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6 ANÁLISE COMPARATIVA

7.1 A INTERNET COMO UM LUGAR ULTRADIMENSIONAL

Ao descrever a internet como um espaço ultradimensional, aponto para características que o diferenciam de outros espaços pelos quais transita o paciente oncológico, específicos deste traço de sua identidade (a doença). Tais espaços são constituídos preferencialmente pelo conjunto hospitalar, laboratorial e de consultórios. Em tais locais, a crítica recorrente, apontada pelos pacientes oncológicos (e que não se restringe a eles) é a de que as relações médicas se tornaram distanciadas, mecânicas e frias (DYCHE; SWIDERSKI, 2005; SANDERS, 2010). O médico, com tempo reduzido, pouco ouve o paciente e norteia suas recomendações pelos indicadores fornecidos pelos exames laboratoriais, pelas imagens das tomografias computadorizadas, pelos marcadores que indicam a possibilidade de evolução de um câncer (SERVAN- SCHREIBER, 2008). O próprio paciente, ao abrir o resultado de um exame, confronta-se com as médias de normalidade e/anormalidade, se autodiagnosticando. Em que pesem as críticas dos médicos a tais leituras, também eles procedem assim, utilizando as ferramentas tecnológicas para ler e realizar diagnósticos e prognósticos.

As tecnologias aplicadas para diagnosticar as doenças e os tratamentos invasivos aprofundam a reconfiguração que Foucault detalha, ao descrever o nascimento da clínica:

Os médicos devem se limitar a conhecer as forças dos medicamentos e das doenças por meio de suas operações; devem observá-las com cuidado, se aplicar em conhecer suas leis e não se esgotar na investigação das causas físicas (FOUCAULT, 2001, p.11).

É neste espaço que transita o paciente, sem nele se reconhecer: a doença é algo alheio, externo, que deve ser dominado e combatido, para que exista um retorno ao eu anterior ao surgimento da doença. No entanto, este eu resgatado jamais será o mesmo: o discurso apresentado nos sites oficiais (não somente pelos médicos, mas também nos

comentários dos próprios pacientes ou de seus familiares) valoriza a doença como um fator transformador.

O médico questiona o paciente e o paciente replica tais questionamentos, buscando apropriar-se de um conhecimento que lhe é negado, pois cabe à autoridade. A internet surge como intermediário neste sistema, cria uma aparente transparência nesta relação opaca, mas, na verdade, aprofunda tal opacidade, pela quantidade de informações oferecidas. Disponibiliza um espaço de prospecção e interação, e retorna com um labirinto de múltiplas conexões, um labirinto onde o paciente se perde, sem encontrar saída, exausto de navegar pelos caminhos intrincados dos sites institucionalizados. Como coloca Adin Steinsaltz,

Uma das maneiras de espalhar a ignorância não é contar mentiras às pessoas, é dar a elas informações demais. Informação demais pode ser até pior do que ter pouca informação. Eu não consigo absorver a informação, não consigo ter acesso a ela, não consigo usá-la. Então, qual é o resultado? É que você se dispersa (STEINSALTZ, 2013, s/p).

A internet, que se apresentava como o extremo da tecnologia para intermediar e facilitar as relações médico-paciente, mostra então sua outra face. De um lado, esta tecnologia continua a ser utilizada como uma ferramenta que acentua o cunho da intervenção tecnológica nos diferentes patamares colocados por Thoer e Levy (2012): segunda opinião; telemedicina; agendamento; monitoramento (o panóptico!). Embora fosse esperada a ocupação de um espaço não controlado pelo saber-poder clínico, um espaço onde o paciente oncológico criasse sua própria comunidade, recriasse seu corpo e resgatasse uma identidade que se encontra no seu imaginário e à qual seu corpo já não corresponde, tal não se deu. Estes espaços não institucionalizados não foram aqueles que primeiro surgiram nas buscas realizadas na internet. Sim, os discursos não oficiais podem ser garimpados nas redes sociais, mas apresentam poucos acessos quando comparado aos sites oficiais. Assim, é neste locus oficial que o paciente oncológico busca se colocar, como a pesquisa demonstrou ao analisar as mensagens postadas pelos usuários no ONCOGUIA, que permite a possibilidade de tais inserções (os outros dois sites não disponibilizam esta ferramenta).

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Este espaço virtual, pela sua transitoriedade, se diferencia dos não-lugares colocados por Augé (1994), embora tenha com estes pontos de contato. O autor define os não-lugares como espaços fixos, em que indivíduos transitam:

Os não-lugares são tanto as instalações necessárias à circulação acelerada das pessoas e bens (vias expressas, trevos rodoviários, aeroportos) quanto os próprios meios de transporte ou os grandes centros comerciais, ou ainda os campos de trânsito prolongado onde são estacionados os refugiados do planeta. Porque vivemos uma época, também sob esse aspecto, paradoxal: no próprio momento em que a unidade do espaço terrestre se torna pensável e em que se reforçam as grandes redes multirraciais, amplifica-se o clamor dos particularismos; daqueles que querem ficar sozinhos em casa ou daqueles que querem reencontrar uma pátria, como se o conservadorismo de uns e o messianismo dos outros estivessem condenados a falar a mesma linguagem – a da terra e das raízes (AUGÉ, 1994, p. 35-36).

O consultório, o hospital, o laboratório são não-lugares por onde transita o paciente oncológico, sem fincar raízes: quer escapar destas fronteiras que o define como o portador de uma doença sempre indesejada. Mas onde poderia, então, se refugiar tal sujeito? Que espaço de pertença poderia penetrar? Os espaços que habitava – o lar, o trabalho, a escola – já lhe são estranhos. O espaço médico não o deseja, pois emerge com o peso que relembra a finitude humana. Surge, e resta, o espaço da internet: um espaço fluido, onde o imaginário se dissemina para além das fronteiras. A internet é o espaço em que a solidão do doente se rompe, pois encontra seu outro-eu, refletido naqueles que se empenham na mesma busca. O indivíduo, fixo na frente da tela de seu computador ou celular, atravessa fronteiras e movimenta-se pelo espaço para encontrar outras vozes. É o anti-lugar do não-lugar de Augé (1994): o corpo permanece no imaginário, fixo; é a voz que se desloca pelo espaço virtual, criando um espaço ultradimensional. Como Baran (1964) desenha, em seu modelo distributivo, o paciente oncológico já não depende mais de uma única rota para perseguir seu destino: são múltiplos pontos, entrelaçados em rede, que podem ser percorridos

livremente. No entanto, como o próprio Baran analisa, tais pontos permanecem os mesmos – muda o percurso, mudam as possibilidades, surgem desvios, o padrão cartográfico renova-se sem que as tramas do tecido, no entanto, sejam afetadas: a voz do poder médico oficial continua a ecoar no universo da internet.

Os corredores solitários dos hospitais agora são percorridos entre sombras que amparam o doente – ele deixa de lado o racionalismo do consultório real e mergulha nas ações de fé que permeiam os comentários postados na internet: ele é responsabilizado pela sua doença e, simultaneamente, transforma-se em um herói que a transcende.