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3.3 A interpretação do Objeto de Arte por Martine Joly

Propor a in terpretação de um objeto artístico pode gerar question am en tos diversos. A autora Martin e J oly n os diz que é preciso levar em consideração que, m uitas vezes, um a im agem é tão cheia de detalhes e possíveis significações que n ão se apreen de a obra com a prim eira percepção, porque observam os prim eiro o que já conhecem os. Nesse sen tido, para com preen der m elhor o objeto artístico, tan to sua especificidade quan to o sen tido que pode propiciar, é necessário que o espectador faça um esforço mínimo de análise.

Martine J oly relata em seu livro, Introdução à an álise da imagem, três posições diferen tes com relação à in terpretação. Prim eiro um a posição de “leitura n atural” da obra de arte, que devido à “sem elhança” com o m odelo real, seria facilm ente recon hecida e, portan to com preendida, ou seja, in terpretada. Não haveria análise ou reflexão sobre o objeto artístico, uma vez que a leitura86 e fruição

da obra acon teceriam de form a n atural em virtude dessa sem elhança existente en tre a obra e o objeto real. Essa sem elhan ça seria rapidam en te captada pela percepção e com o conseqüên cia “natural” haveria o recon hecim ento e a in terpretação da obra. Segun do a autora, isso se susten taria m ais apropriadam ente na fruição de obras figurativas, apesar de ser questionável.

Assim como Eco, a autora menciona em seus textos que a percepção humana age com base em processos de an alogia, n os princípios de sem elhança e dessemelhança. Dessa form a ocorre o recon hecim ento de determ in ados aspectos da obra e, por isso, talvez, se baseie a afirm ação dessa possível “leitura n atural”, na qual a in terpretação/ com preensão resultaria desse recon hecim ento im ediato de certos aspectos. Contudo, isso seria lim itar a in terpretação de um a obra de arte à superficialidade do recon hecim ento de aspectos form ais, desprezan do seus aspectos icon ológicos, e tam bém reduzin do a produção da obra de arte à m era reprodução da natureza. E quan to às obras n ão figurativas? Segundo a autora, outro erro seria creditar essa interpretação a um a “un iversalidade efetiva da

86 Martine Joly, assim como Roland Barthes, utiliza a palavra leitura e leitor ao se referir, respectivamente, à

interpretação e ao sujeito que interpreta. Optei por manter a palavra espectador em meu texto por entender que ela é mais abrangente e adequada ao universo das artes visuais.

imagem”87 porque a in terpretação de um a imagem n ão pode ser un iversal, pois a

fruição está diretam en te relacionada ao con hecim en to e vivências particulares e culturais do sujeito. O ser humano sempre produziu imagens desde o paleolítico até os n ossos dias, porém , acreditar que a com preen são dessas im agen s e obras é algo natural ou in eren te ao sujeito é n egar as diferentes épocas de produção (e in terpretação) da imagem ao longo da história e até m esm o os diversos con textos socioculturais co-existen tes n o m un do. En tretan to, Martin e J oly ressalta a existência de “esquem as m en tais e represen tativos universais, arquétipos ligados à experiência com um a todos os hom en s”88. Mas declara que a con duta de um a

in terpretação natural e universal da obra de arte é um erro que demonstra desconhecimento do que é a interpretação.

A autora relacion a essas afirm ações de um a in terpretação “n atural” à in capacidade de recon hecer a diferença existente entre o que é percepção e o que é a interpretação. A percepção de aspectos da obra não significa necessariamente que o espectador com preen deu o objeto ou dotou-o de sen tido. Determ inados aspectos podem ter um a significação própria ligada ao con texto da obra, seu fun cionam en to in tern o e tam bém à expectativa e con hecim entos pessoais do espectador. Martin e J oly n os dá em seu livro um exem plo bastan te esclarecedor a esse respeito, ela nos diz que o reconhecimento, nas pinturas rupestres, de animais e seres humanos, não n os in form a n ada além disso. Percebem os e recon hecem os tais figuras, m as para dotar de sentido qualquer imagem é necessário análise e esforço interpretativo para se alcançar n íveis de sen tido ou sign ificação89. Perceber n ão é interpretar, m as

am bos são processos m en tais com plem en tares, com o já vim os an teriorm ente n a neurociência, em Mora, e tam bém n os argum en tos de Arnheim . São operações que atuam em conjun to na apreensão da obra de arte e em todas as relações do hom em com o mundo que o cerca e consigo mesmo.

A autora tam bém ressalta que o reconhecim en to de determ in ados aspectos da obra através da percepção exige um apren dizado. Por m ais que um objeto de arte seja sem elhante ao seu m odelo real, por exem plo, um a pin tura hiperrealista, existem grandes diferenças entre a obra e o seu real existente no mundo.

A falta de profun didade e a bidim en sion alidade da m aioria das im agen s, a alteração das cores (ain da m aior com o preto e bran co), a m udan ça de dim en sões, a ausên cia de m ovim en to, de cheiros, de tem peratura etc. são igualm en te diferen ças, e a própria im agem é o resultado de tan tas tran sposições que apenas um apren dizado, e precoce, perm ite “reconhecer” um equivalen te da realidade, in tegran do, por um lado, as

regras de transformação, e, por outro, “esquecendo” as diferenças. 90

Essas diferen ças que a autora aponta são instân cias, m uitas vezes, ausentes n o objeto de arte. J oly afirm a que som ente um aprendizado precoce perm itiria recon hecer o objeto artístico com o um equivalen te da realidade, caso con trário se torn aria im possível a percepção e com preen são das im agen s. Portan to, podem os en ten der que esse aprendizado é um a habilidade que o ser hum an o desen volve desde o nascim en to, em m eio a con dutas já pré-estabelecidas n o contexto sociocultural no qual vive o indivíduo91.

Esse aprendizado (ou desenvolvimento da percepção e da interpretação) está ligado à capacidade do cérebro de fazer an alogias e perceber sem elhan ças. Na analogia, ou sem elhan ça, coloca-se de im ediato a obra de arte “n a categoria das represen tações. Se a im agem parece é porque ela n ão é a própria coisa: sua fun ção é, portanto, evocar, querer dizer outra coisa que n ão ela própria, utilizando o

90 JOLY. Introdução à análise da imagem, p. 43.

91 A autora Martine Joly relata o caso de pessoas adultas que cresceram e viveram em regiões isoladas do

planeta, onde a cultura local não utilizava a imagem figurativa. Ao verem fotografias, pinturas ou outra forma visual bidimensional, essas pessoas conseguiam perceber o objeto, mas não conseguiam interpretar as formas visuais nele contidas, pois esses dados não passavam apenas de um amontoado de cores sem nenhum significado, não havia referencial para interpretação na vida daquelas pessoas. Esse tipo de reação foi estudado por R.L. Gregory, onde ele investigou o caso de S.B, um cego de nascença que recupera anos depois a visão. Após recuperar a visão S.B. não se adaptou ao mundo visual. Nunca aprendeu a interpretar expressões visuais, pois elas nada significavam para ele, embora visse os rostos. Aqui podemos compreender ao que se refere Arnheim quando afirma que percepção e pensamento não são processos independentes. Apesar de ver, S.B. não dotava de sentido o objeto. Mais detalhes sobre esse caso veja o capítulo X do livro A

psicologia da Visão, de R.L Gregory. O Prof. Dr. Francisco Mora também estuda outros casos semelhantes

processo de sem elhança”92. No caso da in terpretação, a analogia seria a associação

mental que ajuda a distin guir os diversos elem en tos uns dos outros. Esse ato se baseia na sem elhança e dessem elhan ça dos elem en tos, pelo que são e pelo que n ão são.

Outra conduta relatada pela autora é a in terpretação baseada n a busca das in tenções do autor, com o um a ten tativa de encon trar a correta in terpretação do objeto de arte. Joly argumenta:

Que a im agem seja um a produção con scien te e in con scien te de um sujeito é um fato; que ela con stitua um a obra con creta e perceptível tam bém ; que a leitura dessa obra a faça viver e perpetuar-se, m obilizar tanto a con sciên cia quan to o in con scien te de um leitor ou de um espectador é

inevitável. 93

Pude perceber claram ente n o texto de Martine J oly alusões referen tes ao pensam ento de Roland Barthes a respeito das “in ten ções do autor”. A autora nos diz que n ão se deve in terpretar um a obra com o in tuito de se alcan çar a “inten ção do autor”, pois não há com o saber o que o autor quis dizer. As ‘in ten ções’ do autor que produz um a obra de arte são condicionadas pelos padrões da época e m eio am bien te em que ele vive. Nossa in terpretação dessas ‘inten ções’ é, in evitavelm en te, in fluen ciada por n ossa própria atitude, que por sua vez, depen de de n ossas experiências in dividuais, bem com o de n ossa situação histórica. Segundo Joly:

Se persistirm os em n os proibir de in terpretar um a obra sob o pretexto de que n ão se tem certeza de que aquilo que com preen dem os correspon de às in ten ções do autor, é m elh or parar de ler ou con tem plar qualquer im agem de im ediato. Nin guém tem a m en or idéia do que o autor quis dizer; o próprio autor n ão dom in a toda a sign ificação da im agem que produz. Tam pouco ele é o outro, viveu n a m esm a época ou n o m esm o país, ou tem

Portan to, a atitude con trária, de não se interpretar a obra sob a alegação da im possibilidade da interpretação correspon der às in tenções do autor é, segun do Joly, outro gran de erro. Cada espectador, inclusive o próprio autor, são sujeitos com expectativas diferen tes e histórias particulares, cujas in terpretações estão irremediavelmente submetidas a essas particularidades, vivências e juízos pessoais. Um texto ou um a obra de arte pode ter um significado para o autor e pode ter outros sign ificados para os espectadores, dependendo das referências de cada um . As referên cias pessoais do espectador sem pre vão direcion ar a sua leitura/interpretação da obra, seja qual for o tipo de análise crítica escolhida.

In terpretar um objeto de arte n ão con siste em ten tar en con trar a m ensagem do autor na obra, m as perceber o que essa obra provoca de sign ificações e, assim , dotá-la de sentido. Martine Joly escreve:

In terpretar um a m en sagem , an alisá-la, n ão con siste certam en te em ten tar en con trar ao m áxim o u m a m e n s a ge m p re e xis te n te , m as em com preen der o que essa m en sagem , n essas circun stân cias, provoca d e

s ign ifica çõ e s a q u i e a go ra , ao m esm o tem po em que se ten ta separar o

que é pessoal do que é coletivo. [...] Estudar as circunstâncias históricas da criação de um a obra para com preen dê-la m elhor pode ser n ecessário, m as

nada tem a ver com a descoberta das “intenções” do autor. (Grifos nossos) 95

A autora nos fala que para essa interpretação da obra seriam necessários lim ites e pontos de referência, m as que essas referên cias podem os buscar nos pon tos em com um que n ossas análises possam ter com a de outros espectadores, con stituin do lim ites m ais interessan tes e produtivos, do que as rem otas in tenções do autor.

A m en sagem está aí: devem os con tem plá-la, exam in á-la, com preen der o que suscita em n ós, com pará-la com outras in terpretações; o n úcleo residual desse con fron to poderá, en tão, ser con siderado com o um a in terpretação razoável e plausível da m en sagem , n um m om en to x, em

circunstâncias y. 96

95 JOLY. Introdução à análise da imagem, p. 44.

Ao interpretar um a obra de arte, devem os assum ir inteiram ente esse ato, entregar-nos a esse jogo, colocan do-n os n a n ossa posição de receptor ativo, co- autor participante do jogo e atuan te n a obra, com liberdade para perceber e in terpretar. Não subm eten do essa ação a critérios perigosos de “isso é certo” ou “isso é errado”. É claro que o con hecim en to da história da obra, dados bibliográficos do autor, local, con texto sociocultural de produção da obra etc., certam en te são dados que podem con tribuir para am pliar a análise e in terpretação da obra, m as isso n ão sign ifica “descobrir as inten ções do autor” e m uito m enos lim itar a sign ificação que dam os à obra. São dados que podem en riquecer e poten cializar a in terpretação de um a obra, pois todo o con hecim en to que o espectador obtiver pode estabelecer jogos de diálogo mais produtivos.

Ao interpretar um objeto de arte é necessário, com o já foi dito, an álise e esforço interpretativo. A prática da análise e reflexão sobre o objeto de arte leva o espectador a um a fam iliaridade com o jogo de sedução provocado por essa fruição do objeto. Tal hábito reflexivo acaba produzin do um gran de prazer estético em dotar de sen tido as obras e, con seqüentem en te, o aguçam en to dos sentidos de observação, do olhar e o aum en to do con hecim en to (conhecim en to visual, e n ão apenas o conhecimento formal) do espectador. Esse hábito de análise não impede a liberdade de recepção da obra, ao contrário, aum enta a liberdade de ação e in terpretação. Pode-se dizer que tudo com eça n a observação, n a percepção do in divíduo, e que todo con hecim ento que o espectador obtiver (aliado ao seu desejo e esforço in terpretativo) vai propiciar jogos m ais produtivos e in teressantes com a obra.

A ign orância ou falta de con hecim en to n ão é garan tia de um a in terpretação m elhor, no sentido de pura ou livre de in fluências. A autora afirm a que essa ignorância não ajuda na compreensão e que compreender é também um prazer.

Isso n os leva a refletir sobre a influência que o con hecim en to do indivíduo exerce n a sua in terpretação das obras de arte. A autora n os leva a pensar até que pon to é n ecessário que o espectador ten ha um con hecim en to adquirido sobre o

depen de da sen sibilidade n atural e do preparo visual do seu espectador, m as também de sua carga cultural.

Martine J oly n os fala ainda de um a terceira con duta, que argum en ta acerca da n atureza do objeto artístico, cuja ordem perten ceria à esfera afetiva e sensível e n ão ao raciocínio e ao pen sam en to in telectual, dessa form a não careceria de interpretação. Seria apenas sentido, não interpretado. Mas tal afirmação, de acordo com o pensam ento de Arn heim , n ão procede, visto que qualquer in terpretação, in clusive do objeto artístico, depen de da ação con jun ta do intelecto e da intuição, ou seja, do raciocínio e do pen sam en to in telectual, e tam bém da percepção e da sensibilidade. Esse tipo de con duta está baseada na crença de que as funções mentais da percepção e do raciocínio se excluem mutuamente.

A autora analisa em seu livro principalmente as im agen s publicitárias e n esse caso afirm a a pré-existência de um a m en sagem . Com relação às obras de arte Martin e J oly não define se elas possuiriam um a ún ica (e fechada) m en sagem a ser veiculada. Pela opção que fiz n esta dissertação de considerar que o objeto de arte n ão possuiria a priori nenhum sentido, busquei n a autora os pon tos de conciliação com a pesquisa. Um desses pontos de con tato com as idéias da dissertação, é o fato de que a autora afirm a que o hábito de an alisar e refletir sobre o objeto de arte é algo desejável, visto que a prática desse ato ten de a “aum en tar o prazer estético e com un icativo das obras”97. Com o tem po o espectador exercita, estim ula e torn a

in ten so o seu “sen tido de observação e o seu olhar, aum enta seus con hecim entos e, desse m odo, perm ite captar m ais in form ações n a recepção espontânea das obras”98. É o que m e refiro quan do sugiro o efeito de aguçam en to dos sentidos que

o jogo com o objeto de arte favorece ao espectador.

Por fim , con vido a pen sar se n ão existe um a “ditadura da interpretação”, com o sugere a escritora Susan Son tag em seu texto “Con tra a interpretação”99. A

autora ataca a n ecessidade “paranóica” de um a gran de parte da crítica de arte em sem pre buscar um a significação n a obra de arte, para assim form ular um a

97 JOLY. Introdução à análise da imagem, p. 47.

98 Idem.

interpretação correta ou plausível para toda obra. Isso acabaria por atingir também o espectador.

Desde poesia, pin tura, até o teatro e o cinem a, e principalm en te n a literatura, a autora question a a real n ecessidade da interpretação e coloca em que m edida é desejável a crítica de arte. Algum as passagen s desse en saio são in teressantes porque n os levam a pen sar sobre o que é o ato de interpretar, o lugar da crítica e do espectador leigo, e tam bém , em que m edida essa “n ecessidade de interpretar” influencia a conduta do espectador diante da obra de arte.

É preciso ter cuidado com algum as afirm ações da autora para não com eter o erro de pensar que toda in terpretação é dispen sável. A autora n ão diz que as obras de arte são inexprimíveis ou que a interpretação é desnecessária. Sontag argumenta com o a crítica e a in terpretação podem acon tecer sem subjugar a obra de arte, tomando o lugar da própria obra.

Essas afirm ações encontram eco em outras questões levantadas n esta pesquisa, com o a da busca do autor n as obras com o um a form a de explicar a obra e se o sign ificado de um a obra de arte pré-existe ao jogo com o espectador. A autora escreve:

O que im plica a excessiva ên fase n a idéia do con teúdo é o etern o projeto da in terpretação, n un ca con sum ado. E, vice-versa, é o hábito de abordar a obra de arte pra in terpretá-la que reforça a ilusão de que algo cham ado

conteúdo de uma obra de arte realmente existe. 100

Segundo a autora um a crítica ben éfica revelaria a obra sem corrom pê-la. Sontag assume uma postura pragmatista com respeito à liberdade interpretativa do espectador. A conduta que a autora condena é a descrita abaixo:

Por in terpretação en ten do n esse caso um ato con scien te da m en te que elucida um determinado código, certa normas de interpretação.

Em relação à arte, in terpretar sign ifica destacar um con jun to de elem en tos (x, y, z, e assim por dian te) de toda a obra. A tarefa da

A? Que Y é em realidade B? Que Z é de fato C? Que situação poderia

inspirar este curioso projeto de transformação de um texto? 101

A necessidade ou imposição de entender a proposta do artista, de interpretar n o in tuito de descobrir essa proposta ou idéia pode ser im produtiva. A proposta da noção de interpretação como o ato de dotar de sentido a obra é libertária no sentido de que a in terpretação seria o julgam en to daquele objeto por parte do espectador, que tem com o parâm etros sua própria in tuição e in telecto, e n ão a m issão de en ten der o que a obra sign ifica ou o que quer dizer. A idéia de que a obra tem que

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