1.1 INTERPRETAÇÃO E (CON)TEXTO
1.1.3 A interpretação dentro do contexto
Direito e sociedade integram-se em uma relação necessária
95. O direito está
diretamente relacionado ao estado da sociedade por ele representada e
desempenha sua tarefa normativa de organização. Para Assier-Andrieu, o direito é
uma realidade social e “é, a um só tempo, o reflexo de uma sociedade e o projeto de
atuar sobre ela, um dado básico do ordenamento social e um meio de canalizar o
desenrolar das relações entre os indivíduos e os grupos”
96.
É importante compreender que toda interpretação ocorre em um determinado
contexto, que não pode ser desconsiderado. Em verdade, não há texto sem
contexto. A Constituição e a realidade social sempre se buscam. “A realidade fática
e a normativa encontram-se em uma relação de reciprocidade”
97, e não é possível
separá-las, pois se encontram mutuamente imbricadas. O texto normativo é
93 BASTOS, Celso Ribeiro. Hermenêutica e interpretação constitucional. 3. ed. São Paulo: Celso Bastos, 2002, p. 47.
94 STRECK, Lenio Luiz. A diferença ontológica (entre texto e norma) como blindagem contra o relativismo no processo interpretativo: uma análise a partir do “ontological turn”. Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte, n. 89, p. 121-160, jan./jun. 2004, p. 135.
95 Fuller, citado por Louis Assier-Andrieu, afirma que “podem-se imaginar o direito e a sociedade como as duas lâminas de uma mesma tesoura. Quem escruta apenas uma lâmina pode pensar que ela faz todo o trabalho”. (ASSIER-ANDRIEU, Louis. O direito nas sociedades humanas. Trad. Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 5)
96 Ibidem, p. XI.
97 BASTOS, Celso Ribeiro; MEYER-PFLUG, Samantha. A interpretação como fator de desenvolvimento e atualização das normas constitucionais. In: SILVA, Virgílio Afonso da (org.). Interpretação constitucional. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 150.
composto por palavras, cujos significados não são únicos, e ainda são cambiantes
com o passar do tempo.
A elaboração dos textos normativos procura levar em conta experiências anteriores
e reflexões em torno dos efeitos das decisões que cuidam das circunstâncias da
vida. Entretanto, como esclarece Philipp Heck, o legislador não é capaz de atender a
todas as expectativas.
Em primeiro lugar, sua capacidade de percepção é insuficiente. O legislador deseja fixar preceitos para o futuro. Mas o futuro não é absolutamente previsível, perceptível. A complexidade da vida moderna é quase infinita. As condições e os problemas da vida estão submetidos a uma mudança constante. Em segundo, os meios que o legislador dispõe para se expressar são limitados. Mesmo que o legislador fosse capaz de perceber todos os casos da vida, ainda assim seria incapaz de reproduzir ou expressar as suas ideias de um modo inequívoco e completo. A consequência destas dificuldades é que até mesmo a melhor lei apresenta inúmeras lacunas98.
Acrescenta ainda Jean-Louis Bergel
99que não se pode pensar que o legislador seja
capaz de captar a infinita diversidade dos fatos sob fórmulas precisas e definitivas.
Situações imprevisíveis ou excepcionais surgem em todas as matérias. Além disso,
as situações diante das quais as leis foram concebidas são passíveis de sofrerem
transformações. A Constituição “não pode e nem deve ser concebida como um
sistema fechado ou estático, posto que a Constituição não se encontra apartada da
realidade social que visa a regular”
100, mas, sim, como um sistema normativo
dinâmico.
No tocante a isso, Gustav Radbruch anota que a interpretação jurídica
98 Tradução nossa da versão em espanhol: “Por una parte, su capacidad de percepción es insuficiente. El legislador quiere sentar preceptos para el futuro. Pero el futuro no es absolutamente previsible, perceptible. La complejidad de la vida moderna es casi infinita. Las condiciones y los problemas de la vida están sometidos a un cambio constante. En segundo lugar, los medios expresivos del legislador son limitados. Si un legislador fuera capaz de percibir todos los casos de la vida, aún seguiría siendo incapaz de reproducir o expresar sus ideas de un modo inequívoco y completo. La consecuencia de estas dificultades es que incluso la mejor ley presenta innumerables lagunas”. (HECK, Philipp. El problema de la creación del derecho. Trad. Manuel Entenza. Granada: Comares, 1999, p. 30)
99 BERGEL, Jean-Louis. Méthodologie juridique. Paris: PUF, 2001, p. 231.
100 BASTOS, Celso Ribeiro; MEYER-PFLUG, Samantha. A interpretação como fator de desenvolvimento e atualização das normas constitucionais. In: SILVA, Virgílio Afonso da (org.). Interpretação constitucional. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 150.
não fica parada diante da determinação do sentido que foi pensado pelo autor da lei, se o logrou apreender. Nem poderia ficar por aí, visto ser sabido que em toda a obra legislativa intervém uma grande multiplicidade de autores e, portanto, de opiniões diferentes. [...] Ainda na hipótese de todas as opiniões colaborantes terem o mesmo sentido, nem mesmo assim se obteria necessariamente o sentido decisivo da lei101.
A tarefa do intérprete deve passar por uma análise sob os aspectos sintático,
semântico e pragmático. O aspecto sintático preocupa-se com a conexão das
palavras na estrutura da frase
102, o aspecto semântico ocupa-se da relação existente
entre a palavra e o objeto a que ela se refere, e o aspecto pragmático cuida da
relação das palavras com o intérprete, em uma abordagem sintética.
Ludwig Wittgenstein
103mostra que as palavras somente adquirem sentido mediante
o uso compartilhado, reforçando as noções de historicidade e de intersubjetividade.
Assim, o compreender é marcado por um contexto sócio-histórico, razão pela qual o
significado de uma palavra depende do sentido que lhe é atribuído no seu uso
social. A linguagem real da vida abre-se, então, para usos sempre novos e jogos em
contínua reformulação. A fonte da vida histórica dos homens é o caos – no sentido
originário da palavra grega –, ou seja, trata-se da experiência de manter-se sempre
em aberto.
Neste sentido, Alf Ross salienta que
toda interpretação tem seu ponto de partida na expressão como um todo, em combinação com o contexto e a situação nos quais aquela ocorre. É, pois, errôneo crer que o ponto de partida são as palavras individuais consideradas em seu significado lingüístico natural. Este significado lingüístico é amplamente aplicável, porém tão logo uma palavra ocorre num contexto, seu campo de referência fica restrito104.
101 RADBRUCH, Gustav. Filosofia do direito. Trad. L. Cabral de Moncada. 6. ed. Coimbra: Arménio Amado, 1997, p. 230.
102 José Joaquim Gomes Canotilho ressalta que “palavras e expressões do texto da norma constitucional (e de qualquer texto normativo) não têm significado autônomo” (CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 5. ed. Coimbra: Almedina, 2002, p. 1203). Quando se busca a compreensão de uma frase, compreende-se o sentido de uma palavra quando considerada na sua referência à frase, e, reciprocamente, o sentido da frase depende do sentido das palavras individuais. “No processo hermenêutico existirá sempre uma relação dialética entre o todo e as partes, na medida em que o significado de um depende do significado do outro”. (CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Hermenêutica e argumentação: uma contribuição ao estudo do direito. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 55-56)
103 WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. Trad. Marcos G. Nontagnoli. 5. ed. Petrópolis: Vozes, 2008.
Segundo Genaro R. Carrió, o significado das palavras dá-se em função do contexto
linguístico em que aparecem e da situação humana na qual são usadas
105. O
processo interpretativo implica sempre uma produção de sentido a partir da
apropriação da tradição pelo intérprete, e a compreensão “se dá, a partir da
condição de ser-no-mundo do intérprete”
106.
Há mais. Martin Heidegger destaca o caráter temporal do ser humano, como ser
histórico, marcado pela tradição cultural em que está imerso e pelas compreensões
prévias que condicionam toda interpretação que realiza.
A interpretação de algo como algo funda-se, essencialmente, numa posição prévia, visão prévia e concepção prévia. A interpretação nunca é apreensão de um dado preliminar, isenta de pressuposições. Se a concreção da interpretação, no sentido da interpretação textual exata, se compraz em se basear nisso que “está” no texto, aquilo que, de imediato, apresenta como estando no texto nada mais é do que a opinião prévia, indiscutida e supostamente evidente, do intérprete. Em todo princípio de interpretação, ela se apresenta como sendo aquilo que a interpretação necessariamente já “põe”, ou seja, que é preliminarmente dado na posição prévia, visão prévia e concepção prévia107.
O que se tem é que a verdade humana é datada, precária e contextualizada, o que a
torna passível de ser modificada. Por isso, “qualquer decisão é uma decisão
historicamente situada”
108. Martin Heidegger também destaca que o meio no qual o
intérprete está inserido será determinante na sua compreensão.
O compreender sempre diz respeito a todo o ser-no-mundo. Em todo compreender de mundo, a existência também está compreendida e vice- versa. Toda interpretação, ademais, move-se na estrutura prévia já caracterizada. Toda interpretação que se coloca no movimento de compreender já deve ter compreendido o que se quer interpretar109.
No mesmo sentido, Hans-Georg Gadamer anota que as condições existenciais do
homem determinam como ele interpreta e como convive com o mundo. O sujeito
105 CARRIÓ, Genaro R. Notas sobre derecho y lenguaje. 5. ed. Buenos Aires: Lexis Nexis/Abeledo- Perrot, 2006, p. 29.
106 STRECK, Lenio Luiz. A diferença ontológica (entre texto e norma) como blindagem contra o relativismo no processo interpretativo: uma análise a partir do “ontological turn”. Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte, n. 89, p. 121-160, jan./jun. 2004, p. 153-154.
107 HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Trad. Marcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 211-212.
108 TAVARES, André Ramos. Fronteiras da hermenêutica constitucional. São Paulo: Método, 2006, p. 76.
apreende o sentido do mundo de acordo com a sua condição histórica. É o que
escreve o professor de Heidelberg:
Na realidade, não é a história que pertence a nós mas nós é que a ela pertencemos. Muito antes de que nós compreendamos a nós mesmos na reflexão, já estamos nos compreendendo de uma maneira auto-evidente na família, na sociedade e no Estado em que vivemos. A lente da subjetividade é um espelho deformante. A auto-reflexão do indivíduo não é mais que uma centelha na corrente cerrada da vida histórica. Por isso os preconceitos de um indivíduo são, muito mais que seus juízos, a realidade histórica de seu ser110.
Hans-Georg Gadamer constata, então, que o homem conhece a partir de “pré-
conceitos”, os quais são projetados e incorporados ao que se procura conhecer. “Se
se quer fazer justiça ao modo de ser finito e histórico do homem, é necessário levar
a cabo uma drástica reabilitação do conceito do preconceito e reconhecer que
existem preconceitos legítimos”
111. Dessa forma, o conhecimento de um objeto
implica também o conhecimento de preconceitos, o que rompe com a crença da
neutralidade do método.
Quem quiser compreender um texto deverá sempre realizar um projeto. Ele projeta de antemão um sentido do todo, tão logo se mostre um primeiro sentido no texto. Esse primeiro sentido somente se mostra porque lemos o texto já sempre com certas expectativas, na perspectiva de um determinado sentido. A compreensão daquilo que está no texto consiste na elaboração desse projeto prévio, que sofre uma constante revisão à medida que aprofunda e amplia o sentido do texto112.
Pautado nisso, Hans-Georg Gadamer promove uma reviravolta hermenêutica na
Filosofia, haja vista a importância da história, da tradição e dos preconceitos para a
(re)construção da ideia de verdade. Ele destaca como o problema hermenêutico
revela-se a partir da relação fundamental existente entre pensamento, compreensão
e linguagem. Segundo Hans-Georg Gadamer
113, a linguagem possibilita toda a
experiência hermenêutica e permite o entendimento sobre as coisas.
Daí é relevante considerar a questão da pré-compreensão do intérprete. A
compreensão é uma atividade referencial, ou seja, ocorre através de uma constante
110 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 3. ed. Trad. Flávio Paulo Meurer. Petrópolis: Vozes, 1999, t. I, p. 415-416.
111 Ibidem, p. 416. 112 Ibidem, p. 75. 113 Ibidem, p. 461.
referência à nossa experiência. A compreensão viabiliza-se quando se compara o
objeto cognoscível com aquilo que já é conhecido pelo indivíduo. Friedrich Müller
exemplifica que “o que significam ‘casamento’, ‘Estado’, ‘ação’ e ‘culpa’ é algo que
sempre depende de como o ser humano interpreta a si próprio e a seu mundo”
114.
Nas palavras de Karl Larenz, “o texto nada diz a quem não entenda já alguma coisa
daquilo de que ele trata”
115. À luz disso, como o Direito é valorável, a carga
axiológica inserida na pré-compreensão norteará o intérprete jurídico na consecução
da sua atividade. Karl Larenz escreve acerca da relação entre o intérprete e a sua
pré-compreensão:
No início do processo do compreender existe, por regra, uma conjectura de sentido, mesmo que por vezes ainda vaga, que acorre a inserir-se numa primeira perspectiva, ainda fugidia. O intérprete está munido de uma “pré- compreensão”, com que acede ao texto. Esta pré-compreensão refere-se à coisa de que o texto trata e à linguagem em que se fala dela. Sem uma tal pré-compreensão, tanto num como noutro aspecto, seria difícil, ou de todo impossível, formar-se uma “conjectura de sentido”. O intérprete necessita da sua para se entranhar no processo do compreender. Pode surgir como insuficiente no decurso deste processo e então terá de ser retificada por ele de modo adequado. Quanto mais longa e pormenorizadamente alguém se ocupa de uma coisa, quanto mais profundamente nela tenha penetrado, tanto mais rica será a sua pré-compreensão, tanto mais cedo se formará nele uma adequada conjectura de sentido e tanto mais rapidamente se concluirá o processo do compreender116.
Prossegue ainda Karl Larenz:
A pré-compreensão de que o jurista carece não se refere só à “coisa Direito”, à linguagem, em que dela se fala, e à cadeia de tradição em que se inserem sempre os textos jurídicos, as decisões judiciais e os argumentos habituais, mas também a contextos sociais, às situações de interesses e às estruturas das relações da vida a que se referem as normas jurídicas. Estas não só contêm uma regulação que aspira a validade jurídica, como também disciplinam determinadas relações sociais, processos e modos de comportamento relativamente aos quais a circunstância de serem regulados pelo Direito revela por si um dos aspectos sob o qual se manifestam. O jurista que não chegue a vislumbrar nada dos outros aspectos, tão-pouco chegará a compreender a sua disciplina jurídica117.
Todavia, a pré-compreensão deve ser tomada convenientemente, como nos adverte
Hans-Georg Gadamer.
114 MÜLLER, Friedrich. Teoria estruturante do direito. Trad. Peter Naumann e Eurides Avance de Souza. São Paulo: RT, 2008, p. 125-126.
115 LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. Trad. José Lamego. 3. ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1997, p. 441.
116 Ibidem, p. 288. 117 Ibidem, p. 290.
Aquele que quer compreender não pode se entregar, já desde o início, à casualidade de suas próprias opiniões prévias e ignorar o mais obstinada e consequentemente possível a opinião do texto – até que este, finalmente, já não possa ser ouvido e perca sua suposta compreensão. Quem quer compreender um texto, em princípio, tem que estar disposto a deixar que ele diga alguma coisa por si. Por isso, uma consciência formada hermeneuticamente tem que se mostrar receptiva, desde o princípio, para a alteridade do texto. Mas essa receptividade não pressupõe nem “neutralidade” com relação à coisa nem tampouco auto-anulamento, mas inclui a apropriação das próprias opiniões prévias e preconceitos, apropriação que se destaca destes. O que importa é dar-se conta das próprias antecipações, para que o próprio texto possa apresentar-se em sua alteridade e obtenha assim a possibilidade de confrontar sua verdade com as próprias opiniões prévias118.
Dessa forma, o intérprete não deve deixar que a pré-compreensão impeça-o de
alcançar a interpretação mais adequada do texto normativo.
Ainda acerca de como se dá o entendimento por meio da linguagem, Ludwig
Wittgenstein evidencia que as palavras só adquirem sentido por meio do uso
compartilhado, e também trabalha, assim como Hans-Georg Gadamer, as noções de
historicidade e intersubjetividade do ser.
Neste aspecto, Cristina Queiroz destaca que a tese heideggeriana e gadameriana
da historicidade da interpretação e da acentuada relação entre a hermenêutica e a
linguagem – uma importante doutrina filosófica contemporânea – “confirma nos
teóricos do direito a ideia de que os significados normativos podem não apenas
variar no tempo como podem ainda ser interpretados de forma cambiante e
diferenciada”
119.
Como as necessidades sociais estão em permanente evolução, o texto deve ser
interpretado em função das necessidades do momento e pode mudar de sentido ao
longo do período em que estiver em vigor. “Dentro desta perspectiva, o intérprete
pode adaptar livremente o texto às necessidades sociais de sua época buscando
118 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 3. ed. Trad. Flávio Paulo Meurer. Petrópolis: Vozes, 1999, t. I, p. 405.
119 QUEIROZ, Cristina. Interpretação constitucional e poder judicial: sobre a epistemologia da construção constitucional. Coimbra: Coimbra, 2000, p. 151.
aquilo que seria o pensamento dos autores da lei se eles estivessem legislando
hoje”
120.
Neste sentido, a norma constitucional é capaz de se adequar para corresponder às
diferentes exigências variantes no tempo e produzir efeitos mesmo quando mudarem
os fatos e os valores em razão dos quais veio à luz. “Através da interpretação, torna-
se possível a adaptação das normas jurídicas às mudanças ocorridas no seio da
sociedade, à sua natural evolução, ou até mesmo o surgimento de novos valores e
ideologias”
121. A este respeito, anota Karl Larenz:
Dentre os fatores que dão motivo a uma revisão e, com isso, frequentemente, a uma modificação da interpretação anterior, cabe uma importância proeminente à alteração da situação normativa. Trata-se a este propósito de que as relações fáticas ou usos que o legislador histórico tinha perante si e em conformidade aos quais projetou a sua regulação, para os quais a tinha pensado, variaram de tal modo que a norma dada deixou de se “ajustar” às novas relações122.
A norma mantém-se em permanente evolução para responder às novas
necessidades, aos novos problemas surgidos em razão dos novos tempos,
ganhando novos sentidos que o seu elaborador não poderia ter previsto. O direito
constitucional, assim, está estreitamente relacionado ao estado da sociedade por ele
representada, embora dela se distinga para exercer sua tarefa normativa de
organizá-la.
Deste modo, o ordenamento constitucional “é formado e conformado pela
realidade”
123, é um sistema dinâmico que interage com a realidade fática que visa a
regular. As mudanças havidas na sociedade interferem no sistema constitucional,
que deve, por sua vez, acompanhar estas transformações. “Não se faz possível,
120 Tradução nossa do texto original: “Dans cette perspective, l’interprète peut adapter librement le texte aux nécessités sociales de son époque en recherchant ce que serait la pensée des auteurs de la loi s’ils avaient à légiférer aujourd’hui”. (BERGEL, Jean-Louis. Méthodologie juridique. Paris: PUF, 2001, p. 118)
121 BASTOS, Celso Ribeiro; MEYER-PFLUG, Samantha. A interpretação como fator de desenvolvimento e atualização das normas constitucionais. In: SILVA, Virgílio Afonso da (org.). Interpretação constitucional. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 157.
122 LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. Trad. José Lamego. 3. ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1997, p. 495.
123 GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 79.