• Nenhum resultado encontrado

TEXTO NORMATIVO E NORMA

No documento DOUTORADO EM DIREITO SÃO PAULO 2009 (páginas 49-57)

É importante estabelecer a distinção existente entre texto normativo e norma. Para

que a Constituição seja aplicada, é necessário fazer a interpretação do seu texto

normativo, a partir de onde será extraída a norma jurídica. “Da interpretação dos

textos resultam as normas. Texto e norma não se identificam. A norma é a

interpretação do texto normativo”

125

.

Quanto a isso, José Joaquim Gomes Canotilho considera

texto normativo qualquer documento elaborado por uma autoridade

normativa, sendo, por isso, identificável, prima facie, como “fonte de direito” num determinado sistema jurídico. Neste sentido, diz-se que um “texto normativo” (uma “fonte de direito”) é um conjunto de enunciados do discurso prescritivo. Discurso prescritivo (normativo, preceptivo, diretivo) é o discurso criado para modificar o comportamento dos homens126.

No mesmo diapasão, Riccardo Guastini chama “texto normativo qualquer documento

elaborado por uma autoridade normativa e, por isso, identificável prima facie como

fonte do direito dentro de um sistema jurídico dado”

127

.

124 BASTOS, Celso Ribeiro; MEYER-PFLUG, Samantha. A interpretação como fator de desenvolvimento e atualização das normas constitucionais. In: SILVA, Virgílio Afonso da (org.). Interpretação constitucional. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 145.

125 GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 27.

126 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 5. ed. Coimbra: Almedina, 2002, p. 1186.

127 GUASTINI, Riccardo. Das fontes às normas. Trad. Edson Bini. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 23-24.

Concernente a isso, Paulo de Barros Carvalho enfatiza que o enunciado apresenta-

se como um “conjunto de fonemas ou de grafemas que, obedecendo a regras

gramaticais de determinado idioma, consubstancia a mensagem expedida pelo

sujeito emissor para ser recebida pelo destinatário, no contexto da comunicação”

128

.

Norberto Bobbio, por sua vez, entende que enunciado é “a forma gramatical e

lingüística pela qual um determinado significado é expresso”

129

, e reconhece que “o

que interessa ao jurista, quando interpreta uma lei, é o seu significado”

130

. Neste

sentido, Robert Alexy leciona que a norma é o próprio significado do enunciado, e

que toda norma pode ser expressa através de um enunciado normativo

131

.

É importante destacar aqui que também o direito consuetudinário pode ser expresso

verbalmente e “mesmo o direito não-escrito é normativo e pode articular-se de modo

teorético-normativo sob pontos de vista da ideia normativa fundamental e do âmbito

normativo, podendo ser verbalmente expresso”

132

.

Apesar da existência de uma relação mútua entre texto normativo e norma, não há

uma correspondência biunívoca entre ambos

133

. José Joaquim Gomes Canotilho

leciona que é possível haver (a) disjunção de normas, quando um enunciado puder

exprimir uma ou outra norma; (b) conjunção de normas, quando um enunciado puder

exprimir várias normas conjuntamente; (c) sobreposição de normas, quando dois

enunciados puderem exprimir normas que se sobrepõem parcialmente; (d)

enunciado sem norma, quando um enunciado não é apto para exprimir uma norma;

e (e) norma sem enunciado, quando não há qualquer enunciado ou combinação de

enunciados que impliquem em uma norma, que é produzida pelo direito mediante

128 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário: fundamentos jurídicos da incidência. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 22.

129 BOBBIO, Norberto. Teoria da norma jurídica. Trad. Fernando Pavan Baptista e Ariani Bueno Sudatti. Bauru: Edipro, 2001, p. 73.

130 Ibidem, p. 74.

131 ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Trad. Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997, p. 51-54.

132 MÜLLER, Friedrich. Teoria estruturante do direito. Trad. Peter Naumann e Eurides Avance de Souza. São Paulo: RT, 2008, p. 205.

133 GUASTINI, Riccardo. Das fontes às normas. Trad. Edson Bini. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 34.

concretização

134

, do que se conclui que “é possível extrair norma mesmo onde não

haja texto”

135

. No mesmo sentido, anota Humberto Ávila:

Não existe correspondência entre norma e dispositivo, no sentido de que sempre que houver um dispositivo haverá uma norma, ou sempre que houver uma norma deverá haver um dispositivo que lhe sirva de suporte. Em alguns casos há norma mas não há dispositivo. [...] Em outros casos há dispositivo mas não há norma. [...] Em outras hipóteses há apenas um dispositivo, a partir do qual se constrói mais de uma norma. [...] Noutros casos há mais de um dispositivo, mas a partir deles só é construída uma norma. [...] E o que isso quer dizer? Significa que não há correspondência biunívoca entre dispositivo e norma – isto é, onde houver um não terá obrigatoriamente de haver o outro136.

O texto constitui o ponto de partida para a formação das significações e, ao mesmo

tempo, para a referência aos entes significados. “Em qualquer sistema de signos, o

esforço de decodificação tomará por base o texto, e o desenvolvimento

hermenêutico fixará nessa instância material todo o apoio de suas construções”

137

.

As normas resultam da interpretação dos textos, “interpretar é atribuir valores aos

símbolos, isto é, adjudicar-lhes significações e, por meio dessas, referências a

objetos”

138

. Ou ainda poder-se-ia dizer que interpretar, em geral, consiste em

reconhecer ou atribuir um significado ou um sentido a certos signos ou símbolos

139

,

ou, em outras palavras, que “interpretar a Constituição é conhecê-la, não apenas em

sua letra, mas também, em seu espírito, em seus significados mais profundos e em

seu verdadeiro alcance”

140

.

Dessa forma, as normas não são textos nem o conjunto deles, mas “os sentidos

construídos a partir da interpretação sistemática de textos normativos. Daí se afirmar

que os dispositivos se constituem no objeto da interpretação; e as normas, no seu

134 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 5. ed. Coimbra: Almedina, 2002, p. 1187-1190.

135 PEDRA, Adriano Sant’Ana. A natureza principiológica do duplo grau de jurisdição. Revista de Direito Administrativo, v. 247, p. 13-30, jan./abr. 2008, p. 19.

136 ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 30-31.

137 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário: fundamentos jurídicos da incidência. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 17.

138 Ibidem, p. 62.

139 VIGO, Rodolfo Luis. Interpretación constitucional. 2. ed. Buenos Aires: Lexis Nexis/Abeledo- Perrot, 2004, p. 13.

140 FERRAZ, Anna Candida da Cunha. Processos informais de mudança da Constituição. São Paulo: Max Limonad, 1986, p. 22.

resultado”

141

. Nas palavras de André Ramos Tavares, “a interpretação do Direito é a

operação intelectiva por meio da qual, a partir da linguagem vertida em disposições

(enunciados) com força normativa, o operador do Direito chega a determinado e

específico conteúdo”

142

.

Deve distinguir-se entre enunciado (formulação, disposição) da norma e

norma. A formulação da norma é qualquer enunciado que faz parte de um

texto normativo (de “uma fonte de direito”). Norma é o sentido ou significado adscrito a qualquer disposição (ou a um fragmento de disposição, combinação de disposições, combinações de fragmentos de disposições).

Disposição é parte de um texto ainda a interpretar; norma é parte de um

texto interpretado143.

O texto não existe em si mesmo. O texto não tem controle absoluto sobre a

interpretação que lhe será dada. “O fato é que a norma é construída, pelo intérprete,

no decorrer do processo de concretização do direito”

144

. Dessa forma, não há como

isolar a norma de sua concretização. “Concretização da norma é construção da

norma”

145

. A norma jurídica só se movimenta ante um fato concreto, pela ação do

aplicador do direito, que é o intermediário entre a norma e os fatos da vida. Por outro

lado, o intérprete constitucional não pode dar sentidos de forma arbitrária aos textos,

pois texto e norma não estão separados. Texto normativo e norma são coisas

distintas, mas não separadas – no sentido de que um possa existir sem o outro. E,

“também por isto, um não contém o outro”

146

.

Apesar da distinção entre texto normativo e norma, deve-se recorrer ao texto para se

verificar o conteúdo semântico da norma constitucional. “Isto é assim mesmo em

141 ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 30.

142 TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 77.

143 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 5. ed. Coimbra: Almedina, 2002, p. 1185-1186.

144 GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 29.

145 MÜLLER, Friedrich. Teoria estruturante do direito. Trad. Peter Naumann e Eurides Avance de Souza. São Paulo: RT, 2008, p. 231.

146 STRECK, Lenio Luiz. A diferença ontológica (entre texto e norma) como blindagem contra o relativismo no processo interpretativo: uma análise a partir do “ontological turn”. Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte, n. 89, p. 121-160, jan./jun. 2004, p. 130.

termos linguísticos: o texto da norma é o sinal linguístico; a norma é o que se revela

ou designa”

147

.

Vale dizer que o conteúdo da norma constitucional deve ser o conteúdo semântico

dos seus enunciados lingüísticos, tal como eles são mediatizados pelas convenções

lingüísticas relevantes. A formulação lingüística da norma constitui uma limitação

para as variações de sentido constitucionalmente possíveis, assumindo, assim, o

texto uma função negativa. Daí a razão para se recorrer ao texto no processo

metódico de concretização

148

.

Dessa forma, não é dado ao intérprete “extrair” o sentido que estaria “contido” no

texto. Isto porque os sentidos não estão acoplados ao texto, prontos para serem

desacoplados, “como queria a hermenêutica clássica e como quer, ainda hoje, boa

parte dos juristas que busca inserção nesse complexo terreno que é

hermenêutica”

149

. Sobre este ponto de vista, escreve Lenio Luiz Streck:

Talvez a chave da crise do Direito e dessa “baixa efetividade da Constituição” se deva ao fato de que o pensamento jurídico dominante continua acreditando que o jurista primeiro conhece (subtilitas inteligendi), depois interpreta (subtilitas explicandi), para só então aplicar (subtilitas

applicandi); ou , de forma mais simplista, que interpretar é desvendar o

sentido unívoco da norma (sic), ou, que interpretar é descobrir o sentido e o alcance da norma, procurando a significação dos conceitos jurídicos (sic), ou que interpretar é buscar o “verdadeiro sentido da norma”, ou ainda, que os métodos de interpretação são um “caminho seguro para alcançar corretos sentidos”, e que os critérios usuais de interpretação constitucional equivalem aos métodos e processos clássicos, destacando-se, dentre eles, o gramatical, o lógico, o teleológico objetivo, o sistemático e o histórico (sic), e, finalmente, para total desespero dos que, como eu, são adeptos da hermenêutica filosófica, que é possível descobrir a vontade da norma (o que isto significa ninguém sabe explicar) e que o legislador possui um espírito (sic)!150

A interpretação não pode ser produto de uma operação realizada em partes –

primeiro conhecer, depois interpretar, para só então aplicar –, como pretende o

processo interpretativo clássico. Em verdade, a interpretação imprescinde da

147 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 5. ed. Coimbra: Almedina, 2002, p. 1202.

148 Ibidem, p. 1202.

149 STRECK, Lenio Luiz. A diferença ontológica (entre texto e norma) como blindagem contra o relativismo no processo interpretativo: uma análise a partir do “ontological turn”. Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte, n. 89, p. 121-160, jan./jun. 2004, p. 153.

aplicação. Em virtude disso, Hans-Georg Gadamer

151

critica o processo

interpretativo clássico, superando as fases da hermenêutica clássica (subtilitas

inteligendi, subtilitas explicandi, subtilitas applicandi), que representam a ideia de

que a hermenêutica jurídica pode ser cindida em momentos distintos. Propõe, deste

modo, a applicatio, cujo resultado é a coisa mesma (Sache selbst), o caso em sua

singularidade.

Celso Ribeiro Bastos leciona que alguns estudiosos veem na interpretação um

caráter puramente cognoscitivo. Todavia, o autor filia-se a outra corrente de

pensamento, e nós também, que “entende que a interpretação implica em um juízo

decisório, dentro de uma esfera de decisões viáveis. As correntes voluntaristas

fazem repousar os critérios últimos da interpretação num ato de vontade”

152

. Por

isso, “a interpretação do direito é constitutiva, e não simplesmente declaratória. Vale

dizer: não se limita a uma mera compreensão dos textos e dos fatos; vai bem além

disso”

153

. Assim, afirma Eros Roberto Grau:

A interpretação do direito tem caráter constitutivo – não, pois, meramente declaratório – e consiste na produção, pelo intérprete, a partir de textos normativos e dos fatos atinentes a um determinado caso, de normas jurídicas a serem ponderadas para a solução desse caso, mediante a definição de uma norma de decisão154.

No mesmo sentido, José Joaquim Gomes Canotilho anota que a metódica

constitucional leva a sério os textos das normas constitucionais. Além do mais,

explica que levar a sério os textos das normas constitucionais significa “tomar estes

textos como pontos de partida da construção de normas jurídicas. Significa ainda ir

para além dos textos. Isso porque a interpretação do texto constitucional é uma

mediação-atribuição de sentido”

155

.

151 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 3. ed. Trad. Flávio Paulo Meurer. Petrópolis: Vozes, 1999, t. I, p. 459-460.

152 BASTOS, Celso Ribeiro. Hermenêutica e interpretação constitucional. 3. ed. São Paulo: Celso Bastos, 2002, p. 263.

153 GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 26.

154 Idem. A ordem econômica na Constituição de 1988: interpretação e crítica. 9. ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 147.

155 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 5. ed. Coimbra: Almedina, 2002, p. 1102.

Nesse sentido, Eros Roberto Grau vê o conjunto de textos normativos como apenas

ordenamento em potência, isto é, um conjunto de possibilidades de interpretação,

um conjunto de normas potenciais. “O significado (isto é, a norma) é o resultado da

tarefa interpretativa. Vale dizer: o significado da norma é produzido pelo

intérprete”

156

. E acrescenta:

A norma encontra-se, em estado de potência, involucrada no texto. Mas ela se encontra assim nele involucrada apenas parcialmente, porque os fatos também a determinam – insisto nisso: a norma é produzida, pelo intérprete, não apenas a partir de elementos que se desprendem do texto (mundo do dever-ser), mas também a partir de elementos do caso ao qual será ela aplicada, isto é, a partir de elementos da realidade (mundo o ser)157.

Dessa forma, afirmar que um texto é portador de vários sentidos significa que este

pode conter várias normas entre as quais “o órgão de aplicação deverá ‘escolher’

aquele que aplica. É nessa ‘escolha’ ou ‘opção’ que tem lugar a interpretação. [...]

Antes de essa interpretação ter lugar, não existe norma nem questão de fato

alguma, unicamente um texto”

158

. Por isso é que se nega “a existência de uma única

resposta correta (verdadeira, portanto) para o caso jurídico – ainda que o intérprete

esteja, através dos princípios, vinculado pelo sistema jurídico”

159

.

O próprio Hans Kelsen escreve que “a teoria usual da interpretação quer fazer crer

que a lei, aplicada ao caso concreto, poderia fornecer, em todas as hipóteses,

apenas uma única solução correta”

160

, como se o órgão aplicador do direito apenas

tivesse que pôr em ação o seu entendimento, mas não a sua vontade. Todavia, “a

interpretação de uma lei não deve necessariamente conduzir a uma única solução

como sendo a única correta”

161

.

156 GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 85.

157 Ibidem, p. 32.

158 QUEIROZ, Cristina. Interpretação constitucional e poder judicial: sobre a epistemologia da construção constitucional. Coimbra: Coimbra, 2000, p. 108.

159 GRAU, Eros Roberto. Op. cit., p. 40, nota 156.

160 KELSEN. Hans. Teoria pura do direito. Trad. João Baptista Machado. 6. ed. 3. tir. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 391.

E, como “a interpretação é uma escolha entre várias opções”

162

, a interpretação só

pode ser considerada como sendo a melhor dentro de um dado contexto. Nesse

sentido, o caso concreto ganha relevo, pois reflete uma nova situação em que o

intérprete jurídico tem que renovar a efetividade da norma. Segundo Hans-Georg

Gadamer, o intérprete jurídico não pode sujeitar-se à intenção dos que elaboraram a

lei. “Pelo contrário, está obrigado a admitir que as circunstâncias foram sendo

mudadas e que, por conseguinte, tem que determinar de novo a função normativa

da lei”

163

.

Isto porque a interpretação não persegue o sentido, mas um dos sentidos, que

deverá ser contextualmente possível e adequado. Essa possibilidade de múltiplas

interpretações viabiliza a evolução da norma ainda que o texto permaneça.

A este respeito, Eros Roberto Grau escreve que

a mutação constitucional é transformação de sentido do enunciado da Constituição sem que o próprio texto seja alterado em sua redação, vale dizer, na sua dimensão constitucional textual. Quando ela se dá, o intérprete extrai do texto norma diversa daquelas que nele se encontravam originariamente involucradas, em estado de potência164.

Além da mutação constitucional, que decorre de diferentes interpretações do mesmo

texto constitucional ao longo do tempo, a autonomia da norma em relação ao texto

também permite a existência de diferentes interpretações para diferentes

Constituições com textos similares para certos dispositivos.

A este respeito, Dimitri Dimoulis e Soraya Gasparetto Lunardi

165

fazem um estudo

comparado na jurisprudência de algumas Cortes constitucionais e percebem que são

tomadas decisões opostas, apesar de situação normativa semelhante.

162 BASTOS, Celso Ribeiro; MEYER-PFLUG, Samantha. A interpretação como fator de desenvolvimento e atualização das normas constitucionais. In: SILVA, Virgílio Afonso da (org.). Interpretação constitucional. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 155.

163 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 3. ed. Trad. Flávio Paulo Meurer. Petrópolis: Vozes, 1999, t. I, p. 485.

164 Reclamação nº 4.335-5/AC, Rel. Min. Gilmar Mendes.

165 DIMOULIS, Dimitri; LUNARDI, Soraya Gasparetto. Dimensões do processo objetivo. Autocriação e hetero-referência como meios de configuração do processo constitucional nas duas décadas da Constituição Federal de 1988. In: AGRA, Walber de Moura (coord.). Retrospectiva dos 20 anos da Constituição Federal. São Paulo: 2009, p. 147-148.

O Supremo Tribunal Federal brasileiro decidiu que o preâmbulo da Constituição

Federal não tem força normativa

166

. Todavia, o Conselho Constitucional francês, na

decisão nº 71-44, de 16 de julho de 1971, manifestou o entendimento de que “o

preâmbulo e qualquer documento ou princípio mencionado em seu preâmbulo fazem

parte do bloc de constitutionalité, i. e., da Constituição, e que tais são elementos

constitutivos da Constituição”, conforme noticia Michel Troper

167

.

Também decidiu o Supremo Tribunal Federal brasileiro que inexistem princípios (de

direito natural, de justiça etc.) superiores à Constituição Federal, e que, no sistema

constitucional brasileiro, a Excelsa Corte não tem jurisdição constitucional para julgar

a inconstitucionalidade de normas resultantes do poder constituinte originário

168

. Já

o Tribunal Constitucional Federal alemão reconhece a existência de princípios

supraconstitucionais que limitam o próprio poder constituinte originário. Ao analisar o

parâmetro de controle do direito constitucional alemão, Gilmar Ferreira Mendes

escreve que “o Bundesverfassungsgericht, na decisão de 23 de outubro de 1951,

reconheceu a existência de direito suprapositivo e a sua competência para aferir a

validade das normas com base nesses princípios”

169

.

No documento DOUTORADO EM DIREITO SÃO PAULO 2009 (páginas 49-57)