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A postura tradicional do médico na relação médico-

No documento IniciaçãoaBioética-LivroInteiro (páginas 51-53)

paciente

O Juramento de Hipócrates, pri- morosa obra do saber humano, forne- ce-nos a postura tradicional do médi- co na relação médico-paciente. É uma postura virtuosa, daquele que busca o bem-estar do próximo, às vezes às cus- tas do seu próprio, ou seja, coloca como regra básica o princípio da be- neficência. Esse juramento continua, ainda hoje, a ser a expressão dos ide- ais da Medicina e o alicerce da postu- ra ética do médico.

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Há nele, entretanto, uma lacuna no que se refere ao livre arbítrio do paciente para decidir. O texto não con- templa, em momento algum, os direi- tos da contraparte nesse relacionamen- to: a vontade do paciente não é men- cionada.

Pode parecer estranho, à primei- ra vista, que essa obra grega, tão bela e profunda – surgida em uma época e em uma civilização cujo povo uniu-se na defesa de ideais de liberdade e de- mocracia (1) – contivesse um vazio tão gritante.

Ocorre que o Juramento espelha a moral médica no apogeu do período clássico da cultura grega na Antigui- dade (final do século V e século IV a.C.), tendo sido feito por médicos e para os médicos.

Herança da medicina sacerdotal, devendo ser prestado por todos que desejassem ingressar na “Irmandade”, ele continha, entre outras, a obrigação solene de guardar segredo da doutri- na. Simboliza a idéia religiosa de duas séries distintas de homens, separadas pela divisória rigorosa de uma ciência oculta e acessível apenas a alguns. Essa distinção entre o profissional e o leigo, o iniciado e o não-iniciado está ex- pressa nas formosas palavras finais do

Nomos hipocrático: “As coisas con-

sagradas só devem ser reveladas aos homens consagrados; é vedado revelá- las aos profanos, uma vez que não estão iniciados nos mistérios do saber” (2).

Nessa época, porém, um novo tipo de médico estava surgindo na Grécia: o profissional que exercia a

medicina-ciência em contraposição

aos que se dedicavam à de cunho reli- gioso . Na verdade, a nova ciência mé- dica – que sob a ação da filosofia

jônica da Natureza converteu a medi- cina grega em uma arte consciente e metódica, na qual as hipóteses eram construídas a partir de fatos e não de concepções religiosas ou filosóficas apriorísticas – sentia como um proble- ma a posição isolada, ainda que elevadíssima, que ocupava na comu- nidade. Esse novo médico, apesar de basear-se em um saber especial que o diferenciava do profano, se esforça conscientemente para comunicar seus conhecimentos e encontrar os meios e os caminhos necessários para tornar- se inteligível. Seguindo as pistas dos sofistas, expõe em público seus proble- mas, por meio de “conferências” ou de “discursos” escritos. Surge assim uma literatura médica destinada às pessoas estranhas a essa profissão. Com essa divulgação do conhecimento médico nasce também um novo tipo de inte- lectual, “o homem culto em Medicina”, isto é, o homem que consagrava aos problemas desta ciência um interesse especial ainda que não profissional e cujos juízos em matéria médica se dis- tinguiam da ignorância da grande massa (2).

A melhor ocasião para transmitir ao leigo o pensamento médico era, certamente, durante o relacionamento com o paciente. Platão (nas leis) nos mostra que essa relação era muito diversa no que tange ao esclareci- mento do paciente, dependendo do tipo de médico: o médico dos escra- vos ou o médico dedicado a essa medicina-ciência que tratava dos ho- mens livres. O primeiro tratava seus pacientes sem falar, sua conduta era a de um verdadeiro tirano; o segundo, expunha detalhadamente ao pacien- te a enfermidade e as concepções

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que tinha sobre sua origem, apoian- do-se no que se pensava sobre a natu- reza de todos os corpos. Platão comen- ta que “se um destes médicos (de es- cravos) ouvisse um médico livre falar com pacientes livres, em termos muitos semelhantes aos das conferências cien- tíficas (...), certamente se poria a rir e diria o que a maioria dos médicos diz nesse caso: – O que fazes, néscio, não é curar teu paciente, mas ensiná-lo, como se a tua missão não fosse a de devolver- lhe a saúde mas a de convertê-lo em mé- dico”. Ele (Platão), porém, vê nessa con- duta médica, baseada no esclarecimen- to detalhado do paciente, o ideal da te- rapêutica científica (2).

Os relatos supracitados indicam que o profissional dedicado à recém- criada ciência médica, no período clás- sico da cultura grega, já buscava uma relação mais harmoniosa com o paci- ente através do esclarecimento deste, apesar da ética hipocrática ainda não ter se libertado da influência do autoritarismo da medicina sacerdotal.

Frise-se, entretanto, que essa pos- tura do médico não era a norma geral e não se dirigia à grande massa, mas apenas aos homens livres, isto é, à parcela da população grega que se constituía na classe social de maior discernimento e que detinha o poder. Destaque-se ainda que o esclarecimen- to visava aproximar o médico do seu paciente, harmonizando esse relacio- namento; não era uma conduta ado- tada porque o paciente tinha direito à informação. Na Grécia Clássica a idéia de democracia não incluía o que, mais tarde, veio a ser denominado di-

reitos humanos (3).

Esses ideais da ciência médica grega, mergulhados no absolutismo que

se seguiu à democracia grega e no obscurantismo da Idade Média, fene- ceram no seu nascedouro e a conduta autoritária e paternalista do médico para com o paciente continuou a pre- ponderar na relação. Pior, durante o período medieval a filosofia grega da ordem natural foi cristianizada pelos teólogos e a ética médica passou a ser formulada pelos moralistas e aplicada pelos confessores; ao médico era dado tudo pronto, pedindo-se – ou exigindo- se – que a cumprisse (4).

A Revolução Francesa chega à

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