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A invenção da tradição aristocrática da elite de São Carlos

A INVENÇÃO DA TRADIÇÃO BANDEIRANTE: MODERNIDADE E PROGRESSO EM SÃO PAULO

2.3 A invenção da tradição aristocrática da elite de São Carlos

Tendo em vista os objetivos propostos para este estudo, trataremos agora da tradição específica crida pela elite sãocarlense, no mesmo período em que se constituía o mito bandeirante. Em São Carlos, esse mito era reorganizado segundo o imaginário local, fortemente pautado por imagens aristocráticas ligadas àqueles que eram considerados, segundo a tradição, seus fundadores e responsáveis pelo seu progresso e desenvolvimento. Anterior aos trabalhos de Taunay, Alcântara Machado e Ellis Júnior, a tradição aristocrática de São Carlos casava-se mais com a nobiliarquia de Pedro Taques que apresentava entre as famílias listadas em sua genealogia dos troncos paulistas, o nome do clã Arruda Botelho.

No período em que começa a se propagar a ideia de uma aristocracia rural , no final do século XIX, São Carlos já tinha perdido a maioria de seus cafeeiros produtivos e suas fazendas perderam a condição de grandes produtoras. Além da queda de produtividade dos cafeeiros a economia cafeeira local sofria os efeitos de manter as práticas de cultivo implementadas ainda no período imperial. Seus proprietários tinham recebido títulos de nobreza e se apegavam ao enobrecimento que a condição de oligarcas rurais tinham lhes propiciado. As novas plantações que se espalharam pelo oeste paulista eram estabelecidas em propriedades menores, muitas vezes por imigrantes que haviam deixado as plantações tradicionais. Mesmo na cidade vizinha, Araraquara, como veremos mais adiante, a tendência foi a fragmentação das grandes propriedades, enquanto em São Carlos as propriedades permaneciam com as dimensões originais.

Em sua maioria, as fazendas da região de São Carlos não acompanharam a evolução e dinamismo da economia cafeeira paulista, não ocorreu diversificação da produção e a economia local permaneceu presa à condição da lavoura cafeeira. Como pode-se verificar ao longo desse estudo, àquele que era denominado como o grande capital cafeeiro era caracterizado por um complexo de atividades que dinamizavam e faziam circular o capital obtido na lavoura, por meio do transporte, industrialização, comercialização, financiamento bancário, armazenamento e exportação.

Os grandes cafeicultores não eram apenas plantadores de café, eram donos das estradas que o transportavam, dos bancos que financiavam o comércio e exportação, das indústrias que produziam as sacas, enfim, controlavam todo o processo de produção e comercialização e, acima de tudo, cuidavam do preço do café no mercado internacional. Eram, acima de tudo, homens de negócios com os olhos voltados para a Europa e não agricultores dedicados a terra. Enquanto que para estes homens, o valor do câmbio, o valor da moeda nacional e a capacidade de financiamento por parte de bancos internacionais, eram as suas maiores preocupações na política governamental, para os lavradores de café, o mais importante era o preço do café e a sua capacidade de produção.

Frequentemente estes dois setores estavam de lados opostos, o que pode ser conferido por meio das frequentes disputas em torno da adoção de políticas protecionistas de um lado, e por outro

de políticas liberalizantes do mercado. O PRP, Partido Republicano Paulista possuía entre seus membros uma maioria de representantes dos grandes cafeicultores e a adoção de políticas favoráveis ao grande capital levou a cisão do partido.

Os governantes paulistas, frequentemente associados aos cafeicultores, manifestavam posições políticas nem sempre coincidentes com os seus interesses econômicos. Pode-se verificar na documentação consultada a intenção de constituição de um aparato burocrático autônomo, impessoal e, portanto, independente da política clientelista que caracterizava o coronelismo local. As reformas da instrução pública implementadas em São Paulo, no período em estudo, denotam uma intencionalidade de institucionalização do sistema de ensino por meio da adoção de normas estaduais homogêneas e uniformes, além de apontar para a adoção do concurso como forma de recrutamento para o serviço público.

Neste sentido, as reformas do ensino implementadas entravam em confronto com a tradicional política coronelista. Revestida de um caráter formal e cerimonioso as escolas eram monumentos ao saber nacional, ao nascente Estado Republicano, à ciência como fonte do progresso nacional. Todo o discurso que acompanhava a implantação do sistema público de ensino paulista tinha a marca de um empreendimento que marcava o pioneirismo paulista no encaminhamento do progresso nacional. Ao tornar a escola normal o projeto de uma das famílias locais, esse sentido de impessoalidade nacional foi substituído pelo caráter de elite e distinção que passava a revestir a escola.

A mitologia bandeirante representava, do lado dos intelectuais paulistas, a constituição de um imaginário progressista, modernizante, que tinha na administração burocrática e na ciência os fundamentos políticos e culturais de sua modernidade. Em São Carlos duas famílias disputaram o papel de construtores da modernização, os Arruda Botelho e os Ellis. Enquanto os Arruda Botelho eram ligados a tradição aristocrática, que remontava ao período imperial fazendo do título de nobreza a fonte de sua primazia, os Ellis construíram para si uma tradição mais cosmopolita, que se distanciou da esfera local, galgando espaços políticos na administração pública nacional e na intelectualidade paulista.

Ellis Jr. descreve assim a origem da nobreza de sua própria família: seu avô enriqueceu por meio das atividades de tropeiro, comprou terras próprias ao cultivo do café e instituiu uma das mais prósperas produções de café no interior de São Paulo no final do século XIX. Por meio de casamento vinculou-se a uma tradicional família paulista e recebeu títulos de nobreza diretamente de D. Pedro II. Os pais de Ellis, Alfredo Ellis tornou-se um dos principais senadores da nascente república, foi deputado constituinte e tornou-se um dos maiores defensores dos interesses das elites cafeeiras e um influente político nacional.

As posições de Taques e Ellis apontam para duas concepções que frequentavam o imaginário paulista no início do século XX. De um lado, a antiga elite cafeeira, constituída ainda no império, buscava o reconhecimento social na sua tradicional condição de nobreza, herdeira do ideal bandeirante, cujos títulos de nobreza definiam sua condição única de oligarquia e poder. De outro lado, uma nascente elite industrial, que via no café a fonte de acumulação de capital necessária para a industrialização e para a constituição de uma economia capitalista, capaz de levar o Brasil a integrar o rol das nações desenvolvidas. Encontraremos os defensores dessas duas posições em conflito no início do período republicano, durante os debates sobre a atuação do Estado brasileiro na defesa da política do café. De um lado, a defesa pura e simples dos interesses dos cafeicultores, e de outro, a defesa do uso dos lucros obtidos com o café para a modernização do aparelho estatal. Da mesma forma, para os primeiros a constituição de estabelecimentos escolares deveria obedecer aos interesses políticos das elites locais enquanto aos segundos interessava a constituição de um aparato educacional capaz de levar adiante um projeto modernizador da sociedade.

As elites locais encontravam-se, assim, diante de diferentes alternativas, diferentes possibilidades e mesmo entre membros de uma mesma família era possível encontrar entusiasmados defensores de variadas concepções. Não é possível, portanto, encontrar um discurso unívoco, livre de ambiguidades e tensões. A afirmação da necessidade do progresso era uma constante nas diferentes manifestações, entretanto eram nos aspectos mais difusos que as dissonâncias se manifestavam, apontando resistências e a perseverança de uma exaltação grandiloquente de um passado grandioso e nobre. Eram acima de tudo nos aspectos simbólicos das manifestações de poder e das relações sociais, que se pode perceber a permanência de estratégias de enobrecimento familiares, quer seja em um passado bandeirante, quer seja no elogio de seu heroísmo atávico.