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A interacção verbal em contexto pedagógico

PARTE I – FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA DA INVESTIGAÇÃO

1. Princípios do Interaccionismo

1.1. A interacção

1.1.1. A interacção verbal

1.1.1.2. A interacção verbal em contexto pedagógico

Nos pontos anteriores fomos apresentando alguns aspectos relativos às interacções verbais, antecipando, desde logo, algumas especificidades da interacção verbal produzida em contexto pedagógico que, agora, passaremos a desenvolver.

Rodrigues, apoiado em Pedro (1996), afirma que, ao comunicarmos algo a alguém num espaço e num tempo determinados, em situações específicas, localizadas institucionalmente, sujeitamo-nos “...a regras que nos transcendem como sujeitos falantes

individuais, sem que, no entanto, nos anulem como indivíduos” (2002: 16). Por

conseguinte, e em conformidade com Delamont (1987: 57), “...os processos que decorrem

na sala de aula só podem ser entendidos quando se entende o seu contexto”. Daqui decorre

que é necessário estudar a sua localização no tempo e no espaço e compreender o fundo organizativo e educativo em que estão inseridos. Torna-se, então, indispensável analisar estes aspectos da vida da sala de aula para que o investigador possa entender os acontecimentos ocorridos neste contexto.

Também Castro (1991) se refere a este assunto, uma vez que, apoiado em Mateus et al. (1983), identifica como factores constituintes das situações de interacção verbal, que são, também, factores reguladores dos enunciados realizados e do seu valor em uso, o locutor, o alocutário, o espaço, o tempo, o discurso anterior e o universo de referência, respectivamente. De acordo, ainda, com Castro “...é o modo particular como os seus

produzidos” (1991: 64). Além dos papéis, também a identidade social e o estilo de

comunicação são fixados previamente.

A interacção verbal que ocorre em sala de aula é caracterizada por um elevado número de participantes, cujos papéis11 estão previamente determinados por um contrato didáctico e há uma certa previsibilidade na estruturação das trocas (Bento, 2000). As trocas aí ocorridas supõem a existência de intervenientes que desempenham os papéis interlocutivos (de locutor vs destinatário, directo ou indirecto), constituindo-se num contínuo de trocas entre professor-aluno(s) e aluno-aluno(s), em que os intervenientes podem mudar constantemente de papel, isto é, passar de locutor a alocutário e vice-versa. Deste modo, a interacção verbal é um contínuos “In normal everyday verbal interaction, addresser and

addressee of the next (...) Purpose and content change as the interaction progresses”

(Malamah-Thomas, 1987: 37). As interacções verbais não se limitam a meras trocas de enunciados, mas são também elas próprias meios de alteração, ou manutenção das características do contexto ou situação. Como lembra Bakhtin (1988), não há diálogo simplesmente por haver duas pessoas a falar, é preciso que elas interajam.

Em contexto de sala de aula, Altet, clarifica que interacção é “…l’action, l’échange

réciproque entre enseignant et élèves, une action mutuelle en réciprocité” (1992 : 54).

Assim, além dos papéis interlocutivos, surgem os papéis interaccionais, caracterizados pela sua relativa estabilidade ao longo de toda a troca, porque estão directamente ligados ao tipo de interacção em curso (Kerbrat-Orecchioni, 1996). Deste modo, é preciso olhar a aula como uma interacção dialógica onde não só o professor fala ou traz informações sobre o tema em foco e nem só ele é responsável pelo rumo tomado por ela, mas também “...os

participantes têm uma representação global do desenrolar das interacções em sala de aula” (Bento, 2000: 75-76). Fazemos notar porém, que, de acordo com as especificidades

do papel do professor, é ele quem controla o processo e o produto do ensino que realiza.

As interacções verbais produzidas em contexto pedagógico, aqui entendidas como um processo comunicativo essencialmente oral, possuem elementos particulares e entre os

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A noção de papel liga-se ao tipo de actuação que o indivíduo ocupa numa certa posição no sistema de relações (Postic, 1990).

indivíduos que interagem em contexto de sala de aula. Sousa (s/d), apoiada em Stubbs (1983), apresenta este contexto como um microcosmos de relações sociais, pelo que emerge a necessidade de se revelar, também, a distinção de papéis sociais12. Esta distinção, de acordo com Castro, “...repousa na verificação de que os sujeitos exercem um controlo

diferenciado sobre o processo de interacção verbal” (1991: 64). Desta forma, em situação

de sala de aula, estando o objectivo da troca previamente determinado, o professor é o transmissor do conhecimento, é quem determina os temas abordados e poderá interrogar, seleccionar o locutor seguinte, ordenar, avaliar, etc.. Neste processo, o aluno assume o papel social de aquisidor, devendo solicitar a palavra e responder às questões colocados pelo professor (Alves, 2000).

Embora não haja uma regra que faça cumprir uma distribuição diferenciada das funções de locutor e alocutário, pelos intervenientes na interacção, uma vez que estas funções podem ser cumpridas por qualquer sujeito na sala de aula, o professor tende a assumir, predominantemente, o papel de locutor (sujeito enunciador), enquanto os alunos, enquanto destinatários do conhecimento que lhes é transmitido, tendem a assumir essencialmente a função de alocutários e a sua participação, enquanto locutores individuais, não está homogeneamente distribuída. Apreende-se, deste modo, que, na aula (ou outra instância social), as interacções verbais desenvolvem-se de acordo com os papéis que desempenham os vários sujeitos intervenientes (Alves, 2000; Babo, 2000; Castro, 1991).

A componente relacional do papel social diz respeito ao facto do posicionamento de um indivíduo ser concretizado face ao posicionamento dos restantes. A estrutura do contexto pedagógico condiciona as relações sociais entre professor e aluno(s), sendo estas submetidas ao princípio de enquadramento13, que regula as relações. Quando o princípio de enquadramento é forte (exemplificado pelo ensino programado), o aluno vê restringidas, de forma rigorosa, as possibilidades de intervenção no processo de transmissão do

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O conceito de papel social emerge de um estatuto e de uma situação particular, ou seja, deriva de uma posição social e remete para o posicionamento de um sujeito face aos restantes (Alves, 2000). Nas palavras de Mitchell é entendido como “...uma determinada forma de comportamento associada a uma determinada

posição social. O termo papel é relacional: um papel constitui-se em oposição a outro papel que detém uma posição social distinta” (1977: 148 in Castro, 1991: 97).

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De acordo com Delamont (1987), o enquadramento diz respeito ao grau de domínio sobre o que pode ser ensinado e ao modo e tempo em que é ensinado, grau esse que depende do professor e dos alunos.

conhecimento; quando o enquadramento é fraco é possível ao aluno alguma opção sobre a selecção, organização ou ritmagem na transmissão, ou seja, os alunos escolhem aquilo que vão “aprender” e o modo como vão fazê-lo (Alves, 2000; Delamont, 1987).

Encontram-se, então, duas modalidades básicas na relação entre professor e aluno(s), sendo que a primeira – enquadramento forte - estabelece uma hierarquia explícita, posicionando os sujeitos em lugares distintos, sendo o poder do professor significativamente marcado; na segunda modalidade – enquadramento fraco – a hierarquia mantém-se, no entanto, o poder do professor surge de forma mais implícita, recorrendo a estratégias discursivas sofisticadas. Em ambos os casos o professor ocupa uma posição de superioridade de estatuto, que corresponde àquele que detém o saber e o comunica àquele que supostamente não o detém e dele se deve apropriar (Estrela, 1992). Assim sendo, a estrutura do contexto pedagógico é controlada pelo professor, pois é este que dá instruções, decide o número de intervenientes, a relação social entre eles, etc., o que dá origem a comportamentos particularmente tipificados e assimétricos a nível da gestão da palavra e do poder (Babo, 2000; Dionísio de Sousa, s/d). Retomaremos a assimetria nas interacções no capítulo dedicado às relações de poder (ver capítulo II), para o estudo das relações sociais estabelecidas entre os intervenientes em contexto pedagógico.

Embora nós aprendamos em todos os lugares, as finalidades não são as mesmas e, por isso, a escola distingue-se de todas as outras instituições. De acordo com Halte “On apprend

dans tous les lieux sociaux, bien que leur finalité ne soit pas l’apprentissage (...) En tant qu’institution particulière, l’école se distingue des autres par sa finalité: elle est le lieu social par excellence expressément institué pour que s’échange, se communique, se construise... du savoir” (1994: 19). Assim, a sala de aula é um lugar específico no qual a

palavra, oral ou escrita, é um meio de produção, onde se realiza a aprendizagem. É precisamente a actividade desenvolvida no interior da sala de aula que distingue a escola das outras instituições.

A escola pode ser considerada como um conjunto de espaços delimitados e hierarquizados, que estão relacionados com a natureza das interacções que aí decorrem. Assim, o contexto pedagógico apresenta como um espaço legítimo para a transmissão de conhecimento, a

sala de aula, tendo as suas fronteiras bem delimitadas. Alves (2000) refere que as visitas de estudo, aulas em espaços não convencionados (ex.: biblioteca) geram interacções com certa especificidade. Refira-se ainda que estas situações, pela sua irregularidade, são excepcionais, fazendo com que a sala de aula seja, por excelência, o local onde se desenvolve o processo de ensino-aprendizagem.

No espaço sala de aula é frequente a subdivisão dos espaços, mais ou menos demarcados fisicamente, sendo a sua delimitação e gestão feita com base no controlo que os diversos sujeitos podem exercer ou exercem sobre eles. O professor, na sala de aula, surge como uma espécie de “one man show” (Babo, 2000: 17), pois apropria-se e ocupa um maior território (parecendo ter alguma correspondência com o seu papel social e discursivo) e movimenta-se, face aos alunos, regra geral, sentados e a quem a movimentação física pela sala é dificultada, pelo que, habitualmente, não optam por uma postura distinta sem antes o solicitarem ao professor. Castro refere-se a este questão do seguinte modo:

“...em termos gerais esse controlo é maior por parte dos professores e menor por parte dos alunos; a relação entre os subespaços e, em consequência, entre aqueles que os controlam pode aparecer regulada por uma maior ou menor insularidade” (1991: 66).

A disposição do mobiliário na sala de aula demonstra, igualmente, o tipo de actividade que nela se desenvolverá. De acordo com Zabalza (1993), as mesas podem estar voltadas para o quadro e para o professor, acentuando o controlo exercido sobre um tipo de transmissão ou direcção. Por outro lado, a disposição das mesas em círculo ou semicírculo permitem, por exemplo, trabalho de grupo, implicando, por isso, outras modalidade de controlo. Daqui decorre que “a maneira como o espaço é gerido tem efeitos cognitivos e emocionais

importantes nos alunos” (Arends: 1995: 85), uma vez que afecta a atmosfera de

aprendizagem das salas de aula, influencia o diálogo e a comunicação.

Mehan (1979 in Alves, 2000; Sousa, s/d), relaciona, ainda, a organização do espaço físico com as principais fases da aula: fase de abertura (que corresponde à preparação para a fase seguinte); fase instruccional (desenvolvimento da actividade); e a fase de fechamento (que corresponde à fase final, processando-se uma reorganização espacial para a actividade seguinte). Daqui se depreende que a sala de aula, relativamente a outros espaços, adquire

elementos constitutivos e uma estruturação/organização especial, o que faz com que a interacção verbal, neste contexto, apresente um carácter peculiar.

O tempo surge previamente definido (tempo da aula) e imposto por instâncias exteriores à sala de aula, não sendo passível de negociação significativa (Alves, 2000). A delimitação do tempo da aula não é da responsabilidade dos sujeitos em interacção, embora estes tenham conhecimento da duração da conversação. Este assunto é discutido sucintamente por Castro, que diz a seu respeito:

“Este tempo não é, pois, nos seus limites, passível de negociação entre os intervenientes, que assim desenvolvem, ou podem desenvolver, as suas estratégias discursivas em função de uma duração temporal cujas fronteiras são por eles conhecidas” (1991: 66).

Existe um tempo semanal e diário pré-estabelecido para cada disciplina, embora no 1.º Ciclo do EB seja o professor que estabeleça as unidades de tempo para cada identidade de conteúdo (Português, Matemática, etc.). Dentro desta unidade de tempo, podem existir subunidades temporais, que correspondem ao tempo para desenvolver determinada tarefa e às práticas comunicativas. A distribuição do tempo pelas tarefas está dependente do estilo individual do professor e a sua administração passa, igualmente, pela gestão da palavra da sala de aula, o que implica uma grande perspicácia na sua rentabilização (Alves, 2000; Arends, 1995; Castro, 1991).

É necessário considerar a articulação entre tempo e conteúdo uma vez que não é concedido o mesmo tempo aos vários conteúdos a serem transmitidos; isto significa que quanto maior for o tempo disponível, maior será a possibilidade de interacção e margem de negociação e, consequentemente, a comunicação estará menos centrada no professor. Assim, neste sentido, o tempo tem implicações na forma sob a qual se realiza a interacção verbal em contexto pedagógico.

As três fases das aulas, já referidas anteriormente (fase de abertura, instruccional e encerramento), além de estarem relacionadas com a organização do espaço físico, estão também ligadas à organização sequencial e hierárquica das aulas, uma vez que cada uma das fases apresenta actividades distintas e, por conseguinte, funções específicas na

interacção verbal. Neste quadro, Dupont (1985), afirma que o espaço e o tempo devem estar estritamente associados e o professor deve adaptar comportamentos adequados e complementares, uma vez que o processo de ensino-aprendizagem é afectado pela organização espácio-temporal da sala de aula.

O discurso anterior diz respeito ao conjunto de trocas verbais realizadas anteriormente à interacção verbal num dado momento. Sabendo que a interacção verbal que está a decorrer estabelece relações com as trocas verbais anteriores, Castro (1991) distingue: discurso

anterior geral – alusivo a todas as interacções verbais realizadas em contexto pedagógico

anteriores a esse momento; e discurso anterior específico – correspondente às interacções verbais em que estiveram presentes os mesmos indivíduos.

O que proferimos em momentos anteriores e a forma como esses enunciados foram realizados condiciona o que dizemos em determinado momento. Nas palavras de Castro:

“...o antecedente, que representa o conjunto dos hábitos, valores e saberes comunicativos que configuram o conhecimento partilhado, ajuda a estabelecer o consequente, num enunciado se apresenta como entidade monádica” (1991: 67).

Numa interacção verbal professor-aluno, pelo papel e estatuto do professor, é o discurso deste que, de forma geral, se impõe, pois sendo ele o transmissor do conhecimento, o que ele disse anteriormente é valorizado em relação ao discurso anterior do aluno.

De acordo com Castro (1991), o universo de referência é representado nas trocas verbais pelo discurso instruccional (ligado ao processo de transmissão e aquisição de conteúdos de instrução) e o discurso regulador (ligado ao estabelecimento do estatuto e da forma da relação entre os interlocutores). Deste modo, o universo de referência constitui o conjunto de categorias que podem ser actualizadas num determinado contexto. Especificamente em contexto pedagógico:

“Os discursos instrucional e regulador, que se realizam directamente entre os sujeitos em interacção, que são veiculados pelos materiais que a suportam (...), ou, ainda, que decorrem imediatamente de instâncias exteriores ao contexto de comunicação cuja voz é tacitamente aceite (caso dos textos programáticos), remetem para o conjunto de valores simbólicos que regulam as práticas comunicativas específicas” (Castro, 1991: 68).

Em contexto pedagógico, o universo de referência é, então, amplamente pré-definido. Em conformidade com Alves (2000), isto significa que nem sempre o que é falado na sala de aula é passível de uma negociação, clara e plena, entre os participantes, apesar da existência de uma reinterpretação das instâncias reguladoras do discurso pedagógico.

Em certa medida, o âmbito do universo de referência é definido tanto para o professor, como para os alunos. É para o professor, uma vez que o que ele diz tem por base outras instâncias exteriores e com grande potencial de regulação, como por exemplo a (re)interpretação do currículo ou programas oficiais. Também o é para os alunos no sentido em que o que o professor diz é claramente constitutivo do universo de referência.

Conclui-se, assim, que os factores constituintes da interacção verbal permitem analisar os aspectos estruturais da interacção e a compreensão dos princípios essenciais que a regem.