A efetivação de rupturas possíveis
I. Considerações introdutórias
A ocupação da região do sul do então estado do Mato Grosso é remon
-tada, nas poucas produções existentes, à chegada de Antônio Gonçalves Barbosa (FACHOLLI et al, 1991). Nascido em Sabará, Minas Gerais, Antô-nio G. Barbosa veio para a região Centro-Oeste em meados da década de trinta do século XIX. Nas terras de Boa Vista, nome atribuído à primeira posse fundada na hoje conhecida Rio Brilhante, pertencente à época à
província de Campo Grande, Antônio e seus familiares se estabeleceram,
incluindo seu irmão Inácio Gonçalves Barbosa, bem como, sua filha,
Se-nhorinha, casada com Gabriel Francisco Lopes.
Ressalte-se que Senhorinha e seu marido já haviam fundado a posse
denominada de Monjolinho. E mais: Joaquim Francisco Lopes, irmão de
Gabriel Francisco Lopes, genro de Antônio Gonçalves Barbosa, em 1848 e 1849 percorreu a região de Mato Grosso com o intuito de adquirir terras para Barão de Antonina.
Assim, algumas das relações de afinidade e de parentesco do nú
-cleo familiar de Antônio Gonçalves Barbosa podem ser figuradas da
forma que segue:
106 - Estes dois termos jurídicos estão entre aspas para evocar a distinção entre eles. De maneira sucinta, pode-se dizer que a propriedade engloba a posse, pois, o proprietário de um dado bem “imóvel” pode dispor do mesmo, ou seja, pode vendê-lo.
Antonio Inácio
Senhorinha Gabriel Joaquim
Como estou falando do contexto histórico social de 1.850, um dos discursos de autoridade que deve ser evocado é o da “Lei de Terras”.
Quanto ao seu objeto, destaco as justificativas constantes na mesma,
aprovada no dia 18 de setembro sob o n. 601:
Dispõe sobre as terras devolutas no Império, e acerca das que são possuídas por titulo de sesmaria sem preenchimento das condições legais, bem como por simples titulo de posse mansa e pacifica; e determina que, medidas e demarcadas as primeiras, sejam elas cedidas a titulo oneroso, assim para empresas particulares, como para o estabelecimento
de colonias de nacionaes e de extrangeiros, autorizado o Governo a promover a colonisação extrangeira na forma
que se declara.
D. Pedro II, por Graça de Deus e Unanime Acclamação dos Povos, Imperador Constitucional e Defensor Perpetuo do
Brasil: Fazemos saber a todos os Nossos Subditos, que a
Assembléa Geral Decretou, e Nós queremos a Lei seguinte
[...] (LEI DE TERRAS, 2008).
Vê-se que as terras devolutas são aquelas terras não concedidas em
forma de sesmarias (concessões do Governo), não possuídas de forma “man
-sa e pacífica” e que não são de uso público, isto é, de uso nacional, municipal e/ou provincial. Conseqüentemente, tudo o que não se encaixava nestas
ressalvas, poderia ser negociado mediante compra e venda sob a insígnia de terras devolutas com o próprio Império, mas, antes, porém, deveria ser medido para fins de processamento da Colonização do território brasileiro.
A Lei nº 601 de 1850 (ou Lei de Terras, como ficou
conheci-da) definiu o que seriam terras devolutas: “aquelas que não estão sob domínio dos particulares, sob qualquer título legítimo, nem aplicadas a algum uso público fe-deral, estadual ou municipal”. E estabeleceu as regras
para a revalidação de sesmarias e outras concessões do Governo, proibindo, a partir dai, toda e qualquer aquisi-ção de terras devolutas que não fosse por compra.
Quanto às posses mansas e pacíficas, adquiridas por ocu -pação primária ou havidas de primeiro ocupante - e que se
enquadrassem nos critérios de cultura efetiva e morada habitual - a mesma lei estabeleceu as regras para sua le-gitimação e registro (AZANHA, 2008, s/p).
No tocante à legitimação e ao registro das “posses107” e sua
con-versão para domínio e/ou “propriedade”, com o advento da Lei de Terras,
há que se sublinhar que pesquisas apontam as ilegalidades e/ou as es
-tratégias e táticas utilizadas por determinados sujeitos que para o Mato Grosso se deslocavam com o intuito de adquiriram grandes porções de
territórios. Neste viés, torna-se importante considerarmos que o lapso temporal voltado à colonização do território nacional estendeu-se até pós era Vargas e suas medidas governamentais. Para tanto, remeto-me aos
dizeres de Alcir Lenharo em relação a algumas vicissitudes apontadas nas
negociações e “demarcações” de terras no então Mato Grosso (incluindo a atual região de Dourados), com, por exemplo, a criação das Colônias
Agrícolas Nacionais. Antes, porém, o historiador aponta os motivos que levaram o governo federal ao enfrentamento dos arrendamentos cedidos à Cia. Matte Larangeiras:
O confronto do governo federal com a Cia. Matte Laran
-geiras, por sua vez, é também importante nessa ordem
107 - A distinção entre posse e propriedade é marcante para o Direito, como antes expus. O Código Civil de 1916 tem como uma de suas principais características evocar e resguardar a “propriedade privada” como um de seus “princípios” maiores.
de considerações. Essa companhia ocupava grandes e ricas
extensões de terras no sul do estado, a maior parte delas
arrendadas, e impunha as condições de trabalho que qui
-sesse, conhecidamente escorchantes. O sul do estado mais parecia um território ocupado, e servia como um muro de proteção à chegada de migrantes vindos do sul do país, o que dificultava a colonização dessa parte do estado. O fim dos arrendamentos com a Matte mudou significativamente o panorama, mas do modo que a política governamental
queria (LENHARO, 1986, p. 1-2).
A preferência quanto aos migrantes foi dada aos de origem européia e branca, uma vez que os colonos do sul do país já teriam passado pelo processo de colonização. Mesmo porque, o regime disciplinar da criação
das Colônias Agrícolas impunha ônus aos futuros posseiros caso quises
-sem nesta região permanecer. Se não, vejamos:
Seria desempossado do lote o colono que deixasse de cultivá-lo, ou o desvalorizasse, e o que “por sua má con-duta tornar-se elemento de perturbação para a Colônia”. O controle disciplinar, diz uma fonte oficial, inspirava-se em
Pedras, do coronel Delmiro Gouveia, na qual “o pé descalço, a camisa fora da calça, cachimbo de barro, o aguardentis -mo, o jogo, foram coisas banidas (LENHARO, 1986, p.50)”.
Para além, dos contornos impressos pelas políticas do Estado Novo,
somavam-se para desespero das minorias de acessos a direitos
(migran-tes trabalhadores, trabalhadores locais de diferen(migran-tes etnias, sujeitos (ou asujeitados) libertos, alforriados ou ainda escravizados, etc.), as brechas
que a legislação de terras e o projeto de Colonização abriam para a inter
-venção dos governos estaduais, por exemplo, a cobrança de taxas para a
manutenção de posse e posterior aquisição do domínio.
Em Bela Vista, o governo estadual intercedeu na
devolu-ção para os posseiros das terras da fazenda Pedra, através da permuta com os proprietários. Já em outubro de 47, o mesmo governador apresentou à Assembléia Legislativa um
projeto de lei que criava uma taxa sobre a ocupação de
pagamento anual de 2% sobre o valor venal das terras, fixa-do sobre o pagamento fixa-do imposto territorial. Atente-se para
o objetivo da medida: ficava assegurado ao posseiro a prefe
-rência na compra da terra ocupada, se estivesse quites com o fisco. Mais importante do que o aumento da arrecadação
com a nova terra, visava-se estimular o posseiro a comprar
a terra; a arrecadação seria ainda maior e os possíveis lití -gios de terras seriam afastados (LENHARO, 1986, p.51-52).
Troca de favores entre personagens inseridos em relações de poder centrais (cargos políticos), através de doações de terras ou negociações
privilegiadas; imprecisões por parte dos “agrimensores” que eram figuras chaves na delimitação das terras, dentre outras “ilegalidades” podem ser
assim lidas nos escritos de Lenharo, quando o mesmo aborda os sinais de
corrupção irrompidos entre os anos de 1950 e 1954 no sul do Mato
Gros-so. Passo a eles:
Doação, concessão, venda, enfim, uma orgia de transações imobiliárias, que fazem milionário da noite para o dia, be -neficiam “tubarões” de todos os matizes, parentes, amigos, afilhados políticos. A colonização, esta só existe para
figu-rar nos contratos, para que a lei e a Constituição possam
ser burladas mais livremente (LENHARO, 1986, p.54).
Praticados os meus escusáveis cometimentos históricos, face ao zi
-guezague por entre muitos fatos oficiais e extra-oficiais que recompõem nosso “passado”, peço ao leitor que retorne ao gráfico no qual lancei
al-gumas das relações de parentesco via consangüinidade e/ou afinidade
do desbravador Antônio Gonçalves Barbosa. Propositadamente omite as mulheres, exceto Senhorinha que casou com Gabriel Francisco Lopes e cuja aliança culminou na união das famílias Lopes e Barbosa, bem como,
na forma como se deu a apropriação local de terras.