• Nenhum resultado encontrado

Mutação constitucional por meio das práticas constitucionais

No documento DOUTORADO EM DIREITO SÃO PAULO 2009 (páginas 177-199)

2.4 MEIOS DE REALIZAÇÃO DA MUTAÇÃO CONSTITUCIONAL

2.4.5 Mutação constitucional por meio das práticas constitucionais

que são tidas como obrigatórias. Kenneth C. Wheare escreve que uma prática

constitucional é um processo de mudança “que certamente afeta a Constituição, às

vezes fazendo-a na prática uma letra morta, às vezes determinando o modo no qual

será interpretada ou exercitada na prática, mas que, de qualquer forma, deixa

inalterado seu texto”

635

.

634 MEIRELLES, Hely Lopes. Mandado de segurança, ação popular, ação civil pública, mandado de injunção, “habeas data”. 20. ed. atual. por Arnold Wald. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 43. 635 Tradução livre do original em inglês: “a process of change which certainly affects the law of the Constitution, sometimes by making it in practice a dead letter, sometimes by determining the way in which in practice it will be interpreted or exercised, but which, none the less, leaves its words unchanged”. (WHEARE, Kenneth C. Modern constitutions. London: Oxford University, 1975, p. 121)

Dessa forma, deve-se ter presente que, junto ao direito constitucional escrito, estão

também aqueles usos ou normas jurídicas consuetudinárias que completam,

interpretam ou adaptam os textos constitucionais

636

. Francis Hamon, Michel Troper e

Georges Burdeau trazem um exemplo do direito constitucional britânico, como se vê:

Na Grã-Bretanha, quando a maioria da Câmara dos Comuns manifesta sua desconfiança com o gabinete, o primeiro ministro envia sua demissão à Rainha. Não existe norma escrita que lhe obrigue a isto. Poder-se-ia pensar então que, já que esta conduta não está expressamente prescrita, nem proibida, o primeiro ministro teria a faculdade de realizar este procedimento ou se abster dele. Entretanto, há mais de dois séculos, quando estas circunstâncias ocorrem, o primeiro ministro sempre apresenta sua demissão e existe um sentimento universalmente disseminado de que este procedimento não constitui uma simples faculdade, mas uma verdadeira obrigação637.

Ademais, Pedro de Vega anota que as mutações constitucionais podem derivar de

“simples práticas políticas que, ou não ultrapassam sua condição de fatos, tornando-

se normas de natureza político-social (convenções), ou aspiram converter-se em

autênticos fatos jurídicos (costumes)”

638

.

As práticas constitucionais compreendem diversas figuras – como os usos, as

convenções constitucionais, as normas de correção e os costumes – que se formam

à luz da Constituição, de acordo com a experiência constitucional de cada país. Um

problema que se tem com relação às práticas constitucionais, como reconhece

Kenneth C. Wheare, é que, “em muitas vezes, é difícil dizer se uma forma particular

de conduta é obrigatória ou somente persuasiva”

639

.

636 VIGO, Rodolfo Luis. Interpretación constitucional. 2. ed. Buenos Aires: Lexis Nexis/Abeledo- Perrot, 2004, p. 57.

637 Tradução nossa do texto original em francês: “En Grande-Bretagne, lorsque la majorité de la Chambre des Communes a exprimé sa défiance au cabinet, le Premier ministre remet sa démission à la Reine. Il n’existe pas de norme écrite qui lui en fasse obligation. On pourrait donc penser que, puisque cette conduite n’est pas expressément prescrite, ni d’ailleurs interdite, il a le droit de le faire, comme de s’en abstenir. Cependant, depuis plus de deux siècles, lorsque ces circonstances se produisent, le Premier ministre présente toujours sa démission et il existe un sentiment universellement répandu qu’il s’agit pour lui non pas d’une simple faculté mais d’une réelle obligation”. (HAMON, Francis. TROPER, Michel. BURDEAU, Georges. Droit constitutionnel. 27.ed. Paris: LGDJ, 2001, p. 53)

638 Tradução livre do original em espanhol: “Otras veces derivan de simples prácticas políticas que, o no sobrepasan su condición de hechos, quedando convertidas en normas de naturaleza político- social (convenciones), o aspiran a convertirse en auténticos hechos jurídicos (costumbres)”. (VEGA, Pedro de. La reforma constitucional y la problematica del poder constituyente. Madri: Tecnos, 1999, p. 189)

639 Para cotejo, é apresentado o original em inglês: “It is often difficult to say whether a particular course of conduct is obligatory or persuasive only”. (WHEARE, Kenneth C. Modern constitutions. London: Oxford University, 1975, p. 122)

O uso constitucional decorre de uma sucessão de atos substancialmente idênticos,

que conduz à criação e à consolidação de uma cadeia de precedentes. Nisto o uso

assemelha-se ao costume. Todavia, o uso também deste se difere. O uso não

possui uma consciência de obrigatoriedade, uma capacidade prescritiva com força

de obrigar e, em conseqüência, “não gera normas jurídicas em sentido estrito. De

certo modo, o uso poderia se passar por uma ‘continentalização’ das convenções

britânicas”

640

.

Acerca da importância dos usos no ordenamento constitucional espanhol, Manuel

Martínez Sospedra informa que

Os usos são, em seu núcleo essencial, práticas da aplicação da Constituição que, ao flexibilizar ou facilitar a sua aplicação, permitem que aquela se adapte às cambiantes necessidades e situações políticas. O fato de que não se trate de normas jurídicas, e, por isso, não nos encontremos diante de normas constitucionais, não deve diminuir a sua importância. Apesar da tendência ao avanço de Constituições extensas e detalhistas – como a espanhola de 1978 – ter reduzido drasticamente seu campo de atuação, não só são essenciais em alguns regimes constitucionais, como o britânico, mas também têm notável importância na hora de moldar a Constituição viva, a Constituição existente em um dado momento. A dissolução simultânea de ambas as Câmaras, a prática das mensagens reais em determinadas circunstâncias (fim de ano, Páscoa Militar), a consulta aos chefes dos grupos parlamentares em situações que afetem seriamente o interesse nacional, a procura do consenso na designação de determinados órgãos constitucionais ou na aprovação de determinadas leis, são, no caso espanhol, boa prova do que foi dito641.

Outra prática que se verifica é a convenção constitucional. Riccardo Guastini afirma

que as convenções constitucionais estão muito próximas dos costumes

640 Tradução livre do texto em espanhol: “no genera normas jurídicas en sentido estricto. En cierto modo el uso podría pasar por una ‘continentalización’ de las convenciones británicas”. (SOSPEDRA, Manuel Martínez. Manual de derecho constitucional. Valencia: Tirant lo Blanch, 2007, p. 204) 641 Tradução nossa do original em espanhol: “Los usos son, en su núcleo esencial, prácticas aplicativas de la Constitución que, al flexibilizar o facilitar la aplicación, permiten que aquella se adapte a las cambiantes necesidades y situaciones políticas. El hecho de que no se trate de normas jurídicas, y, por ello, no nos encontremos ante normas constitucionales no debe llevar a minusvalorar su importancia. Aunque la tendencia al desarrollo de Constituciones extensas y detallistas – como la española de 1978 – haya reducido drásticamente su campo de actuación no sólo son esenciales en algunos regímenes constitucionales, como el británico, sino que también tienen notable importancia a la hora de configurar la Constitución viva, la Constitución existente en un momento dado. La disolución simultánea de ambas Cámaras, la práctica de los mensajes reales en determinadas circunstancias (fin de año, Pascual Militar), la consulta a los jefes de los grupos parlamentarios en situaciones que afectan seriamente al interés nacional, la procura del consenso en la designación de determinados órganos constitucionales o en la aprobación de determinadas leyes, son, en el caso español, buena prueba de cuanto llevamos dicho”. (Ibidem, p. 205)

constitucionais, e o autor

reconhece que “não é fácil traçar concretamente um linha

de demarcação bem definida entre normas consuetudinárias e regras

convencionais”

642

, pois

As convenções constitucionais podem equiparar-se aos costumes constitucionais. A expressão “convenção constitucional” designa uma espécie de convênio ou acordo – tácito na maioria das vezes (e, por isso mesmo, segundo alguns, fictício) – entre os titulares dos órgãos constitucionais (e/ou entre as forças políticas). De tais acordos nascem regras de comportamento, não escritas643.

Quanto a isso, Pedro de Vega esclarece que as convenções constitucionais são

consideradas como simples regras que estabelecem práticas políticas, porém

carentes de todo tipo de coercibilidade jurídica. E acrescenta que, “ao contrário do

costume, que dá lugar à criação de uma norma jurídica sancionável, e cujo

cumprimento pode ser exigido perante o juiz, as convenções, se são violadas, não

produzem nenhuma consequência ou sanção jurídica”

644

.

Uadi Lammêgo Bulos

645

apresenta, como exemplo de convenção constitucional em

Portugal, a concessão anual de indultos pelo Presidente da República, a solicitação

ou não do Presidente da República de retirar decretos submetidos à promulgação, a

ratificação pelo Presidente de tratados internacionais devidamente aprovados e o

papel determinante dos partidos no exercício do mandato parlamentar. Todavia,

expõe que, nos sistemas de matriz britânica, as convenções constitucionais situam-

se em nível diferente, entre os usos e os costumes, ou como expressão de uma

juridicidade não formal e específica, ou, ainda, como ordem normativa sui generis,

irredutível às categorias habitualmente estudadas.

642 Para comparação, é apresentada a lavra em espanhol: “No es fácil trazar concretamente una nítida línea de demarcación entre normas consuetudinarias y reglas convencionales”. (GUASTINI, Riccardo. Estudios de teoría constitucional. Trad. Miguel Carbonell. Cidade do México: Fontamara, 2001, p. 253)

643 Tradução nossa do texto em espanhol: “Las convenciones constitucionales pueden equipararse a las costumbres constitucionales. La expresión ‘convención constitucional’ designa una especie de convenio o acuerdo – tácito las más de las veces (y, por eso mismo, según algunos, ficticio) – entre los titulares de los órganos constitucionales (y/o entre las fuerzas políticas). De tales acuerdos nacen reglas de comportamiento, no escritas”. (Ibidem, p. 250)

644 É exibido o original em espanhol, para cotejo: “A diferencia de la costumbre, que da lugar a la creación de una norma jurídica sancionable, y cuyo cumplimiento puede ser exigido ante el juez, las convenciones, si se quebrantan, no producen ninguna consecuencia o sanción jurídica”. (VEGA, Pedro de. La reforma constitucional y la problematica del poder constituyente. Madri: Tecnos, 1999, p. 202)

Na concepção de Kenneth C. Wheare, a convenção constitucional é uma prática que

goza de obrigatoriedade, visto que

Por convenção entende-se uma norma que se impõe, uma regra de conduta reconhecida como obrigatória por aqueles a quem se destina a vigência da Constituição; uso significa não mais que uma prática habitual. É evidente que um uso pode tornar-se uma convenção. O que é feito habitualmente acaba sendo o que deve ser feito646.

Todavia, para Manuel Martínez Sospedra

647

, as convenções britânicas são regras

que se impõem aos atores políticos e órgãos constitucionais, mas que não são

obrigatórias. O seu descumprimento não se submete a controle judicial e tem como

única consequência a responsabilidade política.

A ausência de obrigatoriedade das normas convencionais correlaciona-se a uma

maior facilidade para a sua construção. Pedro de Vega escreve que “as regras

convencionais surgem de um só precedente, são geradas por poucos sujeitos (que

ocupam situações de poder) e não necessitam do transcurso do tempo para poder

ser consideradas como tais”

648

.

Outra prática constitucional experimentada é a norma de correttezza costituzionale.

Paolo Biscaretti di Ruffia escreve que “regras de correção constitucional podem

transformar, substancialmente, a realidade da vida constitucional”

649

. Pautado na

obra deste autor italiano, Raul Machado Horta qualifica a norma de correção como

norma social, em que, muitas vezes, o Direito encontra seu pressuposto necessário.

“Estranha ao Direito, a norma de correção é dele indispensável complemento. A

646 Tradução nossa do texto original em inglês: “By convention is meant a binding rule, a rule of behavior accepted as obligatory by those concerned in the working of the Constitution; by usage is meant no more than a usual practice. Clearly a usage might become a convention. What is usually done comes to be what is done”. (WHEARE, Kenneth C. Modern constitutions. London: Oxford University, 1975, p. 122)

647 SOSPEDRA, Manuel Martínez. Manual de derecho constitucional. Valencia: Tirant lo Blanch, 2007, p. 204-205.

648 Tradução livre do original em espanhol: “Las reglas convencionales surgen de un solo precedente, se gestan por pocos sujetos (que ocupan situaciones de poder) y no necesitan el transcurso del tiempo para poder ser consideradas como tales”. (VEGA, Pedro de. La reforma constitucional y la problematica del poder constituyente. Madri: Tecnos, 1999, p. 203)

649 BISCARETTI DI RUFFIA, Paolo. Direito constitucional: instituições de direito público. Trad. Maria Helena Diniz. São Paulo: RT, 1984, p. 233-234.

norma de correttezza socorre, circunda, alimenta e vivifica o Direito, mas não é

Direito”

650

. Quanto a isso, Raul Machado Horta destaca ainda que

a distinção entre as convenções constitucionais do regime parlamentar britânico – Conventions of the Constitution – e as normas de correttezza

costituzionale. Enquanto as convenções constitucionais são normas

carentes de juridicidade, embora impregnadas de substancial relevo jurídico e dotadas de sanção política, as normas de correttezza costituzionale, segundo conceito elaborado no Direito Italiano, são normas do cerimonial, da boa educação política, do far play constitucional, de mera correção de comportamento das relações políticas651.

Em razão da semelhança existente, também é difícil diferenciar as normas de

correção dos usos, como reconhece Manuel Martínez Sospedra

652

.

As normas de correção permitem uma relação mais fácil entre os poderes públicos e

entre os órgãos constitucionais, manifestando-se no mútuo respeito e na vontade de

colaboração no correto exercício das atribuições e competências próprias de cada

um deles. São, como diz Manuel Martínez Sospedra

653

, regras de boa educação, de

urbanidade constitucional, destinadas a abrandar os contatos e a facilitar as mútuas

relações. Práticas como o juramento de membros do Governo perante o Rei, as

visitas dos titulares de órgãos constitucionais ao Monarca depois da nomeação ou

posse, as normas de protocolo etc. são exemplos de normas de correção.

Feitas estas considerações, parte-se agora para o estudo de uma outra prática

constitucional: o costume.

O costume representa, segundo Manoel Gonçalves Ferreira Filho

654

, o direito novo

estabelecido por uma decisão tácita da coletividade, de modo que dispensa a forma

escrita para comunicação e prova, visto que é manifestação da própria consciência

do grupo. José Joaquim Gomes Canotilho anota que existirá uma norma

constitucional consuetudinária “quando no sistema jurídico constitucional se verifica

a institucionalização social de um ato ou fato aos quais é reconhecida a significação

650 HORTA, Raul Machado. Direito constitucional. 3. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 105. 651 Ibidem, p. 105.

652 SOSPEDRA, Manuel Martínez. Manual de derecho constitucional. Valencia: Tirant lo Blanch, 2007, p. 205-206.

653 Ibidem, p. 205-206.

654 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de direito constitucional. 27. ed. atual. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 184.

de uma norma de caráter constitucional”

655

. Carlos Maximiliano leciona que o

“costume é uma norma jurídica sobre determinada relação de fato e resultante de

prática diuturna e uniforme, que lhe dá força de lei”

656

. Também sobre o tema,

escreve R. Limongi França.

Por direito consuetudinário, ensina Windscheid, se entende aquele que é usado de fato, sem que o Estado o haja estabelecido. De nossa parte, também aqui distinguimos o direito propriamente dito, na forma por ele assumida, sendo de se notar que, segundo Ribas, o costume constitui um meio pelo qual o direito, latente na “consciência nacional”, se manifesta, num estágio anterior ao da lei e da jurisprudência657.

A diferença entre o direito consuetudinário e o direito estatutário é que este é uma

criação de direito centralizada no Estado, enquanto que aquele é uma criação de

direito descentralizada. Mas é necessário frisar, como faz Maurice Hauriou, que “os

costumes constitucionais são, contudo, regras de direito”

658

. Convém acrescentar

ainda que o costume constitucional só existe ratione materiae, isto é, os derivados

dos comportamentos e das práticas de natureza constitucional

659

.

Todavia, a doutrina dos costumes constitucionais não é isenta de críticas, haja vista

que, como aduz Pedro de Vega,

655 Cf. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 5. ed. Coimbra: Almedina, 2002, p. 1119. “Assim, por exemplo, poderá afirmar-se a existência, entre nós, de um costume constitucional reconduzível à regra de nomeação obrigatória, pelo Presidente da República, como Primeiro-Ministro, do ‘candidato a Primeiro-Ministro’ indicado pelo partido que venceu as eleições? A Constituição escrita não fala em ‘candidatos a Primeiro-Ministro’ e estabelece apenas que o Primeiro-Ministro será nomeado pelo Presidente da República ‘tendo em conta os resultados eleitorais’ (CRP, art. 190º/1). Poder-se-á considerar existir entre nós uma regra consuetudinária que dispensa o Primeiro-Ministro em exercício de pôr o cargo à disposição do Presidente da República quando haja tomado posse um novo Presidente da República? Lembremos que o Primeiro-Ministro depende politicamente do Presidente da República (CRP, art. 193). Ter-se-ia institucionalizado no sistema jurídico-constitucional português o costume da admissibilidade da acumulação de empregos ou cargos públicos em contradição com a norma escrita do art. 269º/4 da CRP? Haverá uma regra consuetudinária de valor constitucional no sentido de transformar o Supremo Tribunal de Justiça num tribunal de carreira reservada a magistrados em clara oposição ao teor textual do art. 215º/4 da Constituição?”.

656 MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 19. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 154.

657 FRANÇA, R. Limongi. Hermenêutica jurídica. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 133.

658 Tradução livre da lavra em espanhol: “Las costumbres constitucionales son, sin embargo, reglas de derecho”. (HAURIOU, Maurice. Principios de derecho público y constitucional. Granada: Comares, 2003, p. 328)

659 VEGA, Pedro de. La reforma constitucional y la problematica del poder constituyente. Madri: Tecnos, 1999, p. 196-197.

Explicar as mutações constitucionais, e pretender inclusive justificá-las, apelando à categoria jurídica do costume, como faz um importante setor da doutrina francesa, não possui, logicamente, o menor fundamento. As mudanças constitucionais não podem valer-se em sua descrição das normas consuetudinárias, pela simples razão de que estas normas carecem no Direito Constitucional do significado e do alcance que adquirem em outros ramos do Direito660.

Exigem-se duas condições cumulativas

661

para se poder falar da institucionalização

de uma norma consuetudinária: a inveterata ou longaeva consuetudo (uso durante

largo tempo) e a opinio necessitatis ou opinio juris (convicção da sua juridicidade)

662

.

“De dois elementos o costume se compõe e deles resulta: um externo (elemento

material ou de fato), que é o uso, ou prática; outro interno (ou elemento psicológico),

que é a opinio juris et necessitatis”

663

.

O costume baseia-se na crença e na tradição sob a qual está o argumento de que

“algo deve ser feito, e deve sê-lo porque sempre o foi. A autoridade do costume

repousa, pois, nessa força conferida ao tempo e ao uso contínuo como reveladores

660 Tradução nossa do original em espanhol: “Explicar las mutaciones constitucionales, e intentar incluso justificarlas, apelando a la categoría jurídica de la costumbre, como hace un importante sector de la doctrina francesa, no posee, lógicamente, el menor fundamento. Los cambios constitucionales no pueden reconducirse en su exposición a las normas consuetudinarias, por la sencilla razón de que esas normas carecen en el Derecho constitucional del significado y del alcance que adquieren en otras ramas del Derecho”. (VEGA, Pedro de. La reforma constitucional y la problematica del poder constituyente. Madri: Tecnos, 1999, p. 198)

661 É oportuna a lição de Alf Ross: “Parece óbvio que nem todo costume pode ser considerado fonte do direito. Diz-se que somente o costume jurídico o é, e este é caracterizado por um elemento especial em termos de experiência psicológica, chamado opinio necessitatis sive obligationis, um sentimento de estar obrigado, ou uma convicção de que o comportamento exigido pelo costume é também um dever legal. Essa explicação, todavia, pode não ser correta. [...] O costume jurídico, tampouco, pode ser caracterizado pela convicção de que a conduta exigida por ele seja um dever legal, convicção que necessariamente equivale à expectativa de que o costume terá que ser aceito pelos tribunais como um padrão que sirva para fundar decisões. Tal convicção não pode surgir arbitrariamente, tendo, sim, que ser motivada e justificada por alguma qualidade inerente ao costume que é considerado obrigatório, e que o distingue de outros costumes. A convicção do caráter jurídico do costume tem, necessariamente, que derivar de um critério objetivo e o costume não pode ser definido por esta convicção. [...] Há um domínio particular no qual a doutrina tradicional de que o costume tem que haver sido observado por um longo tempo para ser reconhecido como jurídico, é evidentemente inadequada. Os costumes relativos ao comércio – especialmente os costumes ou usos comerciais de uma forma de comércio em particular – não são, de ordinário, muito antigos. A despeito disso, é obrigatório, além de constituir uma prática jurídica geral, levá-los em consideração ao interpretar os contratos”. (ROSS, Alf. Direito e justiça. Trad. Edson Bini. Rev. técnica de Alysson Leandro Mascaro. Bauru: Edipro, 2000, p. 120-124)

662 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 5. ed. Coimbra: Almedina, 2002, p. 1119-1120.

663 RÁO, Vicente. O direito e a vida dos direitos. 6. ed. atual. por Ovídio Rocha Barros Sandoval.

No documento DOUTORADO EM DIREITO SÃO PAULO 2009 (páginas 177-199)