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4 TRAJETÓRIAS DO CORPO

4.3 A TRAJETÓRIA INDIVIDUAL

A relação do paciente com sua própria doença é algo individual, único, como coloca Servan-Schreiber:

Os pacientes frequentemente se espantam com o fato de os diferentes médicos com quem se consultam chegarem a recomendar tratamentos tão divergentes. Mas o câncer é uma doença extraordinariamente multiforme, contra a qual a medicina se esforça para multiplicar os ângulos de ataque. Diante dessa complexidade, cada médico termina se limitando às abordagens que ele domina melhor. De imediato, nenhum médico que eu conheça acataria, para si mesmo ou para um membro de sua família, o primeiro conselho recebido. [...]

Como a maior parte dos pacientes, quanto mais eu obtinha informações, mais eu me sentia perdido. Cada médico que me examinava, cada artigo científico que eu lia, cada site da internet que eu consultava fornecia argumentos sólidos e convincentes a favor dessa ou daquela abordagem (SERVAN-SCHREIBER, 2008, p. 115-117). A internet funciona como uma mediação para a solidão que se instaura na descoberta da doença, solidão essa descrita por Servan- Schreiber (2008, p. 67):

A doença pode ser uma passagem terrivelmente solitária. Quando um perigo paira sobre um bando de macacos, desencadeando sua ansiedade, seu reflexo é colar-se uns nos outros e catar-se mutuamente as pulgas, febrilmente. Não reduz o perigo, mas reduz a solidão. Nossos valores ocidentais, com seu culto de resultados concretos, muitas vezes nos fazem perder de vista a incerteza. A presença, doce, constante, segura, é com frequência o mais belo presente que os próximos podem nos dar, mas poucos deles sabem seu valor.

O olhar sobre a saúde e a medicina perscruta a própria identidade do ser humano que se constitui ontologicamente e como ser inserido na

sociedade: Filosofia, Sociologia, Antropologia, Economia, Comunicação, Artes, Educação são alguns destes vetores em que o discurso médico – e a medicalização da vida e da morte – se encontram. A trajetória individual, no caso da oncologia, ganhou reforço com as abordagens que enfatizam a importância da ação do próprio paciente, como foi visto no capitulo “Trajetórias do Câncer”: o paciente é responsabilizado pelo estilo de vida, aspectos emocionais e nutricionais que adota e que desencadeiam o câncer. Tais aspectos são sublinhados pelo poder médico como vetores que eventualmente provocam ou aceleram a doença oncológica.

A pesquisa realizada pela IARC, de caráter longitudinal, em 1999, para verificar a relação entre nutrição e câncer, envolveu um corpus de meio milhão de pessoas distribuídas por 10 países. Isso só foi possível com o uso de um software especialmente desenhado para coletar e cruzar os dados, permitindo encontrar discrepâncias e pontos em comum na ocorrência de diferentes tipos de câncer.

O EPIC-Soft, recentemente renomeado GloboDiet, é uma ferramenta informatizada para registrar detalhadamente todos os itens que uma pessoa comeu e bebeu nas últimas 24 horas. Este instrumento de avaliação dietética é fundamentado em entrevistas e foi utilizado com sucesso, aumentando a precisão da coleta de dados nutricionais, com parâmetros mundiais. Ele foi desenvolvido e é mantido pela IARC. Foi projetado inicialmente para uso no âmbito das pesquisas do European Prospective Investigation into Cancer and Nutrition (EPIC). Atualmente, está em uso, ou com perspectivas de ser utilizado, em vários estudos nacionais e internacionais na Europa. O software foi construído para analisar o consumo individual de adultos em diferentes populações europeias. O GloboDiet permite descrever e quantificar os itens consumidos, selecionados de um rol de 1.500 a 3.000 alimentos e 150 a 450 ingredientes, específicos para cada país. Ele automaticamente codifica os alimentos e ingredientes consumidos e calcula os nutrientes ingeridos. O resultado é uma minuciosa descrição do tipo e quantidade de todos os itens consumidos ou bebidos pela pessoa nas últimas 24 horas (IARC, s/d, p. 170, tradução da autora).

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A partir dos resultados obtidos em larga escala (Big Data), só permitidos com o uso da tecnologia computacional, o software indica o impacto das dietas individuais adotadas pelos sujeitos pesquisados em relação ao desenvolvimento do câncer e, com isso, sinaliza para medidas preventivas no âmbito da nutrição, passíveis de serem implementadas individualmente. Nesse sentido, o sujeito se investe do poder médico (ele irá cuidar de sua alimentação, como no caso do exemplo citado) e, ao fazer isto, apropria-se também da linguagem militar corrente no jargão da oncologia. O doente autodesigna-se como um “herói”, que reconstrói sua trajetória no combate à doença – inclusive empregando personagens de histórias em quadrinhos para simbolizar tal luta. A busca por “cancer heroes” na internet, em junho de 2014, retornou com mais de 33 mil resultados. O câncer torna-se uma oportunidade midiática de acessar a fama, de superar-se, de “fazer a diferença” (HUDOPHOL; SUBRAMANIAM, 2012). Na busca por “câncer transformou minha vida”, os resultados são ainda mais expressivos: 492 mil páginas na internet, com destaque para o depoimento de líderes de opinião (artistas famosos, apresentadores, como Ana Maria Braga no Brasil etc.); seguidos por pessoas que buscam compartilhar suas experiências individuais. O câncer, de doença, é transformado em cura para um mal que o próprio paciente diagnostica como sendo maior, como é o relato de Vania Castanheira em seu livro “Minha Vida Comigo” (2015). Em entrevista, a autora enfatiza,

O problema é que eu não conseguia administrar as minhas frustrações. Assimilava para mim os problemas da empresa, dos funcionários, da família, amigos, de todos. Achava que eu tinha que resolver tudo e não conseguia desligar. Já não conseguia dormir direito fazia meses (para não dizer meses ou mesmo mais de ano). O meu corpo andava reclamando, mas eu não me estava priorizando. Por fora as pessoas pensavam que estava tudo bem porque eu só gostava de partilhar coisa boa. Guardava tudo o que era ruim e me incomodava para mim. […] A Vânia pós câncer conseguiu encontrar um equilíbrio na sua vida. Conseguiu pôr na prática a teoria de que o nosso corpo é o nosso templo e que nós temos que ser a nossa prioridade. 95% dos meus dias eu começo cuidando de mim (TOLEDO, 2014, s/p).

Larissa Meira (2015) coloca: “Precisei atravessar tudo aquilo para ser o que sou hoje”. Tais falas, como se verá na análise das páginas institucionais do saber médico que se encontram na internet, refletem o discurso médico, que o doente busca para completar uma atenção ou informações que não lhe são fornecidas (ou o são de maneira insuficiente) no consultório. De acordo com a pesquisa “The effect of physician solicitation approaches on ability to identify patient concerns” (DYCHE; SWIDERSKI, 2005), no consultório os médicos interrompem frequentemente os pacientes, sem deixar que estes completem seus pensamentos – com uma frequência a cada 16,5 segundos, em média. Em 37% das consultas, os médicos não chegam a perguntar, nos primeiros contatos, o que o paciente está sentindo, com impacto direto na acuidade do diagnóstico: consultas rápidas e distanciadas, como Lis Sanders (2010) aponta. A autora denuncia o avanço do diagnóstico digital, intermediado pela máquina, em detrimento do diagnóstico físico, realizado no processo de comunicação entre paciente e médico e deste pelo toque no corpo humano, mas sem esquecer das possibilidades que a tecnologia digital oferece para minimizar eventuais erros humanos em diagnósticos mais complexos. Na década de 1970,

A capacidade dos computadores de armazenar cada vez mais informações parecia corresponder perfeitamente às demandas da medicina, em particular às dificuldades do diagnóstico médico. Era evidente que o conhecimento científico também crescia de maneira exponencial. Num artigo escrito em 1976, um grupo de médicos que trabalhava numa simulação computadorizada da “cognição clínica” estimou que um profissional médico armazena e utiliza no mínimo dois milhões de fatos médicos. Estava claro que este montante só iria crescer com o tempo (SANDERS, 2010, p. 267).

A autora descreve várias tentativas do uso da informática como ferramenta de suporte aos médicos, incluindo o software Gideon e o Isabel Health Care. Este último foi utilizado com sucesso para corrigir uma estratégia previamente adotada para tratar a leucemia em uma criança. Neste caso, foi útil para a mudança de abordagem no tratamento prescrito, pois, como relatado no livro, é difícil para o corpo médico alterar o rumo depois de escolher um dado percurso – o que explica muitos dos embates quando os pacientes questionam recomendações

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realizadas após consultarem uma segunda opinião na internet. O próprio Servan-Schreiber (2008), médico que se transforma em paciente, analisa de maneira retrospectiva, no formato de autoanálise, a sua postura e a de seus pares frente a doença – e como sua percepção alterou-se e redefiniu seu contato com o corpo clínico a partir do momento que foi diagnosticado com câncer.

Mismeti (2011) ressalta a importância deste processo comunicacional entre paciente-médico, que foi rompido pela economização da saúde, criando um vácuo preenchido pela internet:

Os médicos são pressionados a atender os pacientes cada vez mais rápido, e escutar leva tempo – apesar de não levar tanto quanto os médicos temem. E escutar é difícil para todo mundo, médico ou não. Quando você ouve uma história, sua mente está tentando descobrir o significado dos fatos que você está recebendo. [...] Os médicos, às vezes, acham que é melhor fazer perguntas diretas para encontrar a informação de que precisam, ainda que isso não seja verdade. Mas quando você faz perguntas, tudo o que você consegue são respostas. E, às vezes, você precisa de mais do que respostas. Suas perguntas podem conduzir a conversa na direção errada e você nunca vai saber” (MISMETI, 2011, p. C8). A internet, ao ocupar este espaço em que médico e paciente distanciam-se, possibilita que o corpo assuma a forma de novos continentes, com contornos que ainda estamos delineando face ao volume de informações ao qual cada internauta está exposto.