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CONCRETIZAÇÃO NORMATIVA

No documento DOUTORADO EM DIREITO SÃO PAULO 2009 (páginas 73-96)

O caráter aberto e amplo da Constituição exige maior atenção com a interpretação

constitucional. Isso porque “a hermenêutica ensina ao intérprete que as diretivas de

ação e as proposições valorativas, contidas nos preceitos jurídicos, só podem ser

cabalmente compreendidas e inteligidas quando aplicadas a situações concretas”

244

.

Como salienta Konrad Hesse

245

, a interpretação é fundamental para o direito

constitucional, pois, em razão do caráter aberto e amplo da Constituição, os

241 TAVARES, André Ramos. Fronteiras da hermenêutica constitucional. São Paulo: Método, 2006, p. 24.

242 AGRA, Walber de Moura. Curso de direito constitucional. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 17.

243 ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho dúctil: ley, derechos, justicia. Trad. Marina Gascón. Madri: Trotta, 2008, p. 146.

244 QUEIROZ, Cristina. Interpretação constitucional e poder judicial: sobre a epistemologia da construção constitucional. Coimbra: Coimbra, 2000, p. 151.

245 HESSE, Konrad. Escritos de derecho constitucional. 2. ed. Trad. Pedro Cruz Villalon. Madri: Centro de Estudios Constitucionales, 1992, p. 34.

problemas de interpretação surgem com maior frequência neste do que em outros

setores do ordenamento jurídico cujas normas são mais detalhadas.

Todas estas características das normas constitucionais exigem que a atividade do

intérprete ocorra no campo da “nova hermenêutica” constitucional. Neste sentido, a

concretização

246

normativa é uma exigência da abertura constitucional.

Friedrich Müller

247

e Konrad Hesse

248

integram o que alguns constitucionalistas

designam por “nova hermenêutica”, um importantíssimo instrumento de

concretização da democracia participativa. Os autores que integram a “nova

hermenêutica” partem do pressuposto que a diferenciação social e o pluralismo

político são as principais características da sociedade contemporânea. Nesse

contexto de conflito político e social, no qual se incluem formas democráticas de

participação nos assuntos públicos, não seria razoável tomar o ordenamento

constitucional como um sistema normativo completo e fechado, caracterizado pela

ordem e pela unidade.

A criação de normas constitucionais abertas, ou seja, normas com pouca densidade

normativa, é uma das características das sociedades complexas, porque, diante da

multiplicidade dos problemas que podem surgir, a Constituição necessita de

soluções para acompanhar este casuísmo problemático, e, por isso, o conteúdo

dessas normas necessita ser objeto de concretização

249

. Para Konrad Hesse,

246 Vale atentar aqui para “a necessidade de distinguir concretização de efetivação (eficácia social) ou de eficácia (jurídica)”. (ADEODATO, João Maurício. Ética e retórica: para uma teoria da dogmática jurídica. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 245)

247 Cf. MÜLLER, Friedrich. Teoria estruturante do direito. Trad. Peter Naumann e Eurides Avance de Souza. São Paulo: RT, 2008. MÜLLER, Friedrich. O novo paradigma do direito: introdução à teoria e metódica estruturantes. Trad. Dimitri Dimoulis, Gilberto Bercovici, Peter Naumann, Rodrigo Mioto dos Santos, Rossana Ingrid Jansen dos Santos, Tito Lívio Cruz Romão e Vivianne Geraldes Ferreira. São Paulo: RT, 2007. Ver MÜLLER, Friedrich. Métodos de trabalho do direito constitucional. Trad. Peter Naumann. 2. ed. rev. São Paulo: Max Limonad, 2000. Ver também MÜLLER, Friedrich. Quem é o povo? A questão fundamental da democracia. Trad. Peter Naumann. 2. ed. São Paulo: Max Limonad, 2000.

248 HESSE, Konrad. Escritos de derecho constitucional. 2. ed. Trad. Pedro Cruz Villalon. Madri: Centro de Estudios Constitucionales, 1992. Ver HESSE, Konrad. Elementos de direito constitucional da República Federal da Alemanha. Trad. Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1998. Além disso, ver também HESSE, Konrad. A força normativa da constituição. Trad. Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1991.

249 João Maurício Adeodato destaca que a norma vai muito além daquilo que está no texto da Constituição e das leis em geral. “No âmbito da teoria do direito, esse problema da concretização pode ser bem percebido na complexa distinção entre o direito adquirido e a expectativa de direito. As definições genéricas fornecidas pela ciência dogmática do direito a respeito parecem retoricamente

a interpretação constitucional é “concretização” (Konkretisierung). Precisamente o que não aparece de forma clara como conteúdo da Constituição é o que deve ser determinado mediante a incorporação da “realidade” de cuja ordenação se trata. Neste sentido a interpretação constitucional tem caráter criativo: o conteúdo da norma interpretada só fica completo com sua interpretação; no entanto, só nesse sentido possui caráter criativo: a atividade interpretativa fica vinculada à norma250.

Enquanto, na hermenêutica tradicional, “a interpretação era compreendida apenas

como a descoberta do sentido do texto normativo”, na concretização “o processo

interpretativo não é apenas cognitivo, mas fundamentalmente volitivo, criativo”

251

.

Neste sentido, “o direito é essencialmente voluntarista, vale dizer, necessita da

vontade do intérprete”

252

. Todavia, Eros Roberto Grau adverte que

o intérprete não é um criador ex nihilo; ele produz a norma – não, porém, no sentido de fabricá-la, mas no sentido de reproduzi-la. O produto da interpretação é a norma expressada como tal. Mas ela (a norma) parcialmente preexiste, potencialmente, no invólucro do texto, invólucro do

enunciado253.

Assim, o texto normativo previamente dado não constitui a norma jurídica, mas

apenas constitui o ponto de partida para sua construção ante o caso concreto

254

. Por

isso, deve-se distinguir o papel desempenhado pelo legislador constituinte (ou

reformador), que cria (ou reforma) o texto constitucional, do papel que assume o

intérprete da Constituição de produzir as suas normas. Nesse sentido, Marcelo

Neves escreve que

claras, do ponto de vista semântico; o problema aparece quando, diante de um caso concreto, faz-se necessário determinar se se trata de um ou de outro”. (ADEODATO, João Maurício. Ética e retórica: para uma teoria da dogmática jurídica. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 219)

250 “La interpretación constitucional es “concretización” (Konkretisierung). Precisamente lo que no aparece de forma clara como contenido de la Constitución es lo que debe ser determinado mediante la incorporación de la “realidad” de cuya ordenación se trata. En este sentido la interpretación constitucional tiene carácter creativo: el contenido de la norma interpretada sólo queda completo con su interpretación; ahora bien, sólo en ese sentido posee carácter creativo: la actividad interpretativa queda vinculada a la norma”. (HESSE, Konrad. Escritos de derecho constitucional. 2. ed. Trad. Pedro Cruz Villalon. Madri: Centro de Estudios Constitucionales, 1992, p. 40-41)

251 TAVARES, André Ramos. Fronteiras da hermenêutica constitucional. São Paulo: Método, 2006, p. 60.

252 BASTOS, Celso Ribeiro. Hermenêutica e interpretação constitucional. 3. ed. São Paulo: Celso Bastos, 2002, p. 47.

253 GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 86.

254 ADEODATO, João Maurício. Ética e retórica: para uma teoria da dogmática jurídica. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 214.

não se fala de legislação e de atividade constituinte como procedimentos de produção de norma jurídica (geral), mas sim de emissão de texto legal (“Gesetzestextgebung”) ou de emissão de texto constitucional (“Verfassungstextgebung”). A norma jurídica, especialmente a norma constitucional, é produzida no decorrer do processo de concretização255.

Isto ocorre porque, no método hermenêutico concretizador, o papel do intérprete não

é o de desvelar o “sentido oculto” do texto normativo, mas sim o de criar a norma a

ser aplicada em uma situação concreta. A concretização é a própria elaboração de

uma norma jurídica geral que não existe (ainda) antes do caso concreto, e não “a

simples assimilação (Nachvollzug) da intenção do legislador ou de operações

intelectuais objetivamente preexistentes”

256

. Em virtude disso, é possível dizer que

“toda concretização constitucional é aperfeiçoadora e criativa”

257

e que “a norma é

construída, pelo intérprete, no decorrer do processo de concretização do direito”

258

.

Assim, de acordo com a teoria estruturante do direito, a concretização quer dizer “a

produção de uma norma jurídica geral no marco da solução de um caso

determinado”

259

.

O procedimento genérico mediante o qual se procura adequar normas e fatos e decidir, tradicionalmente conhecido por “interpretação” ou “interpretação e aplicação do direito”, Müller denomina “concretização da norma” (Normkonkretisierung), procurando justamente afastar-se da hermenêutica jurídica tradicional e determinar mais precisamente seus conceitos e procedimentos. Nessa tarefa, insiste que a concretização não significa silogismo, subsunção, efetivação, aplicação ou individualização concreta do direito a partir da norma geral. Esses critérios, puramente cognitivos e lógicos, sem exigências de responsabilidade e fundamentação, constituem herança equivocada do positivismo legalista exegético. Só na concretização, ao ser decidido o caso, é produzida a norma260.

Isso faz Friedrich Müller dizer que a teoria estruturante do direito não é apenas uma

nova concepção, mas também uma concepção inovadora da teoria do direito. Ela

255 NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 85.

256 SILVA, Kelly Susane Alflen da. Hermenêutica jurídica e concretização judicial. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2000, p. 422.

257 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 13. ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 504.

258 GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 77-78.

259 SILVA, Kelly Susane Alflen da. Hermenêutica jurídica e concretização judicial. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2000, p. 422.

260 ADEODATO, João Maurício. Ética e retórica: para uma teoria da dogmática jurídica. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 232.

“resulta, pela primeira vez, de um conceito pós-positivista de norma jurídica”

261

. Isso

porque a norma jurídica não mais se encontra pronta nos textos normativos, mas

somente será produzida em cada processo particular de solução jurídica de um

caso. Deste modo, escreve Friedrich Müller:

“Concretizar” não significa aqui, portanto, à maneira do positivismo antigo, interpretar, aplicar, subsumir silogisticamente e concluir. E também não, como no positivismo sistematizado da última fase de Kelsen, “individualizar” uma norma jurídica genérica codificada na direção do caso individual “mais restrito”. Muito pelo contrário, “concretizar” significa: produzir diante da provocação pelo caso de conflito social, que exige uma solução jurídica, a norma jurídica defensável para esse caso no quadro de uma democracia e de um Estado de Direito262.

A este respeito, José Joaquim Gomes Canotilho faz distinções entre realizar

263

,

interpretar

264

e concretizar a Constituição. Sobre este último, assim escreve:

Concretizar a Constituição traduz-se, fundamentalmente, no processo de densificação de regras e princípios constitucionais. A concretização das

normas constitucionais implica um processo que vai do texto da norma (do seu enunciado) para uma norma concreta – norma jurídica – que, por sua vez, será apenas um resultado intermédio, pois só com a descoberta da

norma de decisão para a solução dos casos jurídico-constitucionais teremos

o resultado final da concretização. Esta “concretização normativa” é, pois, um trabalho técnico-jurídico; é, no fundo, o lado “técnico” do procedimento estruturante da normatividade. A concretização, como se vê, não é igual à interpretação do texto da norma; é, sim, a construção de uma norma

jurídica265.

261 MÜLLER, Friedrich. O novo paradigma do direito: introdução à teoria e metódica estruturantes. Trad. Dimitri Dimoulis, Gilberto Bercovici, Peter Naumann, Rodrigo Mioto dos Santos, Rossana Ingrid Jansen dos Santos, Tito Lívio Cruz Romão e Vivianne Geraldes Ferreira. São Paulo: RT, 2007, p. 161.

262 Ibidem, p. 150.

263 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 5. ed. Coimbra: Almedina, 2002, p. 1184: “Realizar a Constituição significa tornar juridicamente eficazes as normas constitucionais. Qualquer Constituição só é juridicamente eficaz (pretensão de eficácia) através da sua realização. Esta realização é uma tarefa de todos os órgãos constitucionais que, na actividade legiferante, administrativa e judicial, aplicam as normas da Constituição. Nesta “tarefa realizadora” participam ainda todos os cidadãos (pluralismo de intérpretes) que fundamentam na Constituição, de forma directa e imediata, os seus direitos e deveres”.

264 Ibidem, p. 1184-1185. “Interpretar uma norma constitucional consiste em atribuir um significado a um ou vários símbolos linguísticos escritos na Constituição com o fim de se obter uma decisão de problemas práticos normativo-constitucionalmente fundada. Sugerem-se aqui três dimensões importantes da interpretação da Constituição: (1) interpretar a Constituição significa procurar o direito contido nas normas constitucionais; (2) investigar o direito contido na lei constitucional implica uma

actividade – actividade complexa – que se traduz fundamentalmente na “adscrição” de um significado

a um enunciado ou disposição linguística (“texto da norma”); (3) o produto do acto de interpretar é o significado atribuído”.

Todavia, apesar da pretensão de sucessão do termo “interpretação” pelo termo

“concretização”, como deseja Friedrich Müller, esclarece André Ramos Tavares que

é “possível continuar a empregar o termo interpretação, desde que compreendido no

seu sentido ‘moderno’, de concretização, em oposição ao tradicional”

266

.

Para Friedrich Müller, a interpretação da norma “é um dos elementos mais

importantes no processo de concretização, mas somente um elemento”

267

. Uma

norma precisa de interpretação não porque ela é destituída de clareza, “mas,

sobretudo, porque ela deve ser aplicada a um caso (real ou fictício)”

268

. Como é

impossível isolar a norma da realidade, na concretização da norma deve-se

considerar tanto a norma propriamente dita quanto a realidade social que o texto

intenta conformar. Dessa forma, Karl Engisch destaca que a concretização do direito

significa orientação do direito ao real e não a “imposição do direito à realidade e

tendência a uma realidade a ser ordenada”

269

. Friedrich Müller ainda acrescenta que

não é possível descolar a norma jurídica do caso jurídico por ela regulamentado nem o caso da norma. Ambos fornecem de modo distinto, mas complementar, os elementos necessários à decisão jurídica. Cada questão jurídica entra em cena na forma de um caso real ou fictício. Toda e qualquer norma somente faz sentido com vistas a um caso a ser (co)solucionado por ela270.

Ademais, José Joaquim Gomes Canotilho aponta que o método hermenêutico-

concretizador realça e ilumina vários pressupostos da tarefa interpretativa:

(1) os pressupostos subjetivos, dado que o intérprete desempenha um papel criador (pré-compreensão) na tarefa de obtenção do sentido do texto constitucional; (2) os pressupostos objetivos, isto é, o contexto, atuando o intérprete como operador de mediações entre o texto e a situação em que se aplica; (3) relação entre o texto e o contexto com a mediação criadora do

266 TAVARES, André Ramos. A Constituição aberta: elementos de uma hermenêutica constitucional. In: AGRA, Walber de Moura (coord.). Retrospectiva dos 20 anos da Constituição Federal. São Paulo: 2009, p. 9.

267 MÜLLER, Friedrich. Métodos de trabalho do direito constitucional. Trad. Peter Naumann. 2. ed. rev. São Paulo: Max Limonad, 2000, p. 61.

268 Ibidem, p. 61-62.

269 ENGISCH, Karl. La idea de concreción en el derecho y en la ciencia jurídica actuales. Trad. Juan José Gil Cremades. Granada: Comares, 2004, p. 177. Para atribuir credibilidade, segue texto original: “concreción del derecho significa por tanto orientación del derecho a lo real, no simplemente, como hasta ahora, imposición del derecho a la realidad y tendencia a una realidad a estructurar”. 270 MÜLLER, Friedrich. Métodos de trabalho do direito constitucional. Trad. Peter Naumann. 2. ed. rev. São Paulo: Max Limonad, 2000, p. 63.

intérprete, transformando a interpretação em “movimento de ir e vir” (círculo hermenêutico)271.

Deste modo, há um círculo hermenêutico “que vai do texto para o problema e vice-

versa, num fluxo não-linear, até que o produto final seja efetivamente lançado

(fechamento parcial) para uma aplicação (norma de decisão)”

272

. Karl Larenz

também se expressa acerca do círculo hermenêutico:

Uma vez que o significado das palavras em cada caso só pode inferir-se da conexão de sentido do texto e este, por sua vez, em última análise, apenas do significado – que aqui seja pertinente – das palavras que o formam e da combinação de palavras, então terá o intérprete – e, em geral, todo aquele que queira compreender um texto coerente ou um discurso – de, em relação a cada palavra, tomar em perspectiva previamente o sentido da frase por ele esperado e o sentido do texto no seu conjunto; e a partir daí, sempre que surjam dúvidas, retroceder ao significado da palavra primeiramente aceite e, conforme o caso, retificar este ou a sua ulterior compreensão do texto, tanto quanto seja preciso, de modo a resultar uma concordância sem falhas. Para isso, terá que lançar mão, como controle e auxiliares interpretativos, das “circunstâncias hermeneuticamente relevantes”273.

O círculo hermenêutico pressupõe um enlace dialético em que a compreensão é

moldada no processo relacional entre a consciência histórica do intérprete – através

da pré-compreensão formada pelos preconceitos trazidos pela tradição – e a

abertura interpretativa admitida pelo objeto a partir de seu mundo particular. Além

disso, o próprio objeto, no desdobramento do processo hermenêutico, altera a

compreensão do intérprete. É o que ressalta Hans-Georg Gadamer:

O círculo, portanto, não é de natureza formal. Não é nem objetivo nem subjetivo, descreve, porém, a compreensão como a interpretação do movimento da tradição e do movimento do intérprete. A antecipação de sentido, que guia a nossa compreensão de um texto, não é um ato da subjetividade, já que se determina a partir da comunhão que nos une com a tradição. Porém, essa nossa relação com a tradição, essa comunhão está submetida a um processo de contínua formação. Não se trata simplesmente de uma pressuposição, sob a qual nos encontramos sempre, porém nós mesmos vamos instaurando-a, na medida em que compreendemos, em que participamos do acontecer da tradição e continuamos determinando-o, assim, a partir de nós próprios. O círculo da compreensão não é, portanto,

271 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 5. ed. Coimbra: Almedina, 2002, p. 1196.

272 TAVARES, André Ramos. Fronteiras da hermenêutica constitucional. São Paulo: Método, 2006, p. 62.

273 LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. Trad. José Lamego. 3. ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1997, p. 286.

de modo algum, um círculo “metodológico”, pois isso sim, descreve um momento estrutural ontológico da compreensão274.

Em verdade, sem trazer qualquer prejuízo ao conceito, trata-se mais propriamente

de uma espiral hermenêutica, haja vista que o movimento de compreensão formado

por esta relação estabelece, ao longo do processo, novos patamares de

interpretação que, por sua vez, lançam novas luzes sobre os preconceitos e seguem

em direção a um entendimento mais adequado. Arthur Kauffmann destaca que não

se trata de um mero jogo de palavras, pois o círculo regressa ao ponto de partida,

enquanto que a espiral conduz a um plano superior

275

.

A teoria da concretização afirma que não há interpretação constitucional

independente de casos concretos

276

. Neste processo, a compreensão prévia do

intérprete assume um relevante pressuposto interpretativo subjetivo. Como escreve

Friedrich Müller, “as questões de interpretação são pré-decididas pela pré-

compreensão consciente ou inconsciente”

277

. O método concretista exige, então, “a

vinculação da interpretação à norma a ser concretizada, à (pré)-compreensão do

intérprete e ao problema concreto a ser resolvido”

278

. É a lição trazida por Konrad

Hesse.

A concretização pressupõe um “entendimento” do conteúdo da norma a ser concretizada. Esse não se deixa desatar da “(pré)-compreensão” do intérprete e do problema concreto a ser resolvido, cada vez. O intérprete não pode compreender o conteúdo da norma de um ponto situado fora da existência histórica, por se assim dizer, arquimédico, senão somente na situação histórica concreta, na qual ele se encontra, cuja maturidade enformou seus conteúdos de pensamento e determina seu saber e seu (pré)-juízo. Ele entende o conteúdo da norma de uma (pré)-compreensão,

274 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 3. ed. Trad. Flávio Paulo Meurer. Petrópolis: Vozes, 1999, t. I, p. 439-440.

275 KAUFFMANN, Arthur. Hermenéutica y derecho. Trad. José Antonio Santos. Granada: Comares, 2007, p. 144-145.

276 Acerca deste ponto, convém utilizar um exemplo de Ronald Dworkin: “Alguns filósofos acreditam que não existe nenhuma resposta certa para a questão de se Charles era corajoso se Charles estiver morto e se nunca deparou com qualquer ocasião de perigo durante sua vida, não porque ‘corajoso’ seja impreciso, mas porque é errado dizer que um homem foi corajoso ou não corajoso se não podemos ter nenhuma prova pertinente à questão do que ele era”. (DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. Trad. Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 178-179) 277 MÜLLER, Friedrich. Teoria estruturante do direito. Trad. Peter Naumann e Eurides Avance de Souza. São Paulo: RT, 2008, p. 62. Ver também MÜLLER, Friedrich. O novo paradigma do direito: introdução à teoria e metódica estruturantes. Trad. Dimitri Dimoulis, Gilberto Bercovici, Peter Naumann, Rodrigo Mioto dos Santos, Rossana Ingrid Jansen dos Santos, Tito Lívio Cruz Romão e Vivianne Geraldes Ferreira. São Paulo: RT, 2007, p. 83.

278 HESSE, Konrad. Elementos de direito constitucional da República Federal da Alemanha. Trad. Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1998, p. 63.

que primeiramente lhe torna possível olhar a norma com certas esperanças, projetar-se um sentido do todo e chegar a um anteprojeto que, então, em penetração mais profunda, carece da confirmação, correção e revisão até que, como resultado de aproximação permanente dos projetos revisados, cada vez, ao “objeto”, determine-se univocamente a unidade de sentido. Por causa dessa capacidade de (pré)-juízo de todo entendimento é importante não simplesmente efetuar as antecipações da (pré)-compreensão, senão torná-las conscientes e fundamentá-las mesmo para, assim, corresponder ao mandamento fundamental de toda interpretação: proteger-se contra o arbítrio de ideias e a estreiteza de hábitos de pensar imperceptíveis e dirigir o olhar “para as coisas mesmas”279.

A metódica estruturante de Friedrich Müller é formada por três elementos, quais

sejam, (i) o programa normativo, (ii) o âmbito normativo e (iii) a norma de decisão.

Segundo o método concretista

280

de Friedrich Müller

281

, há uma superação da

tensão dialética entre conservação da constituição formal e mutação, não havendo

identidade entre a norma e o texto da norma.

Quando juristas falam e escrevem sobre “a” constituição, referem-se ao texto da constituição; quando falam “da” lei, referem-se ao seu teor literal.

No documento DOUTORADO EM DIREITO SÃO PAULO 2009 (páginas 73-96)