• Nenhum resultado encontrado

A invisibilidade das mulheres no início do século XX

A efetivação de rupturas possíveis

II. A invisibilidade das mulheres no início do século XX

Ao falar da visibilidade e invisibilidade das mulheres ao longo da “his

-tória oficial”, recaio na categoria “gênero”. Mas o que podemos de forma

sintética e geral entender por gênero?

-tes campos do conhecimento que estudavam as mulheres, e os processos sociais e históricos que perpetuavam (e perpetuam) a desigualdade entre

os sexos, cunharam a tais estudos o rótulo de teorias de “gênero”. Diga-se

de passagem, também por uma questão ESTRATÉGICA, uma vez que as

pré-concepções em relação aos estudiosos de questões voltadas às

desi-gualdades entre homens e mulheres não angariavam adesões acadêmicas. Assim, se em um primeiro momento falar de gênero soava como

sinônimo do estudo da “história das mulheres”, com o intuito de descons-truir a invisibilidade da “história oficial”, após três décadas, ao utilizarmos

a categoria gênero, sua aplicação segundo Joan Scott:

[...] rejeita explicitamente explicações biológicas como

aquelas que encontram um denominador comum, para di

-versas formas de subordinação, no fato de que as mulheres têm as crianças e que os homens têm uma força muscular superior. O gênero torna-se, antes, uma maneira de indicar “construções sociais”- criação inteiramen-te social de idéias sobre os papéis adequados aos homens e às mulheres. [...]. O gênero é, segundo esta definição, uma categoria social imposta sobre um corpo sexuado. (SCOTT, 2009, s/p) 108. (Negritos meus).

Neste sentido, não podemos perder de vista três elementos constitu

-tivos deste conceito. No que diz respeito ao primeiro elemento, produzimos

representações sobre o corpo biológico ou sexuado por meio de simbo-logias. Isto é, as representações sobre o corpo sexuado que produzimos são contextualizadas e eminentemente sociais. Trata-se de convenções

sociais. Ou ainda: quem disse que cor de menino é azul e de menina é rosa? Quem disse que menino brinca de bola e menina de boneca? Sempre

foi assim e sempre será? Não, trata-se de convenções sociais, bem locali-zadas e contextualilocali-zadas.

Quanto ao segundo elemento, destaca-se que estas simbologias

es-tão ligadas a significados produzidos pelos diferentes discursos que nos 108 - O artigo de Joan Scott denominado de “Gênero uma categoria útil para a análise históri-ca”, foi originariamente publicado na língua portuguesa no início da década de noventa do século

passado, pela revista Educação e Realidade. Entretanto, faço menção à sua versão disponível na internet, frente ao fato de seu acesso se tornar mais facilitado por parte do público em geral.

constituem enquanto sujeitos sociais. Destaco alguns destes poderosos discursos que nos fazem apreender certos significados culturais como

sendo “naturalizados”. São eles: educacional; religioso; científico

(incluin-do o médico) e o jurídico.

Finalmente, no tocante ao terceiro elemento, um dos grandes desa

-fios contemporâneos para os estudiosos do gênero baseia-se na explosão das dicotomias subentendidas e “naturalizadas” a partir da matriz sexual. Em outros dizeres, no rompimento da existência de um sujeito como

pau-tado apenas e tão somente na dicotomia que se perfaz pela oposição à

outra possibilidade de existência. Ou se é homem, ou se é mulher.

Todavia, neste momento cabe retomar as representações das mulhe

-res na virada do século XIX para o XX, em especial na região do então Mato Grosso, sem deixar de considerar o evento “escravidão” em nossa socieda-de. Para tanto, remeto-me à pesquisa desenvolvida por Maria Adenir Peraro (2000), no período de 1853 a 1870, junto aos arquivos referentes às

certi-dões de batismos de filhos tidos socialmente e legalmente como ilegítimos.

Mulheres negras escravas e indígenas, consideradas objeto

de desejo sexual dos homens brancos, não eram

distin-guidas com o casamento. Nem mesmo quando geravam filhos de seus senhores mereciam tratamento diferenciado,

pois sua sexualidade não estava a serviço da procriação e

da reprodução, tal como as mulheres brancas (Giacomini,

1988:65). No universo social marcado pela escravidão, a

situação da escrava, enquanto mãe, não acarretava qual

-quer regalia. O privilégio se dava mais pelo que ela poderia produzir em termos de trabalho e menos pelo caráter de reprodutora (PERARO, 2000, p.52).

Ainda em relação à sua pesquisa, mas agora trazendo o vínculo com

a religiosidade, a sua historiografia corrobora outras feitas sobre os so

-brenomes destas mulheres/mães que davam à luz a crianças ilegítimas.

Através dos sobrenomes substitutivos aos de família po

-demos captar alguns matizes do perfil socioeconômico das mulheres que registravam o batismo dos filhos naturais,

na paróquia Senhor Bom Jesus. Ao longo das décadas de 1850 a 1880, vários foram os sobrenomes encontrados nas atas, com destaque para os que seguem: “de Jesus”, “de

Tal”, “do Sacramento”, “da Conceição, “dos Prazeres”, “da Purificação”, “da Cruz”, “da Paixão”, “da Guia”, “do Espíri-to SanEspíri-to”, “do NascimenEspíri-to”, “de Deus”, “da Ressurreição”, “dos Santos”, “das Dores”, “dos Anjos”, “da Luz”, “de Sant’Anna”, “do Bom Despacho”, “das Mercês”, “dos Reis”, “da Boa Morte”, “da Encarnação”.

Para Burmester, “estes novos sobrenomes, usados pelas

mulheres, substituem o nome da família e revelam um costume notado em Curitiba, também encontrado em São

Paulo no século XVIII como homenagem aos santos” (Bur-mester, 1974:38). São nomes sobre os quais certamente se colocava alguma expectativa. Possivelmente alguma

crença de bênção divina, alguma esperança de mudança de vida ou algo em que valesse a pena acreditar. Podiam

igualmente expressar a condição de vida de algumas des-sas mulheres, a exemplo das que usavam o sobrenome dos Prazeres (PERARO, 2000, p.53).

No tocante à condição da mulher junto às principais legislações que eram responsáveis pela regulamentação da maioria das relações sociais da vida privada, algumas considerações valem ser destacadas.

Perante as Ordenações Filipinas, conjunto de regras importadas de Portugal, a inferioridade feminina era visível, pois, dentre outros direitos

o homem/marido, por exemplo, poderia aplicar castigos corporais em sua

esposa e filhos, sem que para tanto sofresse qualquer tipo de punição. Tal direito de praticar contra a mulher castigos corporais somente foi retirado

do corpo de normas jurídicas em 1890, com o advento do decreto n.181. Quanto ao Código Civil de 1916 que vigorou entre nós até 2002,

destaco determinados artigos ou itens contidos na citada lei, por meio dos

quais podemos observar o “poder patriarcal” exercido ora pelo pai ora pelo marido (“cônjuge varão”) sobre as filhas e esposas.

O Código Civil de 1916 sustentou os princípios

conservado-res mantendo o homem como chefe da sociedade conjugal limitando a capacidade da mulher a determinados atos

como por exemplo a emancipação que será concedida pelo

pai, ou, pela mãe apenas no caso do pai estar morto. Vai

mais além o Código Civil quando prevê, no artigo 186, que

a vontade paterna. Ainda, o artigo 380 do mesmo códi -go dá ao homem o exercício do pátrio poder permitindo tal exercício a mulher apenas na falta ou impedimento do

marido. Segue as discriminações do diploma no artigo 385 que dá ao pai a administração dos bens do filho e à mãe, somente na falta do cônjuge varão. Quer nos parecer que a discriminação do código culminou com o artigo 240 que definitivamente colocou a mulher em situação hierárquica completamente inferior ao homem quando dizia: A mulher assume, pelo casamento, com os apelidos do marido, a

condição de sua companheira, consorte e auxiliar nos

en-cargos da família.

Observa-se, ainda, o artigo 242 que restringia a pratica de

determinados atos da mulher sem a autorização do marido.

Art. 242 - A mulher não pode, sem o consentimento do

marido:

I. Praticar atos que este não poderia sem o consentimento da mulher.

II. Alienar, ou gravar de ônus real, os imóveis do seu domí

-nio particular, qualquer que seja o regime dos bens. III. Alienar os seus direitos reais sobre imóveis de outrem. IV. Aceitar ou repudiar herança ou legado.

V. Aceitar tutela, curatela ou outro múnus públicos. VI. Litigar em juízo civil ou comercial, a não ser nos casos

indicados nos arts. 248 e 251. VII. Exercer profissão.

VIII. Contrair obrigações, que possam importar em alhea

-ção de bens do casal.

IX. Aceitar mandato.

Os artigos citados deixam indubitável a relegação da

mu-lher ao segundo plano. (DA SILVA, 2009, s/p).

À luz destas transcrições, nota-se o quanto as mulheres,

independen-temente de sua etnia, sofriam uma série de restrições em suas relações sociais, e, se acrescentarmos a isto o vetor etnia, penso que uma dupla

exclusão deve ser notabilizada, a saber: por ser mulher e negra, ou por

ser mulher e indígena. Ambas, negras e indígenas, em sua maioria perten

III. Rumo às considerações finais: o caso de