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4 OS LUSÍADAS E O ORIENTE: COTEJO

4.1 A MITOLOGIA EM OS LUSÍADAS: APONTAMENTOS

Em Os Lusíadas, efetua-se, em especial, a apropriação dos mitos clássicos greco-latinos, cuja força motriz confere às ações de deuses e de homens, no decorrer dos dez cantos da epopeia, a energia que enceta, mantém e encerra seus movimentos. Em Os Lusíadas há, também, a apropriação da mitologia judaico-cristã, denominada cristã.

A obra de Camões, portanto, reúne elementos das duas grandes mitologias fundadoras do pensamento ocidental. A primeira, do ponto de vista cristão, é uma mitologia profana, centrada nos deuses, cujo culto oficial extinguira-se há séculos. A segunda, a mitologia judaico-cristã, da qual procede o cristianismo, transformara-se em paradigma religioso ocidental.

O estudo de Os Lusíadas propõe, no entanto, um enigma: essa epopeia enraiza-se, mais profundamente, na mitologia cristã, sagrada, ou na mitologia greco-latina, pagã? A deusa Tétis oferece uma resposta.

Os portugueses regressam do Oriente, encontrada a Índia. A deusa Vênus, sua protetora, aparelha-lhes uma ilha, repleta de prazeres, e ordena a Tétis e às ninfas que os recebam. Os portugueses regalam-se com as ninfas e com os manjares preparados. Tétis convida, posteriormente, a Vasco da Gama para subirem um monte. Diante deles, desce dos céus a máquina do mundo. Tétis mostra ao Gama o empíreo e discursa:

Aqui, só verdadeiros, gloriosos divos estão, porque eu, Saturno e Jano, Júpiter, Juno, fomos fabulosos, fingidos de mortal e cego engano. Só pera fazer versos deleitosos servimos; e, se mais o trato humano nos pode dar, é só que o nome nosso nestas estrelas pôs o engenho vosso.

E também, porque a santa Providência, que em Júpiter aqui se representa, por espíritos mil que têm prudência governa o Mundo todo que sustenta (CAMÕES, 1982, p, 374, 83) quer logo aqui a pintura que varia agora deleitando, ora ensinando, dar-lhe nomes que a antiga Poesia a seus Deuses já dera, fabulando; (CAMÕES, 1982, p, 374, 84)

enfim que o Sumo Deus, que por segundas causas obra no Mundo, tudo manda. e tornando a contar-te das profundas obras da Mão Divina veneranda (CAMÕES, 1982, p, 374, 85).

No Empíreo residem os verdadeiros deuses. Ela, Tétis, e as demais divindades greco- latinas são tão somente seres fabulosos, e servem apenas como matéria poética. Na melhor das hipóteses, prestam-se a nomear constelações. Júpiter representa a “santa Providência”, que governa o mundo. Por meio da representação, deseja-se dar ao Deus verdadeiro, os nomes que a “antiga poesia” dava aos seus deuses. Deus, na realidade, é quem tudo ordena.

Essa chave interpretativa deve mitigar qualquer mal-entendido interpretativo: o narrador apropria-se dos mitos greco-latinos com fins estéticos. A desproporção quantitativa, entre os elementos mitológicos pagãos e cristãos, no entanto, coloca em dúvida a chave de leitura oferecida por Tétis. Organicamente, a obra não endossa esse argumento, e as evidências, nesse sentido, abundam em Os Lusíadas. O reexame faz-se necessário.

As consecuções da expedição portuguesa rumo à Índia são o motor da epopeia. Vasco da Gama, seu capitão, acredita estar sob o auspício das divindades cristãs. As divindades pagãs, no entanto, governam a ação: eis um paradoxo. Vênus é a protetora da empresa lusitana. As nereidas auxiliam-na nessa tarefa. Vênus intercede pelos portugueses ante seu pai, Júpiter. Marte coloca-se ao lado dela. Júpiter reune o Concílio Divino e relembra-lhe a inevitabilidade do sucesso da empresa portuguesa: é a ordem dos Fados. Baco é o deus cujo culto ocorre no Oriente. Para defendê-lo do perigo lusitano, elabora e consuma uma série de ardis e, em desespero, pede a ajuda de Poseidon. Por fim, Tétis profetiza o vitorioso futuro português no Oriente.

Essa é uma breve exposição dos principais elementos míticos pagãos em Os Lusíadas. Onde e de que maneiras participam as divindades cristãs no enredo da epopeia? Em nenhum momento e de modo algum. Significa isso que a mitologia cristã está ausente em Os Lusíadas?

Não. Ela incorpora-se ao discurso do narrador, ao discurso de Vasco da Gama e ao discurso de Paulo da Gama, diante dos reis de Melinde e da Índia respectivamente. As divindades cristãs, no entanto, nada operam na obra.

As divindades cristãs, em Os Lusíadas, não participam da ação, sob nenhum ponto de vista. A intenção subjacente a esse processo composicional não é clara. Factualmente, o tratamento desproporcional dado por Camões àquelas mitologias desacomodará a alguns de seus leitores.

4.1.1 O parecer do censor

O primeiro incomodado é o Frei Bartolomeu Ferreira, censor responsável pela leitura de Os Lusíadas:

[...] não achei neles coisa alguma escandalosa nem contrária à fé e aos bons costumes. Somente me pareceu que era necessário advertir os leitores que o autor, para encarecer a dificuldade da navegação e entrada dos portugueses na Índia, usa de uma ficção dos deuses dos gentios [...] Todavia, como isto é poesia e fingimento, e o autor como poeta não pretende mais que ornar o estilo poético, não tivemos por inconveniente ir esta fábula dos deuses na obra, conhecendo-a por tal e ficando sempre salva a verdade de nossa santa fé que todos os deuses dos gentios são demônios (CAMÕES, 1982, p. 25).

A seguinte advertência acompanha Os Lusíadas: os deuses dos gentios embelezam o estilo poético e conferem um grau elevado de dificuldade às proezas portuguesas. Essa fabulação é fruto do senso estético do poeta. Por isso, não se vetará a publicação da obra. O leitor, no entanto, não esqueça: “os deuses dos gentios são demônios”. Ainda que aquelas divindades sejam representadas em virtude do engenho de Camões, são demônios. São demônios para Camões? Por que não representar Deus em ação? É aceitável representar a Deus e a corte celestial por meio de demônios?

4.2 O ORIENTE

Quase três séculos mais tarde, outro leitor de Os Lusíadas sentir-se-á incomodado com a epopeia. Ele perceberá o peso e o valor do paganismo em Camões, e desconfiará da resposta de Tétis. Dedicar-se-á à elaboração de um novo poema épico português. Esse homem é o padre José

Agostinho de Macedo, e seu épico chama-se O Oriente, cuja principal característica composicional é emendar Os Lusíadas em dois aspectos que considera problemáticos:

1º) a sacralidade conferida aos ídolos greco-latinos; 2º) a representação do herói Vasco da Gama.

Segundo José Agostinho de Macedo, esses aspectos são os grandes erros de Camões em Os Lusíadas. Evidencia isso da seguinte maneira:

E se outra lira imortaliza o Gama, em mim seus dons a Natureza apura; de seu sacrário liberal derrama

luz, que almo estudo me tornou mais pura: filosofia no meu peito a chama

desprende, que afugenta a sombra escura; do vil respeito os Ídolos derruba,

tira mais alto som da épica tuba (MACEDO, 1814, vol. I p. 104).

O estudo comparativo é essencial à compreensão dessas epopeias. Doravante, examinar- se-ão as semelhanças e as divergências na representação elaborada em cada uma delas. Dessa maneira, compreender-se-á o processo composicional utilizado por cada um dos poetas para representar a viagem de achamento da Índia e seus desdobramentos.