• Nenhum resultado encontrado

2 TRAJETÓRIAS DO CÂNCER

2.2 O CÂNCER AVANÇA

O câncer, como campo de estudo, se deparou com um terreno fertilizado por três ingredientes no último quinquênio do século XX: um espaço colaborativo entre as nações no campo da saúde; uma visão otimista sobre as tecnologias na medicina como forma de controlar o câncer; e a ideia de que o câncer poderia ser evitado com medidas de precaução adequadas (SARACCI; WILD, 2015).

O interesse pelo câncer cresce na mesma medida em que aumentam a expectativa de vida do ser humano e, paralelamente, os casos diagnosticados da doença e a associação, já citada, entre envelhecimento e câncer. Conforme dados do Population Reference Bureau (2015) e do Instituto Brasileiro de Estatística, IBGE (2007), no início do século XX a expectativa de vida nos EUA era de 47,3 anos; na França, de 47,5 anos; no Brasil, de 34,60. Em 1970, este número havia se alterado substancialmente: no Brasil, a expectativa de vida sobe para 61,60 anos; nos EUA, 70,8; e na França 72 anos.

70

Figura 3 – Expectativa de vida

A expectativa de vida duplicou em sete décadas no Brasil. Fonte: IBGE, 2007, s/p.

Este fato é explicado pela “[...] melhoria nas condições ambientais, higiênicas e nutricionais e, mais recentemente, pelos avanços da medicina, que deu contribuições fundamentais” para a ampliação da expectativa de vida (SARACCI; WILD, 2015, p. 49, tradução da autora). Para os autores, o espectro de abordagens disponibilizadas para o tratamento das doenças alterou radicalmente a percepção da função do médico e sua atuação:

Estes avanços alteraram fundamentalmente a percepção daquilo que a medicina poderia fazer. Especificamente, os professores na Academia modificaram completamente sua abordagem: de uma perspectiva em que o diagnóstico correto representava o ápice da habilidade médica e do conhecimento (com a doença sendo deixada de lado para seguir seu curso natural) para uma em que a cura e o controle da doença passaram a ser a medida do sucesso profissional (SARACCI; WILD, 2015, p. 49, tradução da autora).

Na medida em que os conhecimentos sobre bioquímica e genética se ampliam, o câncer passa a ser definido como uma doença que abriga centenas de diferentes faces, pois se manifesta em células que podem

0 10 20 30 40 50 60 70 80 1910 1920 1930 1940 1950 1960 1970 1980 1990 2000 Idade Década

estar presentes em qualquer parte do corpo. A progressão da doença é similar: um ponto de origem, que depois se espalha por diferentes colônias, muitas vezes distantes do foco principal, processo este conhecido como metástase. Dentro deste enfoque, o câncer

[...] tornou-se um problema de saúde mundial. Projeta-se um aumento na incidência de novos casos de câncer de 14,1 milhões em 2012 para 21,6 milhões em 2030. Estima-se que, em 2030, os custos, no mundo inteiro, de doenças não transmissíveis, incluindo câncer, doenças cardiovasculares, doenças respiratórias crônicas e doenças metabólicas como diabetes, terão superado os custos das doenças transmissíveis (SARACCI; WILD, 2015, p. 68, tradução da autora).

Esta situação coloca os países em desenvolvimento, como o Brasil, na difícil posição de conviver, simultaneamente, com a necessidade de distribuir seus investimentos em saúde tanto para enfrentar doenças transmissíveis quanto para enfrentar aquelas não transmissíveis e, em particular, como no caso do câncer, arcando com custos muito elevados. São decisões políticas que envolvem a alocação de recursos para pesquisa, teste e desenvolvimento de medicamentos, como o recente caso da “pílula da USP” (fosfoetanolamina sintética) tornou visível. O uso da internet, neste exemplo, foi fundamental para que os pacientes pressionassem o governo para acelerar os testes26. O câncer, em 2011, foi responsável por 14% das 55 milhões de mortes registradas no mundo e aproximadamente 14 milhões de novos casos são detectados por ano. Cerca de 33 milhões foram diagnosticados no espaço de cinco anos, o que implica custos cada vez mais altos com tratamentos de controle ou paliativos (SARACCI; WILD, 2015).

26

A discussão sobre a fosfoetanolamina ultrapassou a fronteira sobre os testes para validar o uso do medicamento e alcançou a esfera direta de fornecimento do mesmo antes de sua validação cientifica. As diferentes instâncias deste percurso – liberação judicial e, posteriormente, cassação incitam questões que ultrapassam a área médica. Por exemplo: se um paciente se encontra em estado terminal (vai morrer rapidamente de qualquer forma), qual o impedimento de testar um medicamento que, na pior das hipóteses, irá provocar um resultado já previsto? O artigo de Tabakman (2016), dá algumas respostas para isto e pode ser acessado no link: <http://observatoriodaimprensa.com.br/imprensa-e-saude/cade-os-mortos-da- fosfoetanolamina/>.

72

O aumento de casos é creditado a dois fatores: maior precisão nos diagnósticos e envelhecimento da população (SARACCI; WILD, 2015). Este último aspecto, em particular, merece atenção, pois corrobora como os dados são articulados para produzir uma determinada informação que é assumida, então, como um paradigma que se naturaliza. A análise realizada por Servan-Schreiber (2008) mostra que esta é uma correlação pois, caso fosse verdadeira, o número de casos na velhice teria aumentado, sem uma contrapartida equivalente de cânceres detectados na infância ou em jovens adultos, mas não é isto que se observa na análise de dados sobre câncer com a variável idade. A ocorrência do câncer em idade precoce cresceu 10% entre 1973 e 1991. O câncer de cérebro e os casos de sarcoma cresceram 25% (GREG, 2015).

Embora a probabilidade de ocorrência da doença aumente com a idade, o fato de ela estar presente em idade precoce é que a transforma em um vetor que perpassa toda a sociedade.

Figura 4 – Probabilidade de ocorrência de câncer x idade (a cada 100 mil habitantes)

Embora seja prevalente a partir dos 80 anos, o câncer já ocorre na infância e entre os adultos jovens,

Fonte: Greg, 2015, s/p. 0 500 1.000 1.500 2.000 2.500 0 20 40 60 80 No. de casos Idade

O estudo realizado por Greg (2015) mostra o aumento da incidência do câncer: a partir dos 80 anos, a cada 100 mil habitantes, 2.500 terão câncer. Este aumento está relacionado com o aumento da expectativa de vida, no entanto, é importante ressaltar o aumento no número de casos na infância e na adolescência, o que não pode ser explicado pelos fatores usualmente associados à doença.

A busca por outras explicações para o aumento das incidências levou à análise do impacto ambiental e comportamental, já referenciados anteriormente. O mapa de ocorrência de determinados tipos de câncer, que são prevalentes em uma região e não em outras, fornece subsídios para identificar quais são as articulações mais relevantes entre agentes cancerígenos, hábitos alimentares e outros para propiciar – ou não – o surgimento de um dado câncer.

Para conhecer o inimigo, os pesquisadores analisam como ele ocorre em diferentes territórios e tentam extrair estratégias para o combate conforme os resultados apresentados em cada parte do mundo. Os médicos traçam uma cartografia do câncer: mapas que mostram os locais com mais incidência, e quais os tipos característicos de uma região.

Figura 5 – A cartografia do câncer

A distribuição dos tipos de câncer não ocorre de maneira uniforme ao redor do mundo.

74

No mapa27 é possível acompanhar como cada tipo de câncer distribui-se por diferentes países, o custo do tratamento e a expectativa de vida. Este tipo de informação tornou-se viável a partir da disseminação dos métodos computacionais de tratamento de dados, que permitem analisar e interpolar variáveis em grandes quantidades, com uso do conceito de Big Data.

Por exemplo, o câncer de pulmão é 40 vezes mais comum em regiões do Reino Unido do que em Uganda; o câncer de esôfago é 100 vezes mais frequente em alguns distritos da República Islâmica do Irã do que nos Países Baixos; e o câncer de fígado é 1.000 vezes mais comum em Moçambique do que na Suécia (SARACCI; WILD, 2015, p. 55).

Como um mapa no qual se debruçam os geólogos, médicos e pacientes analisam montanhas e vales, sulcos, formações e sinais que definem as fronteiras desta doença, buscando pistas para entendê-la e combatê-la.

É entre o silêncio e a palavra, entre o espanto e o reconhecimento, que o paciente oncológico vai, pouco a pouco, trilhando seus caminhos reais e virtuais no contato com a doença.