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3 TRAJETÓRIAS DA INTERNET

3.4 O POSICIONAMENTO DO INTERNAUTA

O espaço, seja o de Newton ou o de Einstein, possui fronteiras nítidas, sejam elas definidas como contínuas ou descontínuas, uma abordagem que permite expandir as noções de público e privado. Tais noções parecem categorizadas de forma inequívoca nestes espaços – mas isto não se aplica ao espaço virtual, em que espaço público e privado convergem:

Hoje em dia, metade dos garotos das faculdades americanas tem sua própria home page, desovando o que deve ser o maior arquivo da mente adolescente que jamais existiu. Um número cada vez maior de famílias está também se mudando para o ciberespaço, mantendo os entes queridos em exposição online na forma de instantâneos digitalizados de suas férias de verão. Com o advento do software de autopublicação na Web, a home page da família está destinada a se tornar tão ubíqua quanto o velho álbum de fotografias – e muito mais pública (WERTHEIM, 2001, p. 166).

A internet contribui e se insere na contemporaneidade por apresentar ao menos três dos quatros fatores apontados por Hall como característicos de tal período: mobilidade; fragmentação do mundo; e fragmentação do próprio sujeito (HALL, 2005). A modernidade difere, assim, do Iluminismo - em que o sujeito apresenta uma identidade própria (geralmente masculina), em um mundo ordenado pela razão, consciência e ação. Difere, também, da postura sociológica que delimita os espaços privados e públicos pois, como visto anteriormente, este espaço ultradimensional não se submete a tais delimitações, ao contrário dos não-lugares que não conformam identidades (AUGÉ, 1994).

O espaço do consultório, do hospital, é um espaço onde transitam os pacientes.

Se nos detivermos, por um instante, na definição de lugar antropológico, constataremos que ele é, antes de mais nada, geométrico. Ele pode ser estabelecido, com base em três formas espaciais simples, que podem ser aplicadas a dispositivos institucionais diferentes e que constituem, de certo modo, as formas elementares do espaço social. Em termos geométricos, trata-se da linha, da interseção das linhas e do ponto de interseção (AUGÉ, 1994, p. 54).

Nada mais longe do espaço-lugar clássico do que a internet, com sua estrutura que promove o entrelaçamento entre o público e o privado: o teor dos textos digitados, das fotos, vídeos e links postados institucionalmente apresenta um cunho que se apropria da linguagem dos blogs (diários virtuais), incorporando a gramática da linguagem de uma pessoa física e não jurídica. O espaço virtual aponta para tal conformação onde o sujeito (tanto as pessoas jurídicas quanto físicas) criam conexões que crescem de maneira geométrica – amigos, amigos dos amigos, amigos dos amigos dos amigos etc. Tal número pode chegar a algumas centenas ou milhares, o que confere às relações virtuais um caráter bem diverso daquelas que se realizam fora do espaço virtual.

Em que pese a possibilidade de tornar sigilosas as informações disponibilizadas ou navegar de forma anônima na rede, tais recursos são pouco utilizados pelos internautas39. Esta característica da rede leva, de maneira direta, a uma reflexão sobre o conceito de liberdade, pois o internauta é exposto a informações que ele não buscou proativamente (WERTHEIM, 2001). O trajeto da construção desta noção de liberdade, no ciberespaço, será abordado a seguir.

3.4.1 Liberdade virtual

Na Idade Média, a jornada do ser humano apresentava um foco: o de ascensão ao espaço metafísico. No Renascimento, tal foco se perde – sendo o espaço um contínuo, sem início ou fim, um eventual ponto de chegada desaparece.

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Os algoritmos utilizados pelos sites mapeiam a navegação dos internautas para configurar o resultado de buscas e ofertas de materiais conforme o perfil deste internauta. Por exemplo: caso o internauta pesquise sobre passagens aéreas, será inundado por ofertas de passagens na sequência de sua busca. O mesmo ocorre se ele pesquisar um dado medicamento ou qualquer outra informação.

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Tal perspectiva se replica no ciberespaço que, infinito, permite também “n” possibilidades. Assim, o internauta navega sem rumo, paradoxalmente aprisionado pela sua infinita liberdade, como pontua Wertheim:

Num espaço homogêneo, o viajante tem uma infinita liberdade de escolha: pode tomar qualquer direção que queira e mudar de ideia tanto quanto queira. Esse senso de liberdade é um enorme componente da fantasia do espaço exterior. [...] essa liberdade de movimento aparentemente ilimitada é uma fantasia primordial da cosmologia do final o século XX (WERTHEIM, 2001, p. 138).

A noção de liberdade pontuada por Wertheim (2001) está no fulcro dos embates – inclusive concernentes à legislação – que cercam a internet e seus múltiplos espaços que alimentarão as relações entre médicos e pacientes oncológicos: “Espaço para se mover é a essência da liberdade tanto para a mente quanto para o corpo” (WERTHEIM, 2001, p. 53). Este espaço idealizado da internet apresenta-se como uma válvula de escape para os espaços cada vez mais vigiados, vigilância que se coloca como mola mestra para propiciar mais liberdade, justificada pela necessidade de preservar direitos individuais positivados. Paradoxalmente, tal vigilância representa o fim desta mesma liberdade.

O ciberespaço apresenta-se, assim, como uma utopia desta liberdade forjada no Renascimento40. Importa, para cada internauta, é que a internet represente uma porta ampla e aberta para a liberdade de expressão, com permissão irrestrita para a mobilidade (mobilidade esta destacada pelo uso do próprio termo “internauta”, que remete às navegações e descobrimentos de novos territórios).

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Não é por acaso que a missão do Facebook, expressa em seu site, enfatiza tal aspecto: “As pessoas utilizam o Facebook para ficarem conectadas com seus amigos e família, para descobrir o que está acontecendo no mundo, e para compartilhar e

expressar aquilo que importa para elas” (FACEBOOK, s/d, grifo meu, tradução

A “liberdade” foi a alavanca que deteve a continuidade do projeto SOPA (Stop Online Piracy Act), suspenso no dia 20 de janeiro de 2012, com a reação de diversos sites que promoveram um novo tipo de “greve”, se assim a podemos chamar: a Wikipédia (versão inglesa), em protesto contra o SOPA ficou fora do ar no dia 19 de janeiro de 2012.

Perceba-se que essa “greve” se constitui em um marco ainda pouco explorado – significa que houve a paralização do fornecimento de informações aos usuários, equiparando a importância do acesso às informações a outros bens essenciais, como transporte e saúde. A página em que a Wikipédia anuncia sua mobilização teve mais de 182 milhões de acessos (WIKIPEDIA, 2012).

Este confronto entre vigilância como meio de garantir a liberdade e vigilância como ferramenta que cerceia esta mesma liberdade retoma aspectos caros a Foucault (1987), em especial, seus estudos sobre o panoptismo, o qual, no ciberespaço, ganha novos contornos.

3.4.2 O panoptismo virtual

Em seu grau mais extremo, o panoptismo se exerce pela própria invisibilidade: a ocultação do exercício do poder está instaurada. A própria pessoa torna-se “o princípio de sua sujeição” (FOUCAULT, 1987, p. 168). Ao colocar o indivíduo sob escrutínio, o panóptico permite uma classificação específica, bem como a experimentação controlada, postura esta que é endossada pelo armazenamento das informações de cada internauta: a rede retorna para ele, em cada busca, respostas já esperadas e que se adequam ao seu perfil, alimentando, desta forma, um imobilismo que evita o confronto e o choque do inusitado ou das diferenças. Um outro efeito se instaura com o panóptico: embora a relação seja unívoca quanto aos sujeitos observados, ela não o é em relação aos disciplinadores: o “mestre do panóptico” só existe enquanto tal na medida em que existam sujeitos sob seu poder, um poder que, ao ser exercido, gera saber, o qual, por sua vez, alimenta este mesmo poder em um processo simbiótico. O panóptico proposto por Benthan (1748-1832) contrapõe-se, como uma resposta econômica e utilitária para as relações de poder, ao sistema de encarceramento até então existente e retratado por Piranesi (1720-1778) em suas 16 gravuras intituladas “Carceri” (FOUCAULT, 1987).

O panóptico é uma tecnologia de poder de múltiplas aplicações que adquire formas virtuais na contemporaneidade: é uma tecnologia de poder-saber, em que todos e qualquer um (virtualmente) podem conhecer seu mecanismo – conhecimento este, assim, que se torna

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disciplinador. Quem utiliza a rede, por exemplo, sabe que se expõe em uma vitrine para o mundo e, nesta exposição, reside o próprio fascínio do sistema, alimentado pela cibercultura que impulsiona e valoriza a exibição pública em detrimento do privado (embora de forma complexa e paradoxal, como vários outros aspectos que se formam no espaço virtual). No caso do câncer, a doença, antes privada e oculta, torna-se pública e explícita. Neste sentido, a internet instaura-se como o ápice de um poder esquadrinhador que se dá pelos pares (os quais, como nos estádios romanos, podem erguer seu dedo para aprovar – ou não – uma mensagem postada ou um site, dando-lhe sobrevida e maior visibilidade). Esta passagem social do poder, de um estado de vigilância marginal, pela força esquadrinhadora, para um estado de vigilância sutil e disseminada, ocorre com a formação da sociedade disciplinar entre os séculos XVII e XVIII, conforme Foucault (1987). Há uma proliferação das instituições disciplinadoras (regimentos, escolas, hospitais), instituições estas que convergem hoje para o espaço virtual. A ocupação destes espaços de forma institucional cria sua própria rotina de como perguntar, observar e informar. Tudo é documentado. O poder disciplinador, assim, se estende e se ramifica do micro ao macro, de forma tentacular. Foucault (1987) contrapõe a Antiguidade – em que uma multidão se debruça para observar poucos recortes – com a Idade Moderna, em que poucos se debruçam para observar muitos. A internet permite ultrapassar esta dicotomia e possibilita o exercício duplo destas duas abordagens – o indivíduo se debruça sobre o outro, mas, ao mesmo tempo, é alvo de seu escrutínio. Com o advento da primazia da vida privada em detrimento da vida pública, resta ao Estado vigiar não as multidões, mas os indivíduos – e não só ao Estado, mas também às empresas, que hoje coletam informações na internet para vigiar a conduta de seus funcionários. Cabe ressaltar que a associação com o panopticismo não se dá de forma direta, pois apresenta outros contornos no espaço virtual: enquanto nas questões envolvidas na anátomo-política as intervenções sobre o corpo são exercidas de forma direta, no espaço virtual elas são mediadas por elementos indefinidos e difíceis de rastrear.

O próximo passo é verificar como se articulam, portanto, estas múltiplas trajetórias: a do câncer, enquanto doença; e do mundo virtual, enquanto tecnologia que disponibiliza, em larga escala, dados e informações que são postados simultaneamente de diferentes pontos da rede.