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1.6 A MATÉRIA DE OS LUSÍADAS E DE O ORIENTE: A VIAGEM À ÍNDIA

1.6.1 Vasco da Gama

Vasco da Gama, “homem solteiro, e de idade para sofrer os trabalhos duma tal viagem, experimentado nas coisas do mar, nas quais tinha feito muito serviço a el-rei D. João” (GÓIS, Crônica de D. Manuel, 1ª parte, cap. 23, apud PERES, 1943, p. 294), é escolhido como comandante dessa expedição. Vasco da Gama, nascido em Sines, em meados do século XV, é filho de Estêvão da Gama e neto de um também Vasco da Gama.

A nomeação de Vasco da Gama como comandante é entendida de maneiras diferentes pelos cronistas da época. O cronista Garcia de Resende, secretário particular do rei, encara a decisão de D. Manuel I como deferência à decisão já tomada por D. João II. Por outro lado, Duarte Pacheco, navegador português, atribui a D. Manuel I o planejamento daquela viagem.

Garcia de Resende, buscando louvar os atos de D. João II, escreve:

[pelos] grandes desejos que el-rei sempre teve do descobrimento da Índia, no que muito tinha feito e descoberto, até além do Cabo da Boa Esperança tinha concertada e prestes a armada para descobrí-la, e por capitão-mor dela Vasco da Gama, fidalgo de sua casa; e por falecimento de el-rei a dita armada não partiu. E el-rei D. Manuel, que santa glória haja, tanto que reinou, mandou partir a armada, assim como estava prestes (RESENDE, Crônica de D. João II,cap. CCVI, apud, PERES, 1943, p. 292).

O navegador Duarte Pacheco, por sua vez, informa que

mandou el-rei nosso senhor que se fizessem quatro navios pequenos, que o maior não passasse de cem tonéis para cima, porque para terra não sabida e tão incógnita como aquela então era, não era necessário serem maiores. E isso se fez assim por que mais ligeiramente pudessem entrar e sair em todo lugar, o que, sendo grandes, não podiam fazer. E estes se fizeram por singulares mestres e oficiais, e assaz fortes de madeira e pregadura, e com três equipações de velas cada nau, e assim amarras e outros aparelhos e cordoalha três e quatro vezes dobrada além da que costuma trazer. A louça dos tonéis, pipas, barris, assim de vinho, como de água, vinagre e azeite, toda foi arqueada com

mantimentos de pão, vinho, farinhas, carnes, legumes e cousas de botica, e assim armaria e bombardaria, tudo isto foi dado em tanta abastança, quanto a necessidade do caso convinha, e muito mais (PACHECO, Esmeralda de situ orbis, liv. 4º, cap. 2º, apud, PERES, 1943, p. 292).

Os escritores quinhentistas afirmam que D. João II é o idealizador e arquiteto da ideia. Menciona Castanheda, por exemplo, que D. João II planejara a construção de dois navios adequados à viagem ao Oriente e que, para tanto, havia mandado cortar madeiras escolhidas especialmente para isso, tarefa que confia a um homem chamado João de Bragança. Nesse contexto, segundo o autor, sobrevém a morte ao rei (CASTANHEDA, História do descobrimento e conquista da Índia, liv. 1º, cap. II, apud PERES, 1943, p. 293).

João de Barros, por sua vez, informa que D. Manuel I ordena a Bartolomeu Dias “que tivesse cuidado de os mandar [os barcos que D. João II mandou construir] acabar segundo ele sabia que convinha para sofrer a fúria dos mares daquele grão Cabo da Boa Esperança” (BARROS, Ásia, Década I, liv 4º, cap. I).

João de Barros e Damião de Góis afirmam que o capitão-mor nomeado pelo rei D. João II é Estevão da Gama, pai de Vasco da Gama, e acrescentam que esse é escolhido em virtude da morte daquele. O próprio João de Barros, contudo, reconhece que há dúvidas em torno de sua afirmação, e apresenta-a como um boato. Damião de Góis, ao elaborar sua compreensão a respeito daqueles fatos, serve-se da obra Ásia, escrita por João de Barros. Damião de Góis, por sua vez, apropriando-se das palavras de João de Barros, remove-lhes o caráter especulativo e, tal como faz um literato, inventa “uma fala de agradecimento ao monarca, pronunciada por Vasco da Gama” (PERES, 1943, p. 295).

A posição dos cronistas varia. Contudo, isso não altera o fato de que é Vasco da Gama o capitão-mor daquela expedição e, pela primeira vez na história portuguesa dos descobrimentos, atribui-se a um capitão-mor funções militares e também diplomáticas muito bem definidas. Vasco da Gama porta cartas de D. Manuel I, encaminhadas ao Samorim de Calecute, chefe da Índia com quem deseja estabelecer relações políticas e econômicas. Além disso, Vasco da Gama dispõe de um poderoso arsenal. Caso alguma situação o demande, está autorizado a utilizá-lo.

A fim de enumerar os navios que compõem a frota com a qual se alcança a Índia, Castanheda, em sua História do descobrimento e conquista da Índia, refere-se a dois, nomeados São Gabriel e São Rafael, construídos especificamente para essa viagem. Soma-se aos dois uma caravela, a Bérrio, nomeada assim por ser esse o apelido do piloto a quem pertence, e um navio

de um mercador lisboeta chamado Aires Correia, cujo nome não é indicado por Castanheda. A finalidade dessa última embarcação é servir como navio de abastecimento. Essa embarcação deve ser destruída na aguada de São Braz e seus suprimentos devem ser distribuídos entre os outros três navios.

O capitão-mor Vasco da Gama é o comandante da expedição e está a bordo do São Gabriel. Seu irmão, Paulo da Gama, é o capitão do São Rafael. Nicolau Coelho é o capitão da Bérrio. Gonçalo Nunes é o comandante do navio de apoio.

Os pilotos são escolhidos rigorosamente. Pero de Alenquer pilota o São Rafael, Pero Escolar a Bérrio. O primeiro piloto acompanhara a Bartolomeu Dias na viagem que resulta no descobrimento da passagem sueste, e é um profundo conhecedor dos mares africanos do sul. O segundo piloto acompanhara a Diogo Cão nas explorações à costa africana que precederam às investigações de Bartolomeu Dias. O piloto do São Rafael chama-se João de Coimbra.

Além disso, sabe-se quais foram os escrivães dos três navios do descobrimento: do São Gabriel foi Diogo Dias, irmão de Bartolomeu Dias e seu companheiro durante a viagem que deu volta à África. Do São Rafael foi João de Sá e, por fim, da Bérrio, Álvaro de Braga.