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O s problemas que a eutanásia e a distanásia querem resolver

No documento IniciaçãoaBioética-LivroInteiro (páginas 170-172)

A eutanásia e a distanásia, como procedimentos médicos, têm em co- mum a preocupação com a morte do ser humano e a maneira mais adequa- da de lidar com isso. Enquanto a euta- násia se preocupa prioritariamente com a qualidade da vida humana na sua fase final – eliminando o sofrimento –, a

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distanásia se dedica a prolongar ao má- ximo a quantidade de vida humana, combatendo a morte como o grande e último inimigo.

Estas caracterizações iniciais da eutanásia e da distanásia, apontando para os valores que querem proteger, podem servir de ponto de partida para nossa discussão.

A primeira grande questão para ambas é a morte do ser humano e o sentido que esta morte apresenta, prin- cipalmente quando acompanhada de fortes dores e sofrimento psíquico e espiritual. Até um momento relativa- mente recente na história da humani- dade, a chamada morte natural por velhice ou doença simplesmente fazia parte da vida e, em grande parte, fu- gia do nosso controle. A morte violen- ta, por outro lado, vem sendo aperfei- çoada pela maldade humana durante séculos e já alcançou requintes de per- versidade e capacidade de mortanda- de em massa jamais sonhados no pas- sado. Muitos dos receios que surgem na discussão sobre eutanásia e distanásia refletem a consciência que se tem de tanta violência e, no contex- to da medicalização da morte, são re- sultado do crescente poder moderno sobre os processos ligados com a cha- mada morte natural e o espectro da mão curadora do médico se transfor- mar em mão assassina.

Diante destas ambigüidades, para maior clareza na discussão, parece-me oportuno distinguir entre a morte provocada que acontece num contex- to terapêutico sob a supervisão de pes- soal médico devidamente habilitado e todas as outras formas de morte vio- lenta, sejam acidentais, sejam propo- sitais. Esta distinção nos proporciona-

rá uma maior precisão terminológica e maior segurança nas decisões que precisam ser tomadas, seja como mem- bro da equipe médica, seja como pa- ciente, familiar ou responsável legal.

No período pré-moderno, o mé- dico e a sociedade estavam bastante conscientes de suas limitações diante das doenças graves e da morte. Mui- tas vezes, o papel do médico não era curar, mas sim acompanhar o pacien- te nas fases avançadas de sua enfer- midade, aliviando-lhe a dor e tornan- do o mais confortável possível a vivência dos seus últimos dias. De modo geral, o médico era uma figura paterna, um profissional liberal, num relacionamento personalizado com seu paciente, muitas vezes um velho co- nhecido. Os ritos médicos foram acom- panhados de ritos religiosos e tanto o médico como o padre tornaram-se parceiros na tarefa de garantir para a pessoa uma morte tranqüila e feliz.

Com a modernização da medici- na, novos estilos de praticar a ciência e novas atitudes e abordagens diante da morte e do doente terminal emergi- ram. O paradigma tecnocientífico da medicina se orgulha, com bastante ra- zão, diante dos significativos avanços obtidos nos últimos cem anos nas ci- ências e na tecnologia biomédica. Atu- almente, doenças e feridas antigamen- te letais são curáveis desde que tenham tratamento adequado. O orgulho, po- rém, facilmente se transforma em ar- rogância e a morte, ao invés de ser o desfecho natural da vida, transforma- se num inimigo a ser vencido ou numa presença incômoda a ser escondida.

Outro paradigma da moder- nidade, bastante ligado aos desenvol- vimentos tecnológico e científico, é o

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paradigma comercial-empresarial. O advento da tecnologia, novos fármacos e equipamentos sofistica- dos tem um preço, e às vezes bem alto. Este fato deu margem para a evolução de um estilo de medicina onde o médico deixa de ser um pro- fissional liberal e se torna um funcio- nário, nem sempre bem pago, que atua no contexto de uma empresa hospitalar. Principalmente no setor privado, a capacidade do doente ter- minal pagar a conta, e não o diag- nóstico, é o que determina sua ad- missão como paciente e o tratamen- to a ser subseqüentemente emprega- do. Já que, nesta perspectiva, o fator econômico predomina, é o poder aquisitivo do freguês, mais que a sa- bedoria médica, que determina o procedimento terapêutico – a infiltra- ção desta mentalidade nota-se mes- mo nos grandes centros de atendi- mento médico mantidos pelos cofres públicos.

Um terceiro paradigma da me- dicina, o paradigma da benignidade humanitária e solidária, reconhecen- do os benefícios da tecnologia e da ciência e a necessidade de uma boa administração econômica dos servi- ços de saúde, procura resistir aos ex- cessos dos outros dois paradigmas e colocar o ser humano como o valor fundamental e central na sua visão da medicina a serviço da saúde, des- de a concepção até a morte. Este paradigma rejeita a mistanásia em todas as formas, questiona os que apelam para a eutanásia e a distanásia e, num espírito de benig- nidade humanitária e solidária, procura promover nas suas práti- cas junto ao moribundo a

ortotanásia, a morte digna e huma- na na hora certa.

Um outro problema – que tem um grande peso na discussão sobre euta- násia e distanásia – é a definição do momento da morte. Em muitos casos, não há nenhuma dúvida sobre o óbito do paciente e o fato é aceito sem con- testação tanto pela equipe médica como pela família. Há outros casos, porém, bastante polêmicos. A utiliza- ção de tecnologia sofisticada que per- mite suporte avançado da vida levan- ta a questão de quando iniciar e quan- do interromper o uso de tal recurso. A crescente aceitação da constatação de morte encefálica como critério para declarar uma pessoa morta é decisiva não somente em casos onde se preci- sa liberar o corpo para enterro, mas, também, para liberá-lo como fonte de órgãos para transplante.

A mistanásia: a “eutanásia

No documento IniciaçãoaBioética-LivroInteiro (páginas 170-172)