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A justiça contemplando o indivíduo

No documento IniciaçãoaBioética-LivroInteiro (páginas 71-73)

Por um largo período da história prevaleceu a idéia da lei natural como norma de relações entre os homens. Somente na modernidade a justiça deixou de ser concebida como condi- ção natural para transformar-se em decisão moral. Evoluiu-se no entendi- mento da justiça como valor intrínse- co de uma lei natural para um bem decidido em termos de um contrato social. Este novo pacto passou a ditar normas de relação entre o súdito e o soberano não mais pela submissão, mas sim por uma decisão livre. O ho- mem comum agora desconsiderava a lei natural como fonte autêntica de poder e impunha sua decisão moral como única e exclusiva norma de jus- tiça. No final do século XVII, John Locke descreveu como direitos primá- rios de todo ser humano o direito à vida, à saúde, à integridade física, à liberdade e à propriedade.

No início do renascimento, o tema da justiça foi tratado por Jean Bodino em seu livro República, onde propõe uma monarquia harmônica na qual os súditos não seriam tratados como cri- anças, numa clara referência ao mo- delo grego, mas sim como adultos, do- tados de liberdade, e condena a idéia dos monarcas abusarem das pessoas livres, bem como dos escravos e dos

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bens dos súditos como se fossem seus. Disse Bodino: “Entendo por justiça a

reta distribuição das recompensas e das penas e do que pertence a cada um de acordo com o direito (...) Dita distri- buição só pode realizar-se pela aplica- ção conjunta dos princípios da igual- dade e da semelhança, o que cabalmen- te constitui a proporção harmônica(...) Nenhum autor grego ou latino referiu- se à justiça harmônica seja para sua distribuição, seja para o governo da Re- pública. Não obstante, se trata da for- ma de justiça mais divina e mais excelsa...”

Entre Bodino e Locke houve um pensador muito importante, Espinoza, que em seu Tratado Teológico-Político defende a idéia de que a soberania autêntica do regime político perfeito deve residir exclusivamente no direito de todos os homens em uma comuni- dade democrática. Condenando o ab- solutismo, Espinoza considera como antinatural o poder de um monarca sobre seus súditos e propõe, como mais ajustado à natureza, que cada cida- dão transfira seus direitos em favor da maioria da sociedade. Espinoza enten- dia a justiça como obra da razão e construída dentro de um pacto demo- crático.

O Tractatus Theologico-Politicus de Espinoza é de 1670. Em 1690, John Locke publica Two Treatises on Civil

Government, a carta magna do libera-

lismo contratualista. O autor é categó- rico em afirmar que quando as leis não respeitam os direitos de cada cidadão o Estado excede os limites de suas fun- ções e torna-se injusto. Para Locke, a verdadeira justiça erigia-se em um con- trato social que obrigatoriamente ema- nava do exercício da liberdade indivi-

dual. Segundo o pensamento liberal, há uma concepção minimalista do Es- tado que teria simplesmente a missão de permitir o exercício dos direitos naturais de cada cidadão: o direito à vida, à saúde, à liberdade e à proprie- dade. Estabelecia-se a prevalência dos direitos individuais sobre o poder do Estado; a plena liberdade do contrato substituía o velho ajuste natural.

No campo da saúde este novo enfoque trouxe mudanças substanciais. Se no antigo modelo o indivíduo era um elemento passivo e considerava-se imo- ral a desobediência às decisões médi- cas, no pensamento liberal a justiça sa- nitária incorpora-se à nova realidade do mercado e é transacionada segundo as leis livres do comércio, sem qualquer in- tervenção de terceiros. Desta corrente de pensamento surgiram os princípios da medicina liberal que estabeleceu regras no relacionamento médico-paciente aco- modadas às leis de mercado, afastado o Estado de qualquer tipo de intervenção. Qualquer intermediação era considera- da prejudicial. As associações médicas emergentes no século XIX condenavam em seus códigos deontológicos os pro- fissionais que recebiam salários. A as- sistência médica era regida por um con- trato particular entre médico e pacien- te, com regras de comum acordo entre as partes, sem nenhum tipo de contro- le externo.

Segundo este modelo, instituiu- se no século XIX três tipos bem di- ferenciados de assistência médica. As famílias ricas, que dispunham de re- cursos financeiros suficientes para ce- lebrar qualquer contrato, pagavam os honorários arbitrados pelos médicos. Havia, também, um amplo estrato da população que se valia de um seguro

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privado para conseguir saldar os com- promissos com intervenções médicas e internações hospitalares. Finalmen- te, estava a maioria das pessoas po- bres que não tinham recursos para acesso ao sistema sanitário. Para aten- der a esse enorme contingente de despossuídos foram criadas as entida- des beneficentes, que se pautavam pelo sentimento cristão de misericórdia e caridade. Assim, surgiram no Ociden- te as Santas Casas de Misericórdia, invariavelmente dirigidas por irmanda- des de freiras católicas. Muitos dos enfermos atendidos nessas entidades o foram na condição de indigentes. Se recorrermos ao Dicionário de Aurélio Buarque de Holanda vamos encontrar o termo indigência como “a falta do necessário para viver, pobreza extre- ma, penúria, miséria”. A realidade destes pacientes é bem conhecida de médicos formados até a década de sessenta de nosso século e que, por serem recentes, mostram uma outra face da misericórdia, que é a miséria que imperava no atendimento a esses indivíduos. Em alguns hospitais podia- se ler, afixados às portas, os versículos iniciais do Salmo 51, cha- mado Misere e que diz:“Tem pieda-

de de mim, ó Deus, por teu amor! Apaga minhas trangressões, por tua grande compaixão!”.

A indigência roubava dessas pes- soas o direito a qualquer reivindica- ção sobre justiça e as tornava prota- gonistas do que Virgílio descrevia como

muta ars. A prática médica exercida

como a arte muda de deuses que es- palhavam suas benesses a pacientes que absolutamente obedientes as re- cebiam com extrema e comovida gra- tidão. A teoria liberal nada tinha a ofe-

recer a essa multidão de indigentes que não podia exercer o que seriam, se- gundo Locke, os direitos naturais de qualquer cidadão pelo mero fato de ser pessoa humana. O Estado minimalista de Locke era muito frágil e destituído de poder para intervir em benefício de quem quer que fosse. As leis do mer- cado liberal pressupunham para o ple- no exercício da cidadania o domínio do poder econômico para celebrar con- tratos que possibilitassem acesso aos cuidados de saúde. Fora desse âmbi- to, só restava a esmola, a misericór- dia. E foi exatamente a óbvia injustiça deste Estado minimalista que gerou o Estado maximalista proposto por Marx.

A justiça contemplando o

No documento IniciaçãoaBioética-LivroInteiro (páginas 71-73)