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2 DE CAMÕES A MACEDO : O ESPÍRITO DO TEMPO E SUAS EPOPEIAS

2.5 MODIFICAÇÕES NO ESPÍRITO E NA PRODUÇÃO LITERÁRIA EM PORTUGAL

2.5.1 Epopeias principais

Os problemas políticos e “a morbidez da mente” verificada a partir de 1580 em Portugal aumenta o valor da herança da primeira metade do século XVI: “a matéria heroica e a epopeia, que a celebrava” (FIGUEIREDO, 1966, p. 206). Os historiadores esforçam-se por manter viva essa memória, cujo contraste com o Portugal presente é evidente, e narram os fatos históricos imbuídos do espírito épico, a fim de engrandecer sua matéria. Para Figueiredo, os poetas “[eram] de escasso fôlego criador, sem visão poética, frios narradores, desceram na escala de valores artísticos para se aproximarem da crônica” (1966, p. 206).

Para Figueiredo, a instabilidade política decorrente do desaparecimento de D. Sebastião na batalha de Alcácer-Quibir e o ambiente espiritualmente depressivo não justificam o desaparecimento do gênio, pois

a decadência política não é incompatível com a floração de altas inspirações poéticas [...] o gênio pode vencer o meio ambiente. Para que haja epopeia é necessário que haja

matéria épica de criação coletiva e sentimentos de ufania heroica, inacessíveis ao derrotismo. Essas condições é que tinham cessado em 1580 (1966, p. 207).

Assim, para Figueiredo (1966), as epopeias portuguesas pós-camonianas não comungam da antiga glória, ainda que algumas delas apresentem boa qualidade formal.

Em 1588, publica-se em Portugal o poema Elegíada, de Luís Pereira de Brandão (1530/1540 - ?). Brandão estivera em território africano junto ao exército de D. Sebastião, em Alcácer Quibir, a fim de elaborar um poema épico. A realidade, contudo, reduziu-o “a cronista métrico de uma derrota” (FIGUEIREDO, 1966, p. 206). Luís Pereira de Brandão “provém do ambiente épico, que inspirou Camões, e deriva também do desejo de o imitar, mas é o primeiro poeta em cujo espírito atuam aquelas correntes morais da morbidez [da mente]” (FIGUEIREDO, 1966, p. 207).

Em 1611, Vasco Mouzinho de Quevedo Castelo Branco (1570-1619) publica seu poema Afonso Africano. O tema do poema, composto em doze cantos, é a conquista de Arzila e Tânger por Afonso V. Para Figueiredo (1966), esse poema não é apenas exposição histórica, mas alegoria. A tomada de Arzila simboliza o trabalho de dominar a própria alma, avassalada pelo demônio. As cinco portas da cidade representam os cinco sentidos. Os três altos baluartes da cidade representam as potências da alma. A cidadela mais interna representa o coração humano. Lúcifer promove a intervenção de magos e feiticeiros contra Afonso V e seu filho D. João. Os poderes malignos lançam tentações que, por pouco, não os fazem fraquejar. Os mouros representam os espíritos malignos. O combate entre sete cristãos e sete maometanos representa a luta entre as virtudes e os pecados capitais. Para Figueiredo (1966), a transcendência a qual visa o autor complica o poema e torna-o lento. Segundo ele, a complicação dos episódios e as digressões são evidências do laivo cultista presente nos autores daquele tempo.

Para Saraiva & Lopes, o poema Afonso Africano (1611) “assinala uma viragem estilística e ideológica” (2010, p. 369). Nesse poema, “ainda se faz sentir a influência camoniana, mas apenas no que diz respeito à fraseologia, ao material primeiro do estilo [...] ao prosaísmo cronístico vai seguir-se a alegorização da ação em termos moralistas e religiosos” (2010, p. 369). Sua influência predominante, contudo, é o épico Jerusalém Libertada (1581), de Tasso. Acerca desse poema concluem: “é uma página lutuosa de nobiliário metrificado” (2010, p. 369).

Em 1613, Francisco de Paiva de Andrade (1540-1614) publica sua Crônica de D. João III. Para Saraiva & Lopes, não se trata de um poema, mas de “uma crônica em oitava rima”

(2010, p. 368). Concluem que dela aproveita-se, somente, o episódio no qual se narra a defesa de Diu por Antônio da Silveira (1583).

Em 1618, Bernarda Ferreira de Lacerda (1590-1644) publica seu poema Espanha Libertada. O tema desse poema é a reconquista da Península Ibérica pelos cristãos, “desde a batalha de Crissus até a tomada de Granada, um transcurso de mais de sete séculos” (FIGUEIREDO, 1966, p. 209). “A cruzada antimuçulmana é o assunto da epopeia” (SARAIVA & LOPES, 2010, p. 370). Para Figueiredo, a autora afogou-se na abundante matéria, e produziu “um produto soporífero, a que falta qualquer emotividade” (1966, p. 209).

Em 1623, D. Francisco Child Rolim de Moura (1572-1640) publica o poema Os Novíssimos do Homem. Para Figueiredo, nessa obra, o autor “renunciou à História para só tecer a sua fábula com materiais do mundo religioso” (1966, p. 209). A respeito da fábula desse poema, informa ele:

Depois de breve proposição e invocação, começa Moura seu relato. Deus havia criado o mundo, nele ordenado a confusão do caos, e escolhendo um seu recanto, desveladamente embelecido, o Éden, para habitação do primeiro casal, Adão e Eva, que só tinham uma limitação ao gozo pleno da sua felicidade: a proibição de tocar o fruto da árvore do bem e do mal. As potências infernais, despeitadas, não podem sofrer que “um que da terra vil tem seu começo” lhes seja preferido. Reunidos em concílio, por convocação de seu soberano, maquinam a perdição do homem. Vem a tentação da serpente e vem toda a ação bíblica, a qual constitui a fonte principal do poema (1966, p. 209-10).

Em 1624, Manuel Bocarro (Francês) (1588- 1622) publica a Anacephaleosis de Monarchia Lusitana (4ª parte 1626, desconhecendo-se a 2ª e a 3ª partes (SARAIVA & LOPES, 2010, p. 370). Ele é um grande conhecedor da Cabala, cuja influência faz-se sentir em suas obras. É ele quem “introduz na epopeia o mito do Quinto Império universal, expressão de um messianismo que atingiu tanto o povo como a aristocracia” (SARAIVA & LOPES, 2010, p. 370).

Em 1634, Francisco de Sá de Meneses publica Malaca Conquistada. A matéria de seu poema é a conquista de Malaca por Afonso de Albuquerque. Para Figueiredo, “a sua ação tem grandeza e unidade, ainda nos episódios, porque estes ligam-se-lhe diretamente, sem violência” (1966, p. 210), e acrescenta: “é de estatura moral heroica e mantém-se inalterável em todo o desenvolvimento da narração” (1966, p. 210). Segundo Figueiredo (1966), Francisco Sá de Meneses é conhecedor dos épicos clássicos, e leitor e imitador de Camões. Por isso, em sua epopeia, inclui episódios presentes nas epopeias clássicas e também em Camões, como

componentes obrigatórios: o sonho e a tempestade. Além disso, atrai na epopeia a representação do exotismo asiático, de conteúdo lírico.

Para Saraiva & Lopes, Jerusalém Libertada (1581) é a grande influência dessa epopeia, apesar da presença fraseológica camoniana. A respeito de Malaca Conquistada (1634), afirmam haver “a fusão do tom épico com a prédica moralista e religiosa, sintoma claro de uma subordinação da cultura especificamente nobre à do clero” (2010, p. 370).

Em 1635, Manuel Tomás (1585? – 1675?) publica Insulana. Nos dez cantos desse poema, narra-se a viagem de João Gonçalves Zarco através do Atlântico, até tornar-se senhor da ilha da Madeira. Para Figueiredo, “a ação breve e tranquila, que não tinha recursos épicos, pôde oferecer matéria novelesca” (1966, p. 211). Figueiredo acredita existir uma profunda desproporção entre o fundo histórico do poema e a forma épica. No poema, a história e o desenvolvimento da ilha da Madeira são expostos pelas profecias, recurso amplamente utilizado na elaboração das epopeias.

Além do poema Insulana, informa Figueiredo (1966) que Manuel Tomás escreve outro poema de louvor à pátria, elaborado em dez cantos, intitulado Fênix da Lusitânia, cuja matéria é a política da Restauração de Portugal, a qual presenciou entusiasmado. A matéria do poema e o autor são contemporâneos, e suas personagens ainda viviam à época da publicação, sendo o próprio poeta um dos personagens do poema. O que afasta o poema da realidade decorre, segundo Figueiredo, da profusão de profecias e visões representadas, o que sinaliza o “ambiente de profetismo sebastianista, em que vivia e comungava o autor” (1966, p. 212).

Em 1636, Gabriel Pereira de Castro (1571 – 1632) publica Ulisseia. Esse poeta escolhe como matéria de seu poema não os sucessos portugueses do presente, mas volta-se à matéria mítica da fundação de Lisboa por Ulisses. Com esse poema, pretende destronar Camões. O prefácio da Ulisseia foi escrito pelo principal teorizador do poema épico daquele período, Manuel de Galhegos (1597 – 1665(?)) autor da Gigantomaquia, escrita em castelhano, e, também, de Templo da Memória, de 1635. Nesse prefácio, Manuel de Galhegos busca evidenciar a superioridade da Ulisseia em relação a Os Lusíadas. Afirma que a “Ulisseia [está] muito mais dentro dos cânones homéricos, tal como o autor reconhece, ao anunciar que espera cantar Ulisses, imitando Homero” (SARAIVA & LOPES, 2010, p. 371).

Em 1638, publica-se em Nápoles, e reimprime-se em 1731 em Madri, o poema Macabeu, de autoria de Miguel da Silveira (? – 1639?), composto em vinte cantos. Para Figueiredo (1966), o autor recorre ao mundo bíblico, e não à realidade histórica.

Em 1640, Antônio de Sousa Macedo (1606 – 1682) publica Ulissipo. No poema, o autor volta a tratar da fundação de Lisboa por Ulisses, por meio da abordagem dos mitos clássicos. Para Figueiredo, “Macedo corrigiu o desvio de Pereira de Castro, concedendo mais amplo lugar à fundação da cidade e interpretando mitologicamente as tradições locais e os acidentes geográficos” (1966, p. 213).

Em 1667, publica-se Virgínidos, de Manuel Mendes de Barbuda e Vasconcelos (1607 – 1670). Esse poema “mais se afasta do quadro da História Pátria, não para se ocupar de velhas nobiliarquias, mas para cantar [...] com devoção enternecida e cruel prolixidade a vida da Virgem Maria em numerosos cantos” (FIGUEIREDO, 1966, p. 213).

Em 1671, publica-se o poema Destruição de Espanha, de André da Silva Mascarenhas. O autor volta-se à matéria histórica da Península Ibérica. Figueiredo (1966) considera a matéria desse poema dispersa e, por consequência, sem unidade. Contrário aos preceitos da poética clássica, o poema não tem um herói protagonista, convertendo-se, portanto, em uma coletânea de episódios.

Em 1699, publica-se o poema Viriato Trágico, de Brás Garcia de Mascarenhas (1596 – 1656). Para Figueiredo (1966), o autor tinha personalidade característica e viveu uma vida intensa. Por isso, seu poema possui alguns méritos que o afastam das demais composições do século XVII. Ele narra os feitos de Viriato, chefe dos lusitanos na resistência ao exército romano. Segundo Figueiredo (1966), o autor é amante do tema e sente-o ardorosamente, buscando “inspirar-se mais na realidade que na imitação de outros poetas e na teoria dos preceptistas” (p. 216). Para Figueiredo, esse é o grande mérito da obra: “o banho lastral da realidade, em que submergiu a cansada forma da poesia heroica” (1966, p. 216). No poema, o maravilhoso é empregado em pequena quantidade, reduzida “à aparição da deusa Ocasião” (1966, p. 216), que incita ao herói a cometer grandes feitos. Para Figueiredo, esse “é o principal dos poemas heroicos [portugueses] do século XVII” (1966, p. 217).

Para Saraiva & Lopes, Viriato Trágico é “uma obra curiosíssima” (2010, p. 373), pois não está alinhada às regras do gênero épico. É mais afim ao romance histórico, “cheio de realismo calejado de um militar veterano que as convenções versificatórias clássicas afinal só prejudicam” (2010, p. 373). Sobre o herói, afirmam: “Viriato é nele um novo tipo de herói: representa, a maneira do próprio autor, como que uma síntese entre o herói épico convencional e o anti-herói da novela picaresca espanhola” (2010, p. 373).

Para Saraiva e Lopes, a profunda diferença entre o poema épico camoniano e os poemas de seus pósteros decorre de “uma profunda crise na ideologia da nobreza” (2010, p. 369). Para eles, “o fôlego heroico está efetivamente perdido, deixando apenas como sucedâneo o gosto narrativo ou um sentimento elegíaco recortado contra um fundo de orgulho nobiliárquico exacerbado” (2010, p. 369).

Uma dramática mudança na percepção e na relação com o antigo espírito português, sintetizado por Camões em Os Lusíadas, revela-se na poesia épica dos autores posteriores a Camões. Alguns deles desejam ser animados por aquele espírito, mas não granjeiam o sucesso a que almejam. O grupo de poemas épicos acima relacionado basta para demonstrar a profunda diferença temática e qualitativa entre Camões e os poetas épicos posteriores. Portanto, saltar-se-á ao século XIX, o século de José Agostinho de Macedo, a fim de conhecer a ele e ao espírito de seu tempo.

2.6 O SÉCULO XIX

Segundo Figueiredo, o pensamento árcade é uma reação, esboçada por meios acadêmicos, contra os excessos acadêmicos. É um esforço de reflexão, o que o constitui, essencialmente, em um fenômeno crítico. Segundo ele, “a Arcádia ventilou altas e sãs ideias, mas executou muito pouco do que ambiciosamente concebeu” (1966, p. 283). Ela tem uma “intenção restauradora” (1966, p. 283), oriunda da esperança na administração do Marquês de Pombal (1699 – 1782), envolvido na reconstrução de Lisboa, arrasada pelo grande terremoto de 1755. Segundo Figueiredo (1966), Antônio Dinis, Correia Garção, Gomes de Carvalho e Estêves Negrão não reuniriam tantos cooperadores para o movimento árcade caso esse não representasse uma oportunidade. Essa oportunidade, por sua vez, surge como fruto dos atos de outros indivíduos, mensageiros das novidades que circulam nos meios acadêmicos do tempo, sobretudo da França e, também, como demolidores de pressupostos de ideias anteriores.

Antônio Diniz da Cruz e Silva (1731 – 1799) funda a Arcádia Lusitana, aos 25 anos de idade. Segundo Figueiredo (1966), há muito rigor na redação do regulamento da Arcádia Lusitana. O estatuto e o parecer justificativo do movimento são redigidos por Antônio Dinis. Ele, desde o princípio, aproxima de si a Estêves Negrão e Gomes de Carvalho. A primeira reunião da Arcádia Lusitana ocorre em julho de 1757 e a última em janeiro de 1770. Segundo Figueiredo:

A Arcádia tomava o nome da região da Hélade, bem lembrada na poesia pastoril, e denominava de Monte Mênalo ao local das suas conferências. Os seus membros eram [...] escolhidos por escrutínio secreto, rodeado de especiais cautelas para a sua liberdade. Não se havia de atender a outras qualidades além das do mérito e da virtude [...]. Todos os árcades adotavam um pseudônimo pastoril e ao concorrer às sessões ostentavam um lírio por distintivo, símbolo místico da Imaculada Conceição [...]. Era, pois, dever dela defender o culto da Virgem ao mesmo tempo que realizava suas obrigações literárias (1966,p. 285).

O lema da Arcádia é Inutilia Truncat: “remover o inútil”. Esse lema esclarece a intenção crítica subjacente ao movimento: “a função crítica era de grande importância no seio da Arcádia” (FIGUEIREDO, 1966, p. 285). Seus membros compõem obras poéticas e apresentam-nas em sessões. Posteriormente, as obras são recolhidas pelo secretário e confiadas aos censores. Estes examinam-nas e julgam-nas. O juízo dos censores é declarado aos autores, os quais, no prazo de dez dias, podem defender suas obras. Após isso, os árbitros decidem a situação da obra, e pronunciam a decisão definitiva. Em caso de empate entre os árbitros, o presidente vota, a fim de desempatar. Os resultados, por sua vez, são anotados em atas. Informa Figueiredo: “Introduzir como função principal numa academia o exercício da crítica era lançar um germe de morte em seu seio” (1966, p. 286). De fato, em pouco tempo, as divergências vieram à tona e, com elas, o conflito e posterior separação entre os membros da Arcádia Lusitana.

Há um grupo de poetas, aos quais Figueiredo (1966) chama “Os Independentes”, pelo fato de não participarem da Arcádia Lusitana e, alguns deles, terem-na combatido, entre os quais José Agostinho de Macedo. Segundo Figueiredo,

a unidade de vistas daquele grêmio desfez-se, mas o seu espírito subsistiu e disso é uma prova a tentativa, de 1790, de uma instituição similar: a Nova Arcádia ou Academia das Belas-Letras, por diligência de Ferraz de Campos, Curvo Semedo, Caldas Barbosa e José Agostinho de Macedo (1966, p. 283).