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Nos capítulos anteriores falam os sobre o un iverso do sen tir e da percepção; a singularidade de cada percepção, de cada olhar do espectador sobre a obra; as diferen tes atitudes e olhares que o espectador pode ter no jogo com a obra e, tam bém , sobre as teorias de Barthes a respeito da relação en tre autor, espectador e obra, e o pensamento de Arnheim acerca da intuição e do intelecto na apreensão da obra. Falam os ain da do pen sam en to de Um berto Eco sobre in terpretação, superin terpretação e a “intenção da obra”102 e da in terpretação da obra de arte

segundo a an álise de Martin e J oly. Neste capítulo apresen to m inhas leituras de algum as obras de Waltercio Caldas. É im portante ressaltar que adoto um a vertente predom in an tem en te poética e lírica, e n ão um a verten te exclusivam en te form alista e histórica, ou herm en êutica. Em algum as obras n ão havia nenhum conhecim en to anterior referente à produção da mesma, sendo assim , busquei um a relação m ais descompromissada onde priorizei o prazer do jogo e o livre uso da obra, lim itada apenas pelas minhas próprias percepções e conhecimento.

Ao ler O que v em os o que nos olha (op.cit.), os textos de Didi-Huberman me inspiraram um n ovo olhar sobre determ in adas obras de Waltercio Caldas, aquelas on de o vazio e a ausência são elem en tos presentes. Quan do olho n ovam ente, por exemplo, a obra Vidro, álcool, n ão m ais vejo a escultura. Percebo a in sistên cia dos vazios que propõem um jogo de con tradição en tre o cheio e o vazio, ausên cia e presença. O espaço é colocado visualmente ao espectador. E quando permaneço um pouco m ais diante da obra, sou surpreen dida por um objeto que iron icam ente se revela através do “nada”. O álcool e o vidro são m ateriais que lidam com a transparência ou ainda com uma ausência.

Vidro, ácool |1994

Em um m ovim en to paradoxal, a im agem que in quieta o m eu olhar, existe n a ten são en tre os opostos: ausência/ presen ça, vazio/ cheio, transparência/opacidade. O objeto incorpora o espaço, n o qual está in serido, com o elem ento de sua própria existência, ou seja, o “ar” n ão está som en te em volta do objeto, faz parte da obra, circula, envolve, trespassa a obra. In staura-se um cam po on de esses opostos estão in terligados, se aproxim am e se distan ciam tecen do relações en tre eles (os elementos da obra) e destes com o espectador.

Essas in stân cias estão presen tes in tern am en te n a obra (intencionalidade da obra) e o choque produzido por elas só encon tra eco n o espectador. Waltercio cria obras que podem ser atravessadas pelo olhar, com vários graus de tran sparência. Em m in ha leitura doto a obra de sen tido, aceito seu convite, jogo, m e deixo ren der pelo objeto, vejo beleza, poesia e leveza no “nada” que a obra me oferta. As palavras do autor ecoam em m im : “Quan do escrevo ‘escultura’ o que quero realm en te dizer é ‘o ar’. Quan do escrevo ‘o ar’ o que quero dizer é ‘corpo’. Quando escrevo ‘a pele’ o que quero dizer é ‘presen ça’ ”103. Meu olhar circula a obra, pen etra, adentra a

m atéria rarefeita dos objetos. A obra se confun de, torn a-se o próprio ar, são “instantes escultóricos”104, objetos que convidam o olhar a percorrê-los por entre os

vazios que os atravessam . O espaço é incorporado pela obra e reconstruído pela percepção do espectador.

Suporte para a invisível presen ça da ausên cia, n a obra de Waltercio é secundário aquilo que caracteriza a escultura, ou seja, m atéria, form a e escala. Quan do ele diz escultura, quer dizer o ar. Waltercio tran scen de o ato escultórico. Sua un idade de trabalho é outra, se localiza em outro lugar, en tre a m aterialidade e o im aterial. É o vazio, a ausên cia, esse “entre” as coisas... E é n esse m esm o lugar que o espectador vai criar suas redes de relação com a obra. A produção artística de Waltercio Caldas existe n o espaço e n o tem po com o um desafio ou convite ao espectador. Existindo pelo paradoxo de oposições, assum in do m últiplas faces, revelando-se e ocultando-se a cada lance, buscando novos equilíbrios e oferecen do m últiplas possibilidades. Suas esculturas, objetos e instalações convidam a um a reflexão silenciosa onde a obra exige o jogo íntimo da apreensão de cada indivíduo.

Duplo sem título |1989

A obra existe n o m undo en quan to objeto. Um a escultura pode ser apen as vidro ou m etal, e o corpo percebe esse objeto em con form idade com o estím ulo, ou seja, percebe o vidro e o m etal, m as a interpretação n ão se restrin ge a sensação e um a escultura n ão é apen as o m aterial do qual é feita, ela carrega tam bém a significação que damos a ela.

Enten do que Caldas busca n ovas form as de expressão e procura articular ao seu trabalho tanto a percepção e sensorialidade do seu espectador quanto seu in telecto. Com suas esculturas, instalações ou objetos, o artista prom ove um a ruptura com o conceito tradicional de escultura105 que pressupõe um m on um ento,

verticalidade, m arco, fixação a um local. Nega o princípio da escultura que supõe volum e sólido, perm anen te e im utável. H á tam bém um rom pim en to com o próprio material da escultura. No lugar do bronze e da pedra nobre, Caldas usa o ferro, aço, vidro, plástico e outros m ateriais in dustrializados passan do a explorar outras possibilidades com esses m ateriais. Nesse sen tido a obra de Waltercio Caldas é m ediadora de n ovos hábitos perceptivos porque rom pe com esses conceitos pré- estabelecidos. O artista consegue êxito em suas propostas, a partir do momento que apresenta algo que seduz e joga com os sen tidos e a percepção do seu espectador obten do com o resultado sua atenção e interesse. A arte de Waltercio Caldas cham a a atenção justamente por causa de um estranhamento. Desse jogo entre a leveza e o peso, o equilíbrio e o desequilíbrio, o efêm ero e o frágil con trapondo-se com o resistente e o durável, pode-se dizer que, entre os artistas plásticos, existem aqueles cujo trabalho n ão é n ecessariam ente produtor de m en sagem , m as é certam ente produtor de sentido. Experiências artísticas dessa natureza geram um aum en to qualitativo n o horizonte de expectativas dos espectadores dian te de um a obra de arte – adm iração, choque, en tusiasm o, curiosidade, dúvida, espan to, frustração, etc. E se não há enten dim en to a obra falha com o proposta? Sugiro que não, ela ainda existe como possibilidade, pois existem diversos olhares, em tempos, espaços e contextos diferen tes. E a obra está sem pre aberta ao diálogo. Além disso, a experiência pode ser considerada legítima e válida como contato com a obra.

Muitas vezes um a obra de arte m e provoca um a sen sação tão ún ica, sin gular e poética que sou obrigada, m esm o após estudos, explicações ou conhecim en to a apenas observá-la com um a feliz adm iração. E sim plesm en te resum ir a in terpretação a um estado de en cantam en to. Esse tam bém pode ser um dos patam ares de com preen são e sensibilidade com um a obra de arte, ela chegar a nos tocar tão profundamente de modo a ultrapassar as fronteiras da linguagem verbal e reduzir-n os a um a m era exclam ação de gozo visual. É deixar-nos tran scen der. E n essa m in ha experiência com as obras de Caldas chego à conclusão de que o texto de Didi-Huberm an, assim com o o depoim ento do artista, não m e levaram a um caminho oposto do meu primeiro jogo com a obra, ao contrário, todo conhecimento que obtive m e rem eteu n ovam ente à obra. Talvez a única utilidade desse tipo de in form ação, (teórica e crítica sobre o objeto ou sobre o autor), seja o fato de que às vezes fornece um pon to de partida para a interpretação, um a orien tação ou idéia, em torn o daquilo que as percepções do espectador sobre a obra podem reun ir. Na m in ha leitura a expectativa se revela m ais um a vez e o m eu olhar in quieto e pensante, vira e revira a obra até o momento em que ela me abre, eu a olho e ela me olha, adentro a cisão e a obra torna-se plena de sentido.

Um a obra a ser fruída quer dizer tam bém um a situação determ inada n o tem po e n o espaço. “O espectador en tra n o espaço in tern o da obra e lhe é apresentado um conjunto de condições em vez de um objeto acabado”106. É a rede

de relações. O artista leva o espectador a sen tir, in tuir, in terpretar, crian do con dições para a interpretação e a atuação do espectador que age na con strução dessa rede de relações. A experiência sen sível é um procedim en to n o qual o espectador faz e atua sem saber previam ente o que se deve fazer e com o fazer, é um a experiência de descobrim en to on de o cam in ho e a form a de atuação é in ven tada aos poucos n o decorrer m esm o da fruição. O espectador cria diversos m odos próprios de abordagem da obra de arte. Mas, cada obra tem sua in tencionalidade, com o já m encionado por Eco. Cada obra solicita um tipo de percepção, de reação, de recepção do espectador. Dian te de um trabalho ou de outro as recepções e as percepções vão ser diferen tes. Quan do o artista faz um a perform ance, por exem plo, ele solicita do público algo diferente de um a pin tura ou de um objeto. Cada prática artística tem sua especificidade, cada obra solicita um tipo de percepção/ recepção do seu espectador. Existem artistas que querem perturbar o público, outros querem agradá-lo, chocá-lo, desaliená-lo, diverti-lo. Cada artista tem sua in ten ção, seu objetivo e cada obra têm sua intencion alidade. Mas o espectador vai, sem pre, em um a situação ou outra, usar a percepção para tecer sua com preen são a partir do sen tir, das sensações, do seu in telecto e do seu con hecim en to, dotan do a obra de sentido con form e suas vivências, m em órias, afetos, juízos pessoais e tudo aquilo que faz parte de sua in dividualidade. No objeto de arte surge, para cada espectador, um novo objeto, de acordo com as experiências receptivas de cada um.

O jardim instantâneo |1989

Quan do Waltercio Caldas oferece ao público a obra O jardim instantâneo é diferen te do que ele propõe em seus livros-objeto, por exem plo. As form as e cores dessa obra con duzem a um estado im ediato de sin estesia, o espectador se sen te im pelido a vivenciar sen sações ópticas e táteis. No processo de fruição, percebo a obra e seu un iverso inusitado, os quais convocam o espectador a pen etrar em seu território. A obra prom ete um a n ova experiência se entram os no m undo dela. Nesse jogo n ão há um objetivo final, e tam bém não sin to que seja prioridade falar sobre o sen tido que dou a essa obra. Sin to que ao ten tar verbalizar essa percepção, n ão con sigo articular “a prim eira em oção” a ela. “Só depois, já afastado, de n ovo distanciado, poderei restituir às palavras a m em ória desse encon tro. E estas, in corporando o sen tido da experiên cia, já n ão serão as m esm as”107. Quais palavras

seriam equivalentes a forte sensação que sinto ao olhar as belas cores desse jardim? Com o posso in terpretá-lo a partir das palavras? Com o escrever, ler ou falar sobre ele? Com o tran sportar o visual para o verbal sem perda substan cial? Mas, en tre o

As cores de O jardim instantâneo extravasam os lim ites em que o artista as encerrou. Quen tes e pulsan tes, em con trapon to com o verde do parque, criam um a am biência que convida seu espectador. No lim ite, inquieta: ao m esm o tem po que seduz, en coraja e provoca, tam bém detém , in cita à vigilância. Tan to o verm elho quan to o am arelo m e rem etem a alerta, aviso, o que pode parecer con traditório, pois ao invés de proibir, a obra me convida, e quando considero esse convite, o jogo diz respeito à tran sgressão desses avisos, um a en trega ao desconhecido. No cen tro dessa am biên cia outro objeto se im põe: as escadas que levam a nen hum lugar. Ou levam? Elo das idas e vindas entre a obra e o espectador, um movimento infinito. O sim bolism o da ascensão está presen te, rem ete a subida, progresso, um a ligação en tre o céu e a terra, en tre o espectador e a obra. A poética sutil do artista se revela até no título da obra. A palavra jardim n os con duz a um a am biência im aginária de cores e beleza e, com poucos elem en tos – com o é sua característica – , Caldas nos oferece num instante rápido e instantâneo um belo jardim de possibilidades.

Qual seria a intenção de Caldas ao propor tal obra? Meu ponto de partida é a própria obra, pois não tenho conhecimento do que inspirou o artista ou qual é a sua proposta n esse caso específico. J ogo a partir das m in has próprias referên cias, crian do para a obra um a lin guagem que pode servir para revelá-la, ou n ão. Crio sentidos a partir de outras fontes, e só posso confiar no meu próprio senso do que é certo ou errado nesse diálogo com a obra. Pen so que essa obra solicita do seu espectador um a ação con tem plativa, m as tam bém um a ação corporal e direta com possibilidades táteis e cinestésicas. O jardim instantâneo não se caracteriza apen as pela con tem platividade, n ão se lim ita a isso, é algo que solicita perm an en tem ente um a troca com o espectador. É um desven dar da obra pelo espectador que através do seu com portam en to estabelece relações perceptivas. Com O jardim instantâneo Caldas propõe a incorporação do en torn o ao espaço da obra e ao espaço produzido por ela e pelo espectador. Subverten do a lógica da cadeia de transm issão sugerida por Um berto Eco (tran sm issor-mensagem-receptador108), o artista favorece a ação

108 De acordo com Umberto Eco, o processo de emissão e recepção da mensagem acontece da seguinte forma:

“a cadeia comunicativa pressupõe uma Fonte (ou Emissor) que, por meio de um transmissor, emite um Sinal através de um Canal. No fim do Canal, o Sinal, através de um Receptor, é transformado em Mensagem para uso do destinatário. Essa cadeia normal de comunicação prevê obviamente a presença de um Ruído ao longo do Canal de modo que a Mensagem deve ser redundada para que a informação seja transmitida de modo

do espectador com o tran sm issor de sua própria m ensagem , porque m istura obra e espectador num m esm o espaço, tem po e lugar. Com essa proposta, o artista coloca o espectador com o elem en to da própria obra. Aqui o ato do artista denota algum as sem elhanças com o que ocorre nos Environments, com o a caracterização cen ográfica e o favorecim en to da participação do espectador em um jogo no qual ele usa toda sua percepção em uma relação prazerosa e sensual com a obra.

É um jogo in stituidor de lugar, que en volve o corpo, prioritariam en te. [...] Muitas vezes, quem critica a arte con tem porân ea n ão en ten de isso. O corpo, preso e em butido n a espessura de si m esm o, é espesso por en carn ar a in stân cia e o lugar de con tato de um in terior sem pre m ais problem ático e de um horizon te am plo e in fin ito. Talvez as pulsões

estejam fora e as razões ou configurações culturais dentro. 109

Com essa proposição o espectador é solicitado, convidado a in teragir com o objeto artístico. Isso significa que o espectador terá que se valer de alguns recursos sen soriais e perceptivos para realizar seu jogo com essa obra. Portan to, O jardim

instantâneo está aberto a leituras e prazeres diversos, n ão será apen as

con tem plado, m as con struído pelo espectador a partir da sua percepção, do seu sen tir, do seu corpo, e tam bém do seu in telecto. Essa idéia da ação do espectador n a con strução da obra rem ete ao conceito de “Obra Aberta”. A obra apresenta-se inacabada, “aberta” a intervenção do seu intérprete.

Nesse con texto faria sentido apen as observar “a um a distância segura” O

jardim instantâneo? Apen as con tem plá-lo? Nessa situação a obra seria um a

carcaça vazia, um corpo sem alm a cuja vida foi retirada. Poderíam os falar em esvaziamento de sentido, pois não houve continuidade na intencionalidade da obra. In terpreto a proposta dessa obra com o um a interação do espectador com o objeto de arte, o indivíduo agin do livrem en te sobre a obra, o livre uso da obra, com o defendido por Barthes. A relação de autor como transmissor, obra como mensagem

e espectador com o receptador é quebrada a partir do m om en to em que o espectador dá vida e sen tido à obra de arte ao “jogá-la” e in terpretá-la de acordo com a sua própria visão de m un do. O jardim instantâneo é barthesiano por excelência porque decreta a m orte do seu autor e restitui o lugar do espectador com o parte essencial da sua existência. Nesse jogo o espectador sen te, percebe, pensa a obra e se torna parte da mesma.

Outra obra de Waltercio Caldas que tam bém se caracteriza por esse prin cípio de criação de um a am biência é Escultura para o R io. A obra se constitui em dois “caules”, ligeiram en te inclin ados, feitos em pedra e concreto, com dim en são de 10 0 0 x 10 0 0 x 60 0 cm e que são a contin uação do calçam en to da Avenida Beira-Mar no centro da cidade do Rio de Janeiro.

No processo de fruição, percebo um apelo visual que solicita o espectador a perm an ecer por m ais tem po que o habitual na fruição do objeto artístico. É diferen te das im agens que vem os n o n osso cotidian o que já n ão têm m ais esse poder de sedução, porque foram tão assim iladas pelo n osso sistem a perceptivo que n ão têm m ais a con dição de despertar a nossa atenção. Vem os as pedras portuguesas do calçam en to todos os dias, aquilo já n ão n os desperta, n ão nos solicita, m as no m om en to em que a arte en tra em cen a e o artista faz com que o chão se rodopie em direção ao céu, essa im agem cria relevo, se despren de do cotidian o e im pregna n ossa retin a e n ossa percepção. Aquilo n os atrai, n os in triga, n isso reside o poder de desalienação e atração que o objeto de arte exerce sobre nós, espectadores.

Essa obra é, a m eu ver, m ais do que “escultura” com o o próprio artista a batizou. Ela é tam bém “am biência”, pois cria um n ovo am bien te den tro do am bien te urban o, onde espectador e obra co-existem n um dado espaço, n um dado m om en to. Situada em um encon tro de ruas, a obra acaba por criar um “lugar”, in stitui, estabelece outro lugar, dem arcando um território de sen tidos ao erigir duas hastes que usam a calçada da cidade. As form as atraem , brin cam com os sen tidos do seu espectador e n essa relação com o sujeito as duas hastes se completam. As diferentes posições do olhar do espectador proporcionam diferentes percepções da m esm a im agem ; ela se torna m últipla. Renova-se e transform a-se a cada novo olhar do espectador, con form e a posição do sujeito n o espaço. Múltiplos olhares, imagens e interpretações.

O jardim instantâneo e Escultura para o R io solicitam de seu espectador

atitudes diferen tes do que obras como Tubo de ferro, copo de leite ou O livro

Velázquez. Com o já m encionei anteriorm en te, cada obra solicita um a

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