. Am bos

são processos cognitivos que atuam em conjunto, são os dois procedimentos de que dispõe a mente para a aquisição do conhecimento28.

27 Preferi manter a palavra “intuição”, por ser a usada por Arnheim em todo o seu texto, porém, quando o

autor se refere à intuição, entendo que é o sentir e a percepção sensível.

28 Para maiores informações sobre a percepção intuitiva e a análise intelectual, ver o capítulo: “A duplicidade

da mente: a intuição e o intelecto”. In: ARNHEIM. Intuição e intelecto na arte., onde o texto explica claramente esses dois processos.

Arn heim afirm a que a m en os que o sujeito ten ha apreendido in tuitivam en te o objeto, não se pode lidar in telectualm en te com ele. Pois, segun do o autor, o pensamento e a percepção não podem operar separadamente.

A in tuição é um a propriedade da percepção e está lim itada por ela porque, na cognição, só a percepção atua por processos de campo, então a intuição pertence à percepção. Mas, Arnheim n os ensin a que a percepção e o pen sam en to n ão são processos separados, portanto, a in tuição está presen te duran te todo o ato cogn itivo, independentem en te se tal ato é m ais perceptivo ou racion al. E dessa mesma forma o intelecto também vai atuar em todo o ato cognitivo.

Arn heim diz ain da que a in tuição não é fruto da im aginação. É um procedim ento sim ples, direto e objetivo. Em seu livro, In tuição e in telecto na arte, ele relata que a intuição é m ais confiável e precisa justam en te por essas características, e que é a concepção de uma mente inteligente. A dedução já envolve outros fatores extern os e con hecim en tos passados, o que daria um a m argem m aior de erro, devido a essa maior quantidade de informação.

O autor n os fala tam bém sobre a relação do ser hum ano com o m un do ao seu redor: “Quan do a situação de estím ulo é com plexa, indistinta ou am bígua, lutam os con scien tem en te por um a organização estável, que defin a cada parte e cada relação e estabeleça assim um a situação decisiva”29. No nosso cotidiano, essa

n ecessidade n ão é tão presente, (em com paração com situações de estím ulo complexas), pois tem os n ossa m em ória, n ossas experiências passadas, e basta um olhar para sabermos se algo é uma porta e se ela está aberta ou não. Essa percepção ocorre abaixo do nível da con sciên cia, trata-se de recolhim ento e reconhecim en to de dados. Na relação com o objeto de arte é n ecessário um olhar m ais aten to, “um exam e com pleto de todas as relações que constituem o todo, porque os com pon en tes de um a obra de arte n ão são sim ples rótulos de iden tificação”30. Um

objeto de arte m uitas vezes apresenta situações com plexas, in distin tas e am bíguas, que fogem das situações cotidianas. Esse exam e atento das características visuais con tribui para o en tendim ento com a obra. Não é acon selhável se ater

apen as nessas características in iciais. En tretanto, se tem os con sciên cia disso, essa con duta inicial pode levar a um alargam ento da visão do espectador, con duzindo-o a um maior entendimento com a obra. Nesse contexto, Arnheim afirma que:

O espectador explora as “qualidades” perceptivas de peso e ten são dirigida que caracterizam os vários com pon en tes da obra. O observador experim en ta a im agem com o um sistem a de forças que se com portam com o os elem en tos que con stituem qualquer cam po de forças, isto é, esforçam-se para chegar a um estado de equilíbrio. Essa con dição de equilíbrio é testada, avaliada e in teiram en te corrigida pela experiên cia

perceptiva direta. 31

O autor, em seu livro (op cit), defende a idéia de que o raciocínio se dá através da imagem, e afirma, tam bém , que a percepção e o pen sam en to precisam um do outro, atuam em cooperação e n ão são de form a algum a excluden tes com o m uitos ain da acreditam . “A percepção seria in útil sem o pen sam en to; este, sem a percepção, não teria nada sobre o que pensar”32.

O artista cria um “m un do”, oferecen do-o ao espectador e este atua com o um ativo exam in ador, envolvido em um jogo de sen sações e percepções. Esse “m undo” criado pelo artista, além de ser um a etapa em seu desen volvim en to artístico, torn a- se um a proposição para o outro. Um con vite ao espectador, no qual ele vai usar sua percepção e intelecto para estabelecer uma relação de sentido com a obra.

Quan do digo que a obra é um a proposta, um convite ao espectador, refiro- me tam bém ao fato de que n in guém con trola o m odo com o o espectador “usa” a obra. Um berto Eco nos explica que a recepção de um a obra depende de um código33 in dividual de leitura de cada um , e cada in divíduo vai agir de acordo com

esse “código in dividual”, o qual é construído socialm en te, culturalm en te e individualmente. Cada espectador vai agir e atuar sobre a obra de m an eiras

31 ARNHEIM. Intuição e intelecto na arte, p. 17.

32 ARNHEIM. Intuição e intelecto na arte, p. 141.

33 Preferi manter a palavra “código” por ser a usada por Eco no seu texto original, embora seja um pouco

rígido usar essa palavra no contexto de uma pesquisa que permeia a subjetividade de temas como a sensação e os sentidos. Ver: ECO, Umberto. Viagem na irrealidade cotidiana. 1984.

diferen tes, pois é certo que n ão podem os ign orar que existe a liberdade de perceber/receber essas obras de modo diferente conforme essa visão própria.

O jogo do diálogo entre o espectador e a obra pode durar um instan te, m in utos ou horas, vai depen der do sistem a de cada obra, da sua capacidade form al e estrutural para captar a percepção e a aten ção do espectador, m as depen de, tam bém , do desejo desse espectador, da sua von tade e disposição de se en volver com a obra.

Esse en ten dim en to com a obra só é possível desde que haja o desejo do espectador. A percepção possibilita o “desejar”, e o “desejar” é o que m ove a ação, a con duta de in terpretação. E a interpretação é a apreensão da obra de arte, é dotá-la de sen tido e construir o en ten dim en to. A m otivação é um processo in trín seco, sen do assim , a disposição para fruir um a obra depen de do espectador. A m otivação, o in teresse, o desejo, são operações in tern as do sujeito, a expectativa para fruir a obra já existe n o espectador (com o vim os n o capítulo I) e isso é um a porta aberta para o convite. É a en trada para a atuação do artista despertar o in teresse e o desejo do seu espectador, pois a obra de arte tem con dições ou possibilidades de ativar essa operação. O autor pode convidar, solicitar, seduzir o espectador através da sua poética, m as a aceitação do convite acontece n o espectador. A fruição é intransferível.

Em geral essa sedução acon tece prim eiro através do olhar do espectador. No caso específico das obras de arte, elas n ão ativam som en te a visão, e outros fatores ligados aos dem ais sentidos e ao intelecto tam bém são m uito im portan tes. Na arte con tem porân ea, por exem plo, o objeto artístico não poderia m ais ser an alisado somente em função do seu im pacto visual sobre o observador, ainda que n a m airia das vezes ele seja determ in an te. Mas, quan do pensam os n a n ossa relação com o m un do é o olhar que vem prim eiro a n ossa m ente e, de fato, a recepção se dá in icialm en te n o olhar do espectador. O olhar é a m aior fon te dos n ossos desejos e de nossa inquietude.

próprio do lugar”34. Pen so en tão que, o jogo seria o lugar on de acontece o processo

de in terpretação do objeto artístico ou da experiência artística. E on de esse jogo é possível? Sugiro que seja n o espectador, talvez n o seu olhar, porém , precisam os levar em con sideração duas coisas: Prim eiro, segun do Didi-H uberm an , é preciso um objeto adequado, ou seja, eficaz. A obra joga quando pode enredar, provocar, causar espan to ou surpresa, aparecer ou desaparecer, “porque pode de repente perder toda sua aura [...] e passar assim à in existência total”35. Quan do pode ser

olhada e pode olhar. E em segun do lugar, propon ho que só há jogo quando há desejo. É o desejo, a “expectativa do espectador”, que cria o jogo. É o espectador quem , respon den do a um convite do artista, cria o jogo, o lugar e a in quietação. A obra “assombra” – se for eficaz – , mas quem cria o “fantasma” é o espectador 36.

O olho captura, apreen de, m as é o “olhar” que pen sa, que recebe e interpreta. O olho não vai além da superfície, o olho só vê a superfície. Então, o que con tin ua ven do depois que o olho olha? O olho n ão m ergulha, n ão abre a fenda por on de eu posso entrar e olhar o outro e por on de esse outro pode m e olhar. O “algo” observado está aí, diante do olho, o olho olha, mas o fenômeno da percepção ocorre em outro lugar. Um lugar m ais próxim o da im agin ação do que do m un do visível. Esse lugar talvez seja o olhar do espectador. Pois, é no m om en to em que olham os além do visível que o que vem os n os olha. Talvez só haja o que ver para além da imagem.

Proponho pen sar que a obra de arte possibilita um diálogo, e n esse “jogo do diálogo”, o espectador pode ter várias atitudes. Segun do Didi-Huberman, um a prim eira atitude seria a de “perm anecer aquém da cisão aberta pelo que nos olha n o que vem os. Atitude equivalente a preten der ater-se ao que é visto”37. In terpreto

essa afirm ação do autor com o um a con duta do espectador em n ão penetrar n o

34 DIDI-HUBERMAN. O que vemos o que nos olha, p. 95.

35 DIDI-HUBERMAN. O que vemos o que nos olha, p. 81.

36 O uso de termos como “assombrar” ou “fantasma” estão presentes em outros textos de Didi-Huberman,

onde o autor utiliza a metáfora de uma “casa” para explicitar relações entre o olhar e o objeto. Na p. 19 desta dissertação Francisco Mora também se utiliza da expressão “fantasma” para afirmar que determinadas percepções ou construções do espectador existem apenas em sua mente. Portanto, se a obra for eficaz ela terá condições de deflagrar o jogo (assombrar), mas a interpretação (fantasma) quem cria é o espectador.

objeto, ficar abaixo do convite da obra, lim itan do-se apen as à sua percepção, reduzindo o diálogo à materialidade do objeto.

É acreditar - digo bem: acreditar - que todo o resto não mais nos olharia. É decidir, dian te de um túm ulo, perm an ecer em seu volum e en quan to tal, o

volum e v isív el, e postular o resto com o in existen te, rejeitar o resto ao

domínio de uma invisibilidade sem nome.38

Enten do que é a atitude do espectador que se m an tém aquém da cisão, que se recusa ao jogo, ou seja: eu olho, m as n ão vejo, pois não há n ada a buscar ali. Dian te disso m e pergun to: E o olhar do espectador dian te da obra? O que esse olhar busca? Não seria a “obra em si” e não apenas a sua imagem?

Quan do m e refiro a “obra em si”, preten do dizer que é a in terpretação alcançada por nós, a significação e o sentido que damos a ela. Reduzir a obra a uma m era descrição form al do objeto n ão sign ifica dotá-la de sentido. A obra possui um a im aterialidade, ineren te a ela porque um quadro, por exem plo, n ão é apen as tin ta, pigm en to e tela. Ele carrega consigo um a carga sim bólica e forças que atuam sobre ele fazendo com que esse objeto não seja apenas a im agem que se percebe dele, m as tam bém a in tencion alidade da obra, o sen tido que dam os a ela e n ão apen as tinta sobre tela. Os sen tidos do corpo n os dão a percepção de coisas materiais, existe a obra e você a percebe e recebe como tal, ou seja, algo que existe e está n o m un do. En tretan to, existe algo que vai além dessa m aterialidade, algo situado en tre a obra e o espectador, entre o que vem os e o que nos olha. Tan to o homem quanto a obra de arte possuem uma imaterialidade que lhes é inerente e faz parte de sua n atureza. Atentar, por exem plo, para a obra Garrafas com rolha, de Waltercio Caldas, que pode nos perm itir refletir sobre essa am bigüidade en tre o material e o imaterial.

Garrafa com rolhas |1975

Quan do Caldas apresenta Garrafas com rolha, ele provoca o olhar do espectador subvertendo o uso e o sentido dos objetos. O artista propõe para o espectador situações que questionam suas convicções visuais. Um jogo entre a obra e o n osso olhar. O objeto artístico atrai o olhar em sua busca por significados. Ao m esm o tem po, é oferecido ao intelecto relações diversas, que só fazem aum entar a perplexidade. Com poucos elem en tos, Caldas con segue por em m ovim en to um a cadeia de associações que tiram con tin uam ente o espectador do seu lugar e o deixam duvidar de sua própria percepção. O artista joga com a nossa capacidade de perceber e in terpretar. Ao descrever a obra, poderíam os dizer que é com posta por duas garrafas bran cas iguais, am bas fechadas com rolhas, e há entre elas, um a terceira rolha apoiada en tre as duas garrafas, localizada um pouco abaixo do gargalo. Mas, a obra é apenas isso? In terpretar um a obra de arte n ão con siste apen as em descrever a obra, m as con struir o seu sen tido. Sugiro que in terpretar n ão é apen as recon hecer os elem en tos que com põem a obra, pois isso corresponderia apenas a sua descrição, ou melhor, apenas a uma parte do processo.

As obras de Waltercio Caldas veiculam um grande núm ero de in form ações e possibilidades, a despeito de sua aparen te sim plicidade e quan tidade de elem en tos. Contudo, a autora Martin e J oly n os alerta que a descrição é um a etapa im portan te e delicada, pois ao descrever a obra o espectador passa do cam po visual para o campo verbal. “A verbalização da mensagem visual manifesta processos de escolhas perceptivas e de recon hecim en to que presidem sua interpretação. Essa passagem do “percebido” ao “nomeado”, essa transposição da fronteira que separa o visual do verbal é determ in an te n os dois sen tidos”39. É a tran sform ação das percepções

visuais em linguagem verbal, marcadas por escolhas feitas pelo espectador.

Dian te disso proponho que a descrição possa ser um pon to de partida n a relação com a obra, um dos cam in hos para se estabelecer um jogo com o objeto. Esse estreitam en to pode servir com o pon te para pen etrar m ais adian te, m as sugiro pensar que isso seria possível caso se ten ha con sciência dessa atitude. A descrição do objeto não é a “obra em si”, m as pode fun cionar com o um ponto de partida para o jogo.

De acordo com Didi-H uberm an , um a segun da atitude do espectador diante do objeto de arte con sistiria em superar tan to o que vem os quan to o que n os olha. Um desejo de se conduzir para além da cisão, fazen do da experiên cia do olhar um a experiência de crença: “Ver é crer”.

Essa segun da atitude con siste portan to em fazer da experiên cia do ver um

exercício da cren ça: um a verdade que não é n em rasa n em profun da, m as

que se dá en quanto verdade superlativa e in vocan te, etérea m as autoritária. É um a vitória obsession al - igualm en te m iserável, m as de form a m ais desviada - da lin guagem sobre o olhar; é a afirm ação, con den sada em dogm a, de que aí n ão há n em um volum e apen as, nem um

puro processo de esvaziamento, mas “algo de Outro”. 40

Um desejo de se conduzir para acim a da obra. O autor com en ta que essa segun da atitude teria, assim com o a prim eira, a n egação do “cheio”, ou seja, a

Mas, essa segunda atitude é tam bém outra recusa dian te da obra, que continua a n os olhar, é “a outra face da m oeda”41. É o espectador cín ico, que se recusa a ver a

“obra em si” e lim ita a sua percepção - assim com o a in terpretação - ao nível do visível e do tangível.

Relacionei o pensam ento de Didi-Huberman, acerca do olhar além da cisão com a questão da superinterpretação, apresentada por Um berto Eco. Antes de discorrer sobre o conceito de “Superinterpretação”, devem os m en cionar o con ceito de “Obra aberta”. Em seu livro Obra aberta: form a e indeterm inação nas poéticas

contemporâneas, Eco defen de o papel ativo do leitor n a in terpretação dos textos

dotados de valor estético. O conceito de “Obra aberta”, esten dido ao cam po das artes plásticas, revela a idéia da necessidade de in teração entre o autor, espectador e obra. “A ‘Obra aberta’ se iden tifica com a ‘abertura de prim eiro grau’ pois rem ete à polissem ia, à am bigüidade, à m ultiplicidade de leituras e à riqueza de sentido”42.

Essa interação não está restrita somente à arte participacionista, “no decorrer desse século [século XX], verifica-se um deslocam en to das fun ções instauradoras (a poética do artista) para as funções da sen sibilidade receptora (estética)”43.

Atualmente, percebem os que esse processo contin ua, am pliando cada vez mais os lim ites da percepção e in terpretação do objeto artístico. A idéia de “Obra aberta” pode levantar a questão de um caráter in acabado da obra, m as isso n ão sign ifica um a postura pouco in teressada do artista. Ao con trário, pois está con tida a idéia de

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