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Interpretação constitucional oficial e interpretação constitucional

No documento DOUTORADO EM DIREITO SÃO PAULO 2009 (páginas 154-158)

2.4 MEIOS DE REALIZAÇÃO DA MUTAÇÃO CONSTITUCIONAL

2.4.1 Interpretação constitucional oficial e interpretação constitucional

constitucional não-oficial

As modificações informais da Constituição podem emanar de órgãos estatais ou

não, pois há várias fontes possíveis de interpretação constitucional

541

. A

interpretação constitucional oficial ou orgânica é a modalidade que é desenvolvida

por órgão que retira da própria Constituição a força para aplicá-la, o que se dá, v.g.,

no desdobramento normativo dos princípios constitucionais e na decisão judicial que

aplica o texto constitucional.

Já a interpretação constitucional não-oficial ou inorgânica, da qual a interpretação

constitucional doutrinária é um exemplo, emana do trabalho dos juristas, “das

pesquisas dos cientistas do direito, buscando tão-somente compreender o

significado de uma norma ou de várias que participem da ordem constitucional, sem

qualquer intuito de aplicá-las”

542

. Não se pode desprezar a importância e a influência

dos intérpretes não oficiais – juristas, grupos de pressão, opinião pública etc. –, que,

muitas vezes, dão o fundamento necessário ou mesmo constituem a força motriz da

mutação constitucional.

A importância da interpretação constitucional não-oficial é destacada por Peter

Häberle, quando explica que a interpretação constitucional sempre foi vista como

uma atividade fechada, da qual “tomam parte apenas os intérpretes jurídicos

‘vinculados às corporações’ (zünftmässige Interpreten) e aqueles participantes

formais do processo constitucional”. Mas a interpretação constitucional não pode ser

vista como uma atividade fechada, mas sim como uma atividade aberta, na qual

541 WRÓBLEWSKI, Jerzy. Constitución y teoría general de la interpretación jurídica. Trad. Arantxa Azurza. Madri: Civitas, 1985, p. 33.

“todas as potências públicas, participantes materiais do processo social, estão nela

envolvidas, sendo ela, a um só tempo, elemento resultante da sociedade aberta e

um elemento formador ou constituinte dessa sociedade”

543

. Assim,

Na realidade, pode-se levantar a hipótese de que as normas jurídicas são construídas, concretizadas por todos os destinatários, todo o ambiente social que lhes determina o sentido, de forma plural, como quer Häberle, para quem não é possível estabelecer-se um numerus clausus de intérpretes da Constituição. Quando cumprem efetivamente um contrato, por exemplo, as partes com certeza concretizam normas jurídicas, sem intervenção do Judiciário544.

Esta interpretação aberta da Constituição pode ser exercida de muitas formas, a

saber: audiências públicas, consultas públicas etc.

545

. Ainda representando esta

tendência pluralística de interpretação, convém lembrar do amicus curiae

546

, que

poderá ser admitido no processo de ação direta de inconstitucionalidade com o fito

de prestar informações e trazer elementos de convencimento ao Supremo Tribunal

Federal acerca de uma determinada controvérsia, o que, muitas vezes, influencia em

sua decisão.

Como anota João Maurício Adeodato, “a concretização da norma jurídica não deve

ser exclusivamente concentrada na autoridade estatal judicante, ainda que a

importância do Judiciário venha crescendo com a complexidade social

contemporânea”

547

. Apesar de não ser vinculante, a interpretação inorgânica é de

grande importância no contexto da democracia, na medida em que “possibilita que a

543 HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional – a sociedade aberta dos intérpretes da constituição: contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da constituição. Trad. Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2002, p. 13.

544 ADEODATO, João Maurício. Jurisdição constitucional à brasileira: situação e limites. In: PIMENTEL JUNIOR, Paulo Gomes. Direito constitucional em evolução: perspectivas. Curitiba: Juruá, 2008, p. 121.

545 Para um melhor desenvolvimento do assunto, cf. PEDRA, Adriano Sant’Ana. A democracia que temos e a democracia que queremos: uma análise da democracia participativa na Constituição Cidadã. Revista Estudos Jurídicos – Revista da Procuradoria-Geral Federal junto à Universidade Federal Fluminense, Niterói, ano 3, n. 3, p. 147-160, jan./dez., 2006.

546 Cf. artigo 7º, § 2º, da Lei nº 9.868/1999: “O relator, considerando a relevância da matéria e a representatividade dos postulantes, poderá, por despacho irrecorrível, admitir, observado o prazo fixado no parágrafo anterior, a manifestação de outros órgãos ou entidades”.

547 ADEODATO, João Maurício. Jurisdição constitucional à brasileira: situação e limites. In: PIMENTEL JUNIOR, Paulo Gomes. Direito constitucional em evolução: perspectivas. Curitiba: Juruá, 2008, p. 121.

sociedade em geral, por meio da influência e pressão exercida sobre os intérpretes

orgânicos, participe, ainda que indiretamente, da interpretação constitucional”

548

.

Também é relevante o reflexo que a interpretação doutrinária

549

produz nas

modalidades de interpretação constitucional orgânica. Conforme anota Jean-Louis

Bergel, “se a interpretação doutrinária orienta e inspira os poderes públicos, ela não

tem efeito obrigatório nem a autoridade das interpretações oficiais”

550

. Sobre o tema,

também escreve José Horácio Meirelles Teixeira:

A interpretação doutrinária contribui largamente para a modificação informal das Constituições rígidas, como das leis em geral. Trabalhando sobre os materiais fornecidos pela Constituição, pelas leis, pelos costumes, pela jurisprudência e por aqueles princípios não formulados – equidade, analogia, princípios gerais de direito, convicções sociais vigentes, valores, ideia de justiça –, os juristas sistematizam esse material, construindo teorias, dele extraindo novos significados, adaptando-os, também, à realidade concreta551.

A doutrina desempenha um papel fundamental

552

e sua contribuição possui o mérito

de não ser ditada por quaisquer interesses imediatistas e conjunturais e contribuem

548 KUBLISCKAS, Wellington Márcio. Emendas e mutações constitucionais: análise dos mecanismos de alteração formal e informal da Constituição Federal de 1988. São Paulo: Atlas, 2009, p. 134.

549 José Alfredo de Oliveira Baracho leciona que “a doutrina pode ser definida em dois sentidos complementares: como o conjunto de opiniões emitidas sobre o direito, por pessoas cuja função é estudá-lo, como os jurisconsultos ou juristas; ou o corpo de juristas, professores, consultores, doutores em direito, autores de teses ou monografias, advogados, magistrados, que expõem o direito positivo, dando sua opinião sobre a interpretação de uma lei sobre o valor de uma decisão da justiça”. (BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Teoria da Constituição. São Paulo: Resenha Universitária, 1979, p. 87)

550 Tradução nossa do texto original: “Si l’interprétation doctrinale oriente et inspire les pouvoirs publics, elle n’a pas d’effet obligatoire, ni l’autorité des interprétations officielles”. (BERGEL, Jean- Louis. Méthodologie juridique. Paris: PUF, 2001, p. 234)

551 TEIXEIRA, José Horácio Meirelles. Curso de direito constitucional. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991, p. 146.

552 Apesar da importância do papel da doutrina, há pensamento diferente, como pode ser verificado no voto do ministro Humberto Gomes de Barros, do Superior Tribunal de Justiça, a seguir transcrito: “Não me importa o que pensam os doutrinadores. Enquanto for ministro do Superior Tribunal de Justiça, assumo a autoridade da minha jurisdição. O pensamento daqueles que não são ministros deste Tribunal importa como orientação. A eles, porém, não me submeto. Interessa conhecer a doutrina de Barbosa Moreira ou Athos Carneiro. Decido, porém, conforme minha consciência. Precisamos estabelecer nossa autonomia intelectual, para que este Tribunal seja respeitado. É preciso consolidar o entendimento de que os Srs. Ministros Francisco Peçanha Martins e Humberto Gomes de Barros decidem assim, porque pensam assim. E o STJ decide assim, porque a maioria de seus integrantes pensa como esses ministros. Esse é o pensamento do Superior Tribunal de Justiça, e a doutrina que se amolde a ele. É fundamental expressarmos o que somos. Ninguém nos dá lições. Não somos aprendizes de ninguém”. (Agravo Regimental em Embargos de Divergência em Recurso Especial - AgReg em ERESP nº 279.889. Superior Tribunal de Justiça, Primeira Seção, Relator para o acórdão Min. Humberto Gomes de Barros, j. 14/08/2002, DJ 07/04/2003)

para iluminar os caminhos dos intérpretes autorizados. Como acentua Celso Ribeiro

Bastos, “os repertórios de doutrina tornam-se fonte útil ao operador do direito”

553

.

Uma distinção desta natureza também é feita por Hans Kelsen, que aparta

interpretação autêntica

554

e interpretação não-autêntica

555

. A primeira é “a

interpretação do direito pelo órgão que o aplica” e a segunda é “a interpretação do

direito que não é realizada por um órgão jurídico, mas por uma pessoa privada e,

especialmente, pela ciência jurídica”

556

. No tocante a isso,

A interpretação feita pelo órgão aplicador do Direito é sempre autêntica. Ela cria Direito. Na verdade, só se fala de interpretação autêntica quando esta interpretação assume a forma de uma lei ou de um tratado de Direito internacional e tem caráter geral, quer dizer, cria Direito não apenas para um caso concreto mas para todos os casos iguais, ou seja, quando o ato designado como interpretação autêntica represente a produção de uma norma geral. Mas autêntica, isto é, criadora de Direito é-o a interpretação feita através de um órgão aplicador do Direito ainda quando cria Direito apenas para um caso concreto, quer dizer, quando esse órgão apenas crie uma norma individual ou execute uma sanção. [...] Da interpretação através de um órgão aplicador do Direito distingue-se toda e qualquer outra interpretação pelo fato de não ser autêntica, isto é, pelo fato de não criar Direito557.

553 BASTOS, Celso Ribeiro. Hermenêutica e interpretação constitucional. 3. ed. São Paulo: Celso Bastos, 2002, p. 136.

554 A doutrina também utiliza a terminologia “autêntica” para identificar a interpretação que é realizada pelo próprio órgão do qual procede a disposição normativa a ser interpretada. Neste sentido, “Denomina-se autêntica a interpretação, quando emana do próprio poder que fez o ato cujo sentido e alcance ela declara. Portanto, só uma Assembleia Constituinte fornece a exegese obrigatória do estatuto supremo; as Câmaras, a da lei em geral, e o Executivo, dos regulamentos, avisos, instruções e portarias. O regulamento pode esclarecer o sentido da lei e completá-lo; mas não tem o valor de interpretação autêntica a oferecida por aquele”. (MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 19. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 71)

555 Riccardo Guastini expõe o que entende por interpretação autêntica da Constituição: (i) Em primeiro lugar, pode-se entender que a interpretação de um documento normativo é autêntica apenas se for realizada pelo mesmo órgão que aprovou o referido documento. (ii) Em segundo lugar, pode-se entender como autêntica a interpretação de um documento normativo, realizada através de um documento dotado do mesmo nomen juris que o documento interpretado. (iii) Em terceiro lugar, pode- se entender como autêntica a interpretação de um documento normativo, realizada através de um documento dotado da mesma “força” jurídica do documento interpretado. (iv) Em quarto lugar, pode- se considerar autêntica a interpretação de um documento normativo, realizada por um órgão que tenha a última palavra na matéria, ou seja, um órgão cuja interpretação não possa ser contraditada ou modificada por algum outro órgão e seja vinculante para todos. (GUASTINI, Riccardo. Estudios de teoría constitucional. Trad. Miguel Carbonell. Cidade do México: Fontamara, 2001, p. 260-261) 556 KELSEN. Hans. Teoria pura do direito. Trad. João Baptista Machado. 6. ed. 3. tir. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 388.

Segundo Anna Cândida da Cunha Ferraz, “são espécies da interpretação orgânica a

interpretação constitucional legislativa, a judicial e a administrativa”

558

. Do mesmo

modo, para Agassiz Almeida Filho, “de acordo com uma ótica tradicional, o processo

de interpretação/concretização das normas constitucionais é deixado a cargo das

instâncias legislativas, judiciais e administrativas”

559

.

A seguir serão analisados os meios de realização de mutação constitucional,

começando pela interpretação constitucional orgânica, que tem como espécies a

interpretação constitucional legislativa, a interpretação constitucional administrativa e

a interpretação constitucional judicial. Na seqüência deste trabalho, serão analisadas

as prática constitucionais.

2.4.2 Mutação constitucional por meio da interpretação legislativa

No documento DOUTORADO EM DIREITO SÃO PAULO 2009 (páginas 154-158)