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4 OS LUSÍADAS E O ORIENTE: COTEJO

4.5 A INVOCAÇÃO EM OS LUSÍADAS E EM O ORIENTE

Em Os Lusíadas, invocam-se as Tágides, que despontaram no poeta um “engenho ardente”. As Tágides são as ninfas do Tejo. Esse termo, cunhado, primeiramente, em latim, por André de Resende, é adotado por Camões. Segundo Virgínia Soares Pereira (2011), as Tágides são divindades nacionais, vinculadas à tradição clássica das ninfas.

Às Tágides, o narrador pede inspiração: deseja cantar os feitos lusitanos no mais alto estilo poético. Pede-lhes

uma fúria grande e sonorosa, [...] de tuba canora e belicosa (CAMÕES, 1982, p. 30).

Esse é o tom adequado à gente portuguesa, nos trabalhos de Marte esforçada.

4.5.1 Nova Invocação: Uma história portuguesa

Na abertura do terceiro canto de Os Lusíadas, há uma nova invocação: à musa Calíope. Ela é a primeira das nove musas da mitologia grega. É a responsável por inspirar a poesia épica. O narrador abre mão das Tágides e invoca-a, pois é a representante da tradição. Há, portanto, a intenção de filiar a narrativa à tradição épica ocidental.

O narrador deseja saber o que “o ilustre Gama” (CAMÕES, 1982, p. 103) conta ao rei de Melinde. Pede-lhe que inspire “imortal canto e voz divina” (CAMÕES, 1982, p. 103) em seu peito. Ele quer a atenção da Musa, pois deseja cantar os portugueses como merecem.

A presença de uma nova invocação à musa é relevante e demanda análise. Inicialmente: a nova invocação não é colocada em um ponto qualquer da epopeia, como um adereço ou como índice de erudição. É colocada em um centro vital do poema: a narrativa de Vasco da Gama, diante do rei de Melinde, a respeito da localização de Portugal (Canto III, estrofes 06-20) no panorama europeu, e da história de Portugal. Isso ocupa três cantos da epopeia. Em Os Lusíadas, portanto, 30% da matéria é dedicada à elaboração de um registro histórico, que parte da Antiguidade portuguesa até o século XV. Essa narrativa é organizada cronologicamente, e parte da fundação da Lusitânia por Luso ou Lisa, filhos ou companheiros de Baco, até a chegada da armada a Melinde.

O terceiro canto é dedicado a uma breve descrição geográfica de Portugal no contexto europeu, e à história portuguesa, desde a fundação da Lusitânia até Fernando I. O quarto canto é dedicado à história portuguesa, desde D. João I até Manuel I. O quinto canto narra da partida de Lisboa até a chegada a Melinde. O exame desses cantos evidencia dois aspectos essenciais:

1º) constituem uma epopeia no interior da epopeia: há proposição, há invocação à Musa e há uma narrativa dos sucessos portugueses, desde os atos dos heróis fundadores até os atos dos

2º) o cumprimento da lei dos Fados, referidas por Júpiter no concílio dos deuses: os portugueses são agasalhados em Melinde e podem chegar às portas indianas.

4.5.2 Nova Invocação: Lamento

No sétimo canto de Os Lusíadas, o narrador invoca as ninfas do Tejo e do Mondego. Invoca-as, no entanto, não para louvar sua Pátria. Busca nelas conforto e apoio. Sente-se um “cego, [...], insano [...] e temerário” (CAMÕES, 1982, p. 278). Sem a bondosa mão das ninfas, sucumbirá. O narrador clama-lhes: está há muito tempo louvando o Tejo e os Lusitanos, mas a Fortuna acena-lhe com perigos no mar e com guerra: tem em uma das mãos a espada e, na outra, a pena. Após tamanho empenho em favor da Pátria e de sua gente, resta-lhe a pobreza, o degredo e o naufrágio.

O narrador insurge-se contra aqueles a quem canta. Espera deles um prêmio pelos versos, o descanso merecido e as honrarias dedicadas aos poetas. No entanto, eles obrigam-no a “trabalhos nunca usados” [...] (CAMÕES, 1982, p. 279). Essa é a espécie de senhores engendrados no Tejo: tratam com desdém aqueles que cantam suas glórias. O narrador preocupa- se com o exemplo dado por eles aos futuros escritores, pois não têm interesse em despertar e promover “engenhos curiosos” (CAMÕES, 1982, p. 279). O narrador, por isso, pede às ninfas que não removam seu favor, e jura diante delas jamais usar seu engenho para louvar a quem não mereça:

A quem ao bem comum e do sei rei antepuser seu próprio interesse, [...]

nenhum ambicioso que quisesse subir a grandes cargos [...] (CAMÕES, 1982, p. 280)

nenhum que use de seu poder bastante para servir a seu desejo feio,

e que, por comprazer ao vulgo errante, se muda em mais figuras que Proteio (CAMÕES, 1982, p. 280)

nem quem acha que é justo e que é direito guardar-se a lei do rei severamente, e não acha que é justo o bom respeito que se pague o suor da servil gente (CAMÕES, 1982, p. 280).

O narrador faz parte da “servil gente”, que empenha a própria vida “por seu Deus [e] por seu rei” (CAMÕES, 1982, p. 280) sem reconhecimento e vantagem alguma. Continuará, no entanto, com a ajuda de Apolo e das Musas, cantando-a, assim que retomar o fôlego. Com esse novo alento, cantará até o décimo canto, no qual registra a viagem de retorno da armada e sua chegada a Lisboa.

4.5.3 “Não mais, Musa”

Tão logo a armada chega a Lisboa, o narrador encerra a narrativa, com as palavras acima. Sua lira está desafinada, e a voz rouca. Não por cantar, mas por constatar que canta “a gente surda e endurecida” (CAMÕES, 1982, p. 280). O favor, que incita o engenho poético, a Pátria portuguesa não dará, pois,

[...] está metida

no gosto da cobiça e na rudeza du[m]a austera, apagada e vil tristeza (CAMÕES, 1982, p. 393).

A Pátria está deitada em meio à corrupção moral. Agracia aos bajuladores e esfola a “servil gente”, à custa de quem se fortalece o Império. Por isso, o sofrimento do narrador é irremediável, pois irremediável é a situação da Pátria, prenúncio de ruína.

Em O Oriente, o poeta não invoca um ser mítico inspirador. Antes, invoca a voz da poesia e a voz da história. Essas são as duas vozes que o guiam em seu fazer poético. A Voz da Poesia permite-lhe proteger a memória dos feitos de sua gente, e a voz da história permite-lhe fazê-lo conforme à realidade histórica. Segundo o narrador de O Oriente, Camões não ouviu essas vozes tão bem quanto deveria. Daí sua epopeia requerer emendas.