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A ESCOLA NORMAL DE SÃO CARLOS: A EDUCAÇÃO COMO ESTILO DE VIDA

3.2 O projeto educacional republicano e as oligarquias

A tendência a uma concepção universalizante que liga o destino da escola nacional ao ideal republicano de propagação do sentimento de cidadania é outro tema constante nos estudos sobre a escola na primeira república. A expansão do ensino primário, sob a égide dos grupos escolares e a formação do seu magistério por meio das escolas normais59, teria representado, nessa época, forte sistema modelador de ensino encarregados de moldar o caráter nacional. O estudo dos conteúdos programáticos escolares do início do período republicano teria possibilitado a constatação de que entre suas finalidades estaria a difusão de práticas, hábitos e costumes próprias a um cidadão republicano.

O campo erudito, por exemplo, tenderia a estabelecer suas normas de legitimidade e se destinaria a um público de produtores de bens culturais que também produziriam para seus pares, objetivando a legitimação da hierarquia de bens materiais simbólicos em diferentes campos sociais de atuação. “Disputa-se constantemente a definição de quem são os indivíduos e as instituições legitimamente autorizados a classificar e a hierarquizar os produtos literários”. (NOGUEIRA, 2009, p. 32)

Neste sentido, o gosto por tendências culturais consideradas superiores e a ocupação em profissões de prestígio como o direito e a engenharia teriam representado uma forma de ascensão à elite, cuja influência na esfera dominante era crescente desde o final do período imperial ao período republicano.

Nesta perspectiva, estaríamos diante de um projeto de reconstrução da mentalidade cultural do povo brasileiro, iniciado pelas elites políticas, que teria colocado a escola a serviço de uma unidade nacional para a formação de um Estado-nação-moderno.

      

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Não por acaso que a organização do ensino normal iniciou-se no século XIX e decorreu da expansão do ensino público. (REIS FILHO, 1981, p.128)

A necessidade de uma ampla reforma na instrução pública, de modo a reorganizar o ensino, associando-o ao projeto da elite política de ordem e controle social teria trazido à tona o ideal de formação do cidadão republicano, por meio das escolas. Ao cidadão republicano, caberia o futuro da pátria. E sobre a escola residira o papel fundamental de constituição do cidadão.

A reforma Caetano de Campos, de 1890, regulamentada pelo decreto nº 27, de 12 de março, que preconizou uma ampla reforma do ensino a começar pela reforma geral da escola normal, teria correlacionado a formação dos professores à expansão do ensino primário e à sua missão patriótica de formar o cidadão republicano.

A escola pública teria sido, assim, instituída como ferramenta fundamental para o “novo regime e para a reforma da sociedade brasileira” (SOUZA, 1998, p.30)

Para Tanuri (1979, p.77), nos primeiros anos do governo republicano, as preocupações relativas à expansão da escola pública mostraram também as preocupações em termos da organização de um sistema público nacional de ensino em todos os seus níveis e ramos. Para a autora, as esferas do ensino primário e normal foram alvo das atenções dos reformadores, sendo, portanto, consideradas instituições onde o pensamento educacional republicano logrou seus maiores êxitos:

Desde os primórdios do novo regime os estadistas e educadores paulistas voltaram o melhor de suas atenções para o ensino primário e formação de seu magistério, idealizando um sistema de organização qualitativamente superior à medida das possibilidades e limitações da época. A preocupação inicial dos reformadores não foi apenas o aspecto qualitativo do ensino e a instalação de uma estrutura de alto padrão, mas também o aspecto qualitativo do ensino e a instalação de uma estrutura de alto padrão, mas também o aspecto quantitativo ou seja, a organização em âmbitos estadual do ensino do ensino primário e normal, consentânea com os ideias de generalização da educação popular, bem como com a concepção dos deveres e responsabilidades que o Estado deveria assumir a este respeito (TANURI, 1979, p.79)

A necessidade de escolarização das camadas populares, antes alijadas do acesso à escola, teria sido justificada em função do entrave que o analfabetismo teria representado em relação às necessidades urbanas e industrial.

Segundo Ferraro (2002), o tema do analfabetismo teria emergido, a princípio, como um conceito político com o objetivo de angariar votos, discussão que teria se iniciado ainda no período imperial, com a reforma eleitoral de 1882, que proibia o voto do analfabeto, cujos critérios foram mantidos pela Constituição republicana de 1891. (FERRARO, 2002). Mesmo nessas condições os quadros da população escolarizada não teriam se alterado “os dados censitários referentes ao Brasil revelam que nos primeiros vinte anos do corrente século a taxa de analfabetismo manteve-se

praticamente a mesma”. (INFANTOSI, 1983, p.50). Assim, o problema do analfabetismo não teria sido, ao menos naquele momento, a principal causa da preocupação com a escolarização. Todavia, a circulação do tema teria se favorecido da relação que se estabelecera entre escolarização e desenvolvimento. É nesta perspectiva que Paiva (1990) observa que o conceito de analfabetismo:

(...) se fortalece pela maior circulação de idéias ligadas ao liberalismo e se nutre também de sentimentos patrióticos, suscitados pela divulgação internacional da taxa de analfabetismo segundo o censo de 1890, que dava para o Brasil a taxa mais alta (82,63% para a população de cinco anos e mais) entre os países considerados. (PAIVA, 1990, apud FERRARO, 2002, p.07)

Ainda que não fosse a preocupação dominante na esfera educacional, o fato de o Brasil apresentar uma taxa tão elevada de analfabetismo depunha contra um governo que se pretendia moderno. Mesmo para D. Pedro II, que era adepto da modernidade e gostava de se apresentar como um homem culto, erudito e esclarecido, o analfabetismo apresentava-se como uma vergonha.

Um das concepções mais veiculadas nas abordagens sobre a expansão escolar no início do período apóia na ideia de que, com a nova organização do Estado e a pretensão a uma nação moderna, a escola, seria a responsável por garantir ao Estado Brasileiro a unidade nacional e política da república e a persistência do analfabetismo seria um obstáculo a este intento.

O vínculo entre escolarização e desenvolvimento é uma tônica nestes estudos que apontavam o interesse pela escolarização, como de um lado a possibilidade de ampliação dos votos no sistema eleitoral na mesma medida em que inversamente, o analfabetismo dificultava o avanço do desenvolvimento capitalista no país. Vilella (2008) é um exemplo desse tipo de consideração, ressaltando que “a instrução deveria ser produtiva ao país, pois era urgente substituir o braço escravo introduzindo, na lavoura arcaica, implementos mecanizados”, requisitos básicos da leitura e da escrita. (VILELLA, 2008, p.35)

É explicitado, em boa parte dos estudos, o papel moral da escola na formação de um tipo ideal de cidadão à nascente república. A expansão do ensino primário no século XIX, teria levado à constituição de um modelo de escolas normais como locais autorizados para se imporem as novas exigências da época, interferindo diretamente nas condutas morais dos indivíduos. Os costumes e os conhecimentos ensinados nas escolas normais se estendiam também ao cotidiano social das cidades. Os professores atuavam como símbolos do progresso, modelos a ser seguidos e estavam submersos em uma intrincada rede de relações de poder cotidianamente estabelecidas na cidade, porque ser professor e/ou fazer parte da nascente cultura escolar era sinônimo de reconhecimento do poder simbólico local.

Para Peixoto (2005), as modificações urbanas adicionadas com o refinamento cultural do pensamento republicano marcam:

a intensificação do processo de passagem da educação escolar do privado para o público, que se inicia com o fortalecimento do estado imperial. O estado passa a assumir o papel até então desempenhado pela família, pela igreja e pelos grupos de convívio na formação das novas gerações, impondo-se como uma instituição por excelência, capaz de impor os rumos de uma sociedade que tem na ordem a condição para o progresso (PEIXOTO, 2005, p. 13)

Esta concepção se baseia na ideia de que existiria um modelo único de escola normal que derivaria diretamente dos princípios republicanos. Entretanto, como foi exposto por Carvalho (1990) coexistiriam, no início da república, diferentes concepções do que seria o regime republicano e o modelo paulista , associado às oligarquias cafeeiras seria um, entre os diversos modelos. Mesmo o positivismo, tomado como principal elemento norteador dos valores da república, era concebido de forma diferentes pelos paulistas e cariocas. Boa parte das representações associadas ao papel da escola normal e do processo de escolarização são provenientes da ideia de que se teria adotado o modelo francês, proveniente da revolução francesa e propagado pela reforma napoleônica, de onde teria saído, fundamentalmente, a inspiração das escolas graduadas.

Desta perspectiva, as oligarquias paulistas teriam tomado a frente do processo e estabelecido um modelo escolar que teria sido modelo para os demais sistemas em gestação. Entretanto, é necessário que se observe que para boa parte da oligarquia cafeeira paulista, prevalecia a concepção federalista, que se aproximava mais da concepção norte-americana.

A liderança do PRP, Partido Republicano Paulista, tinha como um de seus princípios a autonomia política e econômica de São Paulo, chegando muitos de seus membros a defender um posição separatista, como era o caso de Alberto Salles, irmão de Campos Salles, um dos principais líderes do PRP. Mesmo as posições, dentro do PRP, não eram homogêneas, e, como veremos mais adiante, disputas internas em relação ao papel das oligarquias rurais na determinação das ações partidárias eram constantes e nem sempre foram as dominantes.

Além disso, o processo de instituição de escolas normais padronizadas pressupõe uma coincidência de interesses e submissão política das lideranças oligárquicas locais. A institucionalização de um sistema de escola pela iniciativa do Estado, exigira uma transição de uma educação escolar fortemente influenciada pelos poderes locais para um sistema público, burocratizado e impessoal, interferindo na esfera das relações de poder local, frequentemente associado a um projeto familiar dos grupos dirigentes. Nestes casos, como veremos, a educação pública assumiria algum sentido, na esfera local, quando, de alguma forma a substituição da

educação familiar por um tipo específico de escolarização institucionalizada atendesse aos seus interesses políticos.

Se como se tem afirmado nos Estados-nacionais-modernos, a educação seria um passo importante no processo de burocratização da sociedade civil, que enquadra os indivíduos a categorias profissionais sob regimes contratuais de trabalho, deve-se também considerar, que essa transição depende materialmente dos agentes responsáveis por sua implementação, o que significa que residia fundamentalmente nas mãos dos poderes locais.

Carvalho (1996, p.161) observa que “embora mais profissionalizada, a política ainda tendia para a realização dos interesses particulares das oligarquias locais.”O processo de burocratização encontrava obstáculos mesmo em São Paulo, porque a constituição de um aparato burocrático, principalmente na esfera da justiça interferiria nas relações de poder locais.

Segundo Urioechea (1978), um dos principais obstáculos para a constituição de um aparato burocrático residia na ausência de quadros qualificados em que se pudesse confiar a administração local.

Esta carência foi particularmente severa na esfera judiciária, e acarretou como consequência imediata que as funções a serem formalmente desempenhadas por advogados profissionais enviados pela administração central foram de fato preenchidas pelo serviço amadorístico dos honorationes locais (1978, p. 113).

Como os representantes do Estado eram obrigados frequentemente a lançar mão de expedientes clientelistas e patrimonialistas, a orientação da ação administrativa era amadora, tornando precárias as condições de institucionalização da administração, impossibilitando a racionalização, impessoalidade e o estabelecimento de especificidades funcionais para cargos públicos.

As tentativas de implantação das diretrizes do poder central não se faziam sem constantes conflitos de jurisdição Isto significa que, ainda que existisse uma intenção, por parte dos setores dirigentes do PRP que assumiram a liderança da política estadual de implementar ações no sentido de uma institucionalização e racionalização administrativa, isso não decorreu de forma uniforme e homogênea em todo o estado paulista. E, acima de tudo, o processo de institucionalização levado a cabo em São Paulo, não pode ser tomado como exemplo do que teria ocorrido nacionalmente. Eram constantes, durante a década de 1920, as constatações de dirigentes da educação paulistas sobre as dificuldades em lidar com as oligarquias locais.

Almeida Júnior, diretor de ensino de São Paulo durante o período de 1935 a 1938, no Anuário de Ensino de São Paulo, de 1936, faz um retrospectiva do processo de institucionalização da rede escolar paulista de 1846 a 1936 e apontava como um dos principais problemas desse processo, a

dificuldade em se estabelecer um delegado regional capaz de implementar as ações propostas pela Diretoria de Ensino:

(...) A politicagem do interior – dizia-se então – envolve, embaraça e inutiliza o delegado. Por isso, venha este para a Capital. Mas de lá para cá, as cidades progrediram, os costumes políticos melhoraram, tornou-se possível ao Delegado de Ensino trabalhar a coberto das paixões partidárias e dos mexericos de campanário. Ficaram, porém, daquela syncope, duas lições dignas de meditação. Uma, é a necessidade já agora imprescindível, das delegacias regionaes, que, para melhor efficiencia precisam apparelhar-se convenientemente de pessoal e de meios materiaes. Vai longe o tempo em que o delegado e um secretário ‘part-time’, installados num desvão do grupo escolar, bastavam para tudo (...) E, acima de tudo, o grau de autonomia compatível com a funcção (...). A outra lição decorre da própria causa que determinou a suppressão de 1925. O delegado regional gerado nas entranhas da política, ou que por ella venha a ser seduzido, jamais poderá governar com acerto as suas escolas. Delegado e delegacia precisam ficar resguardados dos choques partidários e manter-se na serena atitude de imparcialidade que se pede aos órgãos de justiça. Embora dignas e meritórias as duas atividades são incompatíveis entre si (...) (ALMEIDA JÚNIOR, In: ANNUARIO, 1936, p. 79)

Verifica-se, dessa forma, ainda em 1936 as dificuldades para a instauração de práticas impessoais.

A despeito das diferenças entre os projetos políticos das oligarquias e das dificuldades impostas para a implementação dos projetos administrativos próprios a uma administração pública moderna, prevaleceu a ideia de uma concepção homogênea de educação como projeto nacional. Vejamos o que diz Vilella (2008):

a constituição de um corpo de funcionários públicos treinados para exercer funções que antes era monopólio do campo religioso ou de mestres despreparados que em geral exerciam o magistério como uma ocupação secundária, se justifica como uma necessidade estratégica os Estados nacionais em institucionalizar esse ofício passando então a exercer um controle direto sobre os conhecimentos teóricos e práticos dos professores (...) (VILELLA, 2008, pp. 29-30)

É possível identificar, no discurso das diferentes oligarquias, a ideia de implementação de um sistema público de ensino. Também pode-se identificar o papel de intelectuais paulistas na propagação de um modelo de escolarização. Consoantes com o projeto levado a cabo por Campos Salles, da constituição de um Estado institucionalizado e burocrático, intelectuais e administradores

educacionais paulistas levavam adiante um processo de institucionalização das esferas educacionais públicas, segundo padrões ligais racionais e burocráticos.

Lourenço Filho, que foi juntamente com Almeida Júnior, Fernando Azevedo, entre outros paulistas e não paulistas, signatários do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, convidado em 1922, pelo governador do Ceará a assumir o cargo de Diretor da Instrução Pública desse estado, realiza reformas educacionais que repercutiram em todo o país. Pode-se encontrar entre os signatários do Manifesto do Pioneiros uma proposta de renovação da educação para o país, mas essa proposta não coincide com os interesses das oligarquias locais. Lourenço Filho em um célebre estudo sobre Antônio Conselheiro e Juazeiro do Norte, preocupa-se com as dificuldades impostas pelo que ele classifica como fanatismo religioso e lembra o fato de Padre Cícero, quando prefeito do município, ter proibido a instalação de escolas públicas. (LOURENÇO FILHO, 2002).

A educação nacional, apresentava-se, para estes estudiosos, como a única possibilidade de luta contra o tradicionalismo e suas propostas inspiradas por intelectuais norte-americanos, visava a constituição de um sistema institucionalizado e controlado nacionalmente. Não se pode, entretanto, falar de um projeto oligárquico nacional. Em cada localidade, a ideia de escola normal e ensino público assumia um formato próprio, decorrente das especificidades culturais, políticas e econômicas.