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Uma análise crítica de um “Estudo de Oportunidades de Desenvolvimento, Investimento e Emprego para o

Interfaces de uma proposta emancipadora

1. Uma análise crítica de um “Estudo de Oportunidades de Desenvolvimento, Investimento e Emprego para o

concelho de Paredes de Coura”

O mito do produtivismo, o mito da cidade, o mito do poder da tecnologia, o mito da quantidade, o mito do individualismo, a ideia de homogeneização (ou seja, da intolerância à diversidade, quer do ponto de vista social e cultural, quer do ponto de vista biológico), o mito do racionalismo como critério de aferição do conhecimento, etc. (AMARO,

1996) têm levado muitas pessoas a confundir o desenvolvimento com o

mero crescimento económico, gerando, em consequência, uma imagem

do mundo rural em termos de “défice”, isto é, uma imagem associada às ideias de pobreza e de baixa produção, de baixos índices culturais dos

seus habitantes, etc. À luz desta concepção de desenvolvimento, as zonas rurais tendem a ser encaradas como “desertos de ideias, de realizações,

de projectos, de instituições” (CANÁRIO, 1998, p. 38).

Torna-se, pois, necessário exercer uma vigilância crítica em relação aos processos que se dizem orientados para o “desenvolvimento local”,

mas que nos seus princípios e propostas reproduzem as lógicas do mode

-lo dominante: o mode-lo urbano-industrial, produtivista e mercantilista. É

nesta perspectiva crítica que a seguir se analisa um estudo realizado em Paredes de Coura, em finais da década de 90, por encomenda da Câmara Municipal a uma empresa de consultoria, o qual tem como título “Estudo de Oportunidades de Desenvolvimento, Investimento e Emprego para o

concelho de Paredes de Coura” (Câmara Municipal de Paredes de Coura, 1999). Este estudo assumiu como objectivos “criar condições para que o

concelho de Paredes de Coura afirme uma postura activa e inovadora jun

-to das au-toridades centrais e do próprio Governo”; “assegurar uma nova visibilidade do concelho junto das diferentes sedes de decisão”;

concelhos interiores”; “encontrar elementos de compensação e atenuação

para os factores de debilitação do concelho gerados a partir da perda ge

-neralizada do sector agro-florestal, da perda demográfica, do isolamento passado e da interioridade” (1999, p. 11-13).

Os autores deste estudo dão grande destaque a uma lógica de “con

-tratualização”, de “parceria” e de “trabalho em rede”, argumentando que há

“um conjunto de domínios de intervenção e de problemas que transcendem

a acção exclusivamente municipal e que necessitam de um maior

envolvi-mento e contratualização entre entidades públicas e privadas, a nível local,

regional e sectorial, que urge dinamizar e estruturar através do estabeleci

-mento de esquemas de parceria adequados” (1999, p.68). Nesse sentido, fazem apelo a uma “lógica de trabalho em rede e contratualizado” (1999, p.

97). Entre outras recomendações, afirmam que “a política da parceria deve

ser activada por parte da Autarquia” (p. 99), designadamente o “fomento de parcerias com o tecido empresarial” (1999, p. 96) e a “criação de parce-rias com o tecido escolar envolvente” (1999, p. 96). Apontam ainda para a

“valorização de parcerias capazes de valorizar alguns recursos endógenos

do concelho” (1999, p. 40) e para o “reforço das parcerias e das redes locais em prol da resolução dos problemas” (1999, p. 94).

Uma leitura atenta do estudo permite identificar, no entanto, uma visão urbanocêntrica de desenvolvimento, pressupondo, por um lado, que

o desenvolvimento do concelho passa sobretudo pela “visita” e pela com-pra e recuperação de habitações para férias e fins-de-semana por parte de pessoas que vivem nas grandes cidades, como Porto e Braga, e, por

outro, que as populações locais não têm um papel activo como cidadãos e agentes do seu próprio desenvolvimento. Embora um dos propósitos do

estudo tenha sido contribuir para “um nível mais elevado de auto-estima da população local” (1999, p. 16), algumas descrições que ele apresenta

revelam uma visão desvalorizada das populações locais, podendo, pois, ao

contrário, contribuir para a diminuição da sua auto-estima. Por exemplo, o concelho é descrito como “carente de dinâmica e de iniciativa” (1999, p.

43) e as populações são caracterizadas em termos de “indiferença, resig

-nação, apatia” (1999, p. 11).

Neste e noutros aspectos, o estudo revela visões negativas e até moralizantes do mundo rural e dos seus habitantes, nomeadamente em

relação às pessoas idosas. O isolamento em que estas pessoas se encon

-tram é justificado pelos autores com base em atributos pessoais e em

características negativas, como o “individualismo”, a “avareza”, a “falta de hábitos de limpeza e de higiene pessoal”, a “intolerância”, a

“desconfian-ça”, a “resistência à mudança”. O estudo parece ignorar, assim, o carácter

estrutural dos problemas, como a solidão e a pobreza, que afectam as populações idosas nos meios rurais. O estudo não tem em conta, por

exemplo, que o considera “apego” ao dinheiro é em grande medida fruto dos rendimentos extremamente diminutos que as pessoas idosas auferem

em zonas rurais como esta.

São diversas as expressões que ilustram estas representações

nega-tivas e moralizantes sobre a população idosa. É afirmado que as pessoas se tornam “muito individualistas e vivem em termos de representações

sociais com um constante medo da morte e da desapossessão material” (1999, p. 89); que vão “amealhando poupanças avidamente” (1999, p. 89); que revelam um “apego excessivo à casa e à terra; falta de hábi-tos de limpeza e de higiene pessoal; inexistência de participação cívica

e retracção perante as redes de convivialidade, e ainda, intolerância e desconfiança face a toda e qualquer intervenção que não se confine à sua

casa e aos seus ‘domínios habituais’” (1999, p. 90). É dito ainda que “as resistências dos idosos à inovação e mudança são muito elevadas” (1999,

p. 90); que se verifica uma “forte implantação dos hábitos de poupança e

de ‘apego’ ao dinheiro” (p. 90); que “dado o seu individualismo e

resistên-cia à mudança, os centros de dia são muito pouco frequentados de forma

voluntária e participada por parte do idoso” (1999, p. 90); que “o facto

de viverem habituados a uma situação de pauperismo, de contenção de gastos em bens alimentares ou noutro tipo de consumos, isso faz parte da

sua identidade e memória vivencial” (1999, p. 90).

Para além desta visão desvalorizada das populações locais, o estudo

exprime igualmente uma visão mercadorizada do mundo rural, tendendo

a valorizar apenas a vertente do património (natural, paisagístico, arqui

-tectónico) e a possibilidade de ele ser usufruído pelas populações urbanas

nos seus lazeres e a ignorar as pessoas que lá vivem e trabalham, conside

-rando-as “resistentes à mudança”. Neste sentido, parece não ser aventado

outro futuro para o mundo rural que não passe pela sua transformação

num “museu”. Com efeito, o estudo propõe para o concelho de Paredes de Coura, em termos de “oportunidades de desenvolvimento”, a criação de um “Centro Rural”, considerando que ele deverá contemplar uma “componente

museológica baseada na ilustração das actividades tradicionais do mundo

rural do Alto-Minho utilizando-se para o efeito quadros ‘vivos’ (com mane-quins animados e som)” (1999, p. 59). Os autores argumentam que isso permitiria ao turista apreciar “como se praticava a agro-pecuária, tendo

rural, das quintas na era pré-adubos, pré-fitofármacos, pré-plantas hibrí-das provenientes do melhoramento genético e também na pré-mecanização mecanizada” (1999, p. 59).

Estas concepções do desenvolvimento rural estão associadas a um

conjunto de fenómenos contemporâneos, como a mercantilização das pai

-sagens, a procura de autenticidade, a ideia de “viver no campo” e de ter uma “vida saudável”, a emergência de novos estilos de vida, a conservação

e protecção da natureza, a valorização do típico, enfim, o entendimento de que o futuro das zonas rurais passa essencialmente pela procura urbana.

Em grande medida, trata-se de uma concepção do espaço rural alimen-tada por uma quasi-mitologia da “ruralidade” e do “retorno à natureza”

que consubstancia uma tendência para o espaço rural se constituir em

objecto de consumo e mercadoria (PINTO, 1985). Deste modo, como

sus-tenta Madureira Pinto, “o espaço rural acaba por se inserir nas estratégias

de hegemonização ideológica do bloco do poder, quer ‘recuperando’ as componentes capitalistas de posições ideológicas ecologistas e anti-urbanas, quer propondo às classes exploradas dos campos uma imagem eufemizada das suas próprias condições de existência” (PINTO, 1985, p. 84). No mesmo sentido, Carminda Cavaco (1994) argumenta que concei-tos como “o rústico” e “o típico” estão carregados de valores ingénuos,

passadistas e retrógrados e, como tal, deverão ser profundamente con

-trolados para não se correr o risco de tornar os espaços rurais em locais de romagem em memória de um passado. Alberto Melo (2000) acrescenta ainda que esta concepção de desenvolvimento, ao definir o mundo rural

em termos passadistas e exóticos – o ‘very typical’ do turista” –

seleccio-na, simplificando, os elementos menos inovadores, como o folclore ou o património imobilizado, e, ao mesmo tempo, desvaloriza e desqualifica as populações locais enquanto sujeitos do seu próprio desenvolvimento.

As ideias de que as populações locais resistem à mudança e de que

o mundo rural se traduz essencialmente no “very typical” do turista estão associadas a uma representação urbano-industrial do desenvolvimento e a

uma lógica de mercadorização dos espaços rurais. O estudo que temos vindo

a analisar parece basear-se na ideia de que o mundo rural caminha inevita-velmente para a extinção e de que a sua possível sobrevivência passa pela aplicação, como remédio, do modelo urbano-industrial. Por exemplo, os

au-tores apontam para a necessidade de um “concelho ainda eminentemente

rural, equilibrar e compatibilizar as necessidades de ocupação das pesso

-as ao longo do ano, designadamente d-as que vivem n-as freguesi-as rurais

também, a “inexistência de relações inter-empresarais e insuficiência de ‘tradição industrial’ típica de um meio sócio-cultural ainda pouco adaptado

à mudança e inovação empresarial e à ‘cultura de profissionalismo no tra-balho’” (1999, p. 66)41. Consideram, igualmente, que “qualquer tentativa

de identificação de oportunidades de desenvolvimento nestes contextos não pode arvorar-se a pretensão de se substituir à dinâmica real de mercado,

que é afinal o lugar último em que as oportunidades de investimento devem

ser sentidas, formuladas e aproveitadas” (1999, p. 14).

Em suma, o estudo em questão mostra que as representações sobre

o desenvolvimento – e especificamente sobre o desenvolvimento local – se mantêm muito vinculadas a um modelo urbano-industrial, produtivista e

mercantilista. À luz deste modelo, a agricultura tradicional é considerada

arcaica, de muito baixa qualidade e não lucrativa e os agricultores são

frequentemente considerados conservadores e obstáculos aos designados

processos de “modernização”. Assim, termos como crise, declínio, atra-so, degradação, empobrecimento, envelhecimento, isolamento, êxodo,

abandono, desertificação, desvitalização, perda, desaparecimento, etc. têm sido frequentemente utilizados nas descrições sobre o mundo rural,

revelando uma visão “pela negativa”, carencialista e desvalorizada dos

territórios e das populações rurais.

As ideias de “crise” e “declínio” resultam do facto de a emigração e o êxodo das populações rurais para as cidades e vilas do litoral ter afectado

significativamente a população activa agrícola e o mundo rural em geral.

Como diz Carminda Cavaco (1994), o abandono dos campos teve implicações

em termos de abandono de terras e lugares, da saída de jovens e adultos,

de degradação do ambiente e da paisagem, de incêndios florestais, de aban

-dono do património edificado, de perdas de saberes-fazer e de patrimónios

culturais, do desaparecimento de culturas e identidades, da diminuição da população, de despovoamento, de desertificação humana, de dificuldade de reposição de gerações, de perdas de capacidade de trabalho. Esta autora lembra, no entanto, que as acções de intervenção no mundo rural tendem a assumir apenas como objectivos a preservação e a conservação. Embora não desvalorizando este tipo de acções, chama a atenção para a necessidade

de se evitar a criação de “reservas”, pois isso seria condenar as populações

41 A escrita em itálico da palavra “ainda” é da nossa responsabilidade e pretende dar conta de uma representação bastante enraizada de que é inevitável a passagem do “rural”, no que este

representa em termos de estilos de vida, práticas culturais, formas de sociabilidade, organização do trabalho, etc., para um modelo de mercado baseado na competição e no lucro.

a viveram desenquadradas do seu tempo. Por exemplo, afirma que seria

uma violência não permitir instalações sanitárias ou acessos aos meios de

comunicação contemporâneos, como as tecnologias da informação e da co

-municação, em nome da pureza de um bucolismo fantasmagórico.

Ferreira de Almeida (1998) reforça a ideia de que o mundo rural é um sistema aberto, inter-relacionado, e não um resíduo preservável ou

descartável. Este autor considera necessário romper com o pensamento

sobre o mundo rural e a sua componente agrícola em termos de compe

-titividade e de vantagens comparativas, explicando que nas zonas rurais

a agricultura constitui, por um lado, uma reserva estratégica de produção irrenunciável em colectivos sociais de uma certa dimensão e, por outro,

ela tem de continuar a cumprir – embora com lógicas e protagonistas parcialmente novos – a velha função de proteger e reproduzir a natureza

e a paisagem. Como tal, é necessário encarar o trabalho dos agricultores,

para além da sua função tradicional, como um serviço prestado à colecti

-vidade, em termos de “jardinagem da natureza” (ALMEIDA, 1998, p. 30). No mesmo sentido, Rui Canário (1998, p. 35) afirma que a “a sobrevivên-cia do mundo rural e dos seus habitantes como os nossos ‘guardadores de paisagens’ configura-se não como a preservação do passado, mas sim como a salvaguarda do futuro”. Em suma, para que as pessoas que vivem

nas regiões rurais possuam condições de vida dignas, é necessário pensar

o mundo rural em termos de futuro, considerando-o não apenas “visitá-vel”, mas também “habitável” (REIS, 1998).

2. Contributos da investigação etnográfica